181.15

O canto dessa cidade é meu: Makalister, futebol, música e outras formas de dizer

Tem som, cheiro e imagem que faz lembrar.

Por algum motivo – que ainda não sei e tento descobrir no percurso – tenho repetido essa frase há algum tempo. Surgiu na cabeça, enquanto minha avó Tarsila me contava sobre o som do acordeon e do gosto que tem pelo tango, como essas coisas que interrompem o instante e nos colocam diante do pensamento. Alguma coisa acontece quando escuta Astor Piazzolla, que a transporta para outro lugar, que é do sensível, que faz pensar nos tangos que dançou e nos que apenas imaginou-se dançando.

Tem som, cheiro e imagem que faz lembrar.

A questão da repetição é precisa. Das melhores coisas do mundo, um tanto delas só são possíveis de alcançar – enquanto experiência subjetiva transformadora, que não é apenas mera imagem do pensamento – repetindo. Futebol, música e cinema. As canções que repetidas vezes precisam tocar no ouvido, para então tocarem em outros órgãos. As imagens que repetidas vezes precisam ser vistas com olhos, para então tornarem-se visíveis com outros pares de lentes. As jogadas que repetidas vezes precisam tocar nos pés, para então tornarem-se movimentos do próprio corpo e de uma consciência do corpo. Que leva a pensar que a própria consciência do corpo é atingida justamente pela experiência da repetição.

No processo de criação de um filme, que fala da vida dos jogadores de futebol em formação, há muita coisa que se repete. As imagens, os sons, o cheiro do gramado, o trajeto até a Palhoça, os textos que precisam ser decodificados, as perguntas, as respostas. Pesquisar o futebol é, sobretudo, um exercício de retorno. Que é para vários lugares, inclusive para o interior, quando se deixa ser tocado pelas vozes de torcedores que repetidas vezes cantam:

O canto dessa cidade é meu, quem torce pro Figueira sou eu

Vozes essas que permeadas de afetos tristes repetem comentários maldosos: “Bernabé, corre porque é o que te resta aqui”. Mas que ainda assim repetem. Como se quisessem reforçar o “livre arbítrio” de poder dizer do outro.

Muita coisa aí, que diz da configuração de um modo de torcer, de entender o outro como objeto a ser desqualificado, do jogador enquanto sujeito-assujeitado. E que nos leva a entender, primeiramente, que a repetição no futebol é uma condição ritualística do ato de torcer.

Somar voz no meio das outras tantas vozes que juntas formam uma voz maior, capazes agora de alcançar um outro espaço – geográfico e sensível[1] – talvez seja elemento primordial que faz atingir a experiência de torcedor em um estádio de futebol. O quanto de material expressivo cabe na frase o canto dessa cidade é meu, e dos diversos outros cânticos de torcida que agrupam em pequenas frases uma grandiosa noção da experiência de torcer. A música tem disso, um poder de condensação que exprime o que se pensa e se sente no coletivo.

Tem som, cheiro e imagem que faz lembrar.

Para minha avó é o som do acordeon.

Para o rapper Makalister é o Figueirense, que se repete no lirismo da poesia marginal de suas músicas, que faz com que quem o escute, ouça também o quanto o futebol cabe na arte e vice-versa.

Figueirense
Fonte: reprodução / Facebook Figueirense

***

A importância que a música tem no estádio é similar a importância que tem a trilha sonora em um filme. É, por vezes, a música quem dita o ritmo em uma partida de futebol, assim como, é a música quem dita o ritmo em um documentário. Há um elemento a mais na configuração de uma experiência quando imagem e música se entrelaçam. Algo novo é produzido quando uma imagem é musicada, modulando a sensação que se tem ao olhar para aquilo que agora já não é só imagem, que é uma expressão de múltiplos signos, pelos acordes que acompanham a cena.

Sabendo do peso que tem a música em um filme é que escalei Makalister como pensador da trilha sonora. A primeira composição que ouvi do rapper foi Synedoche[2], que chega nos ouvidos com Glauber Rocha falando:

A arte livre é a arte brasileira!

E que repete:

A arte livre é a arte brasileira!

A relação com o futebol é repetida em diversas de suas letras, como no caso de “Quartos escuros”, em que repete:

Noites nebulosas
No bairro o movimento básico:
Drogas, tráfico, enquadros da Tático
O mano mal saiu da escolha e já anda trepado
Camisa do Figueira e tatuagem de palhaço

Há mais o que ver, e nesse caso, ouvir, em suas letras. Na canção em questão isso fica evidente quando se entende a referência que faz, não só ao manto do time, mas à configuração do território sociopolítico, de alguns tantos torcedores, ao dizer da tatuagem de palhaço[3]. O gosto por repetir Figueirense em suas composições foi sendo criado desde pequeno, tal como tantos de nós que somos pegos pelo futebol ainda na infância.

“Comecei a ir ao estádio quando tinha 4 anos. Acho, talvez, que o Figueirense foi uma das primeiras coisas na minha vida que criou uma identidade. As primeiras emoções, a primeira ida ao estádio que inclusive a gente foi campeão contra o Avaí na final do Catarinense. Marcou muito. Senti que era um universo que queria viver.”

E continua:

“Com 13 anos virei sócio e aí comecei a ir – ao estádio – direto. […] Por vários anos fui ao estádio quase sem perder nenhum jogo. Fiz parte de uma torcida organizada também, que era a Resistência Alvinegra. Escrevia música pra lá, tocava bumbo, tocava caixa, pintava faixa também… Era muita coisa que despertava muito do que eu gostava. Tipo, futebol, arte, pela música da torcida, pela música em si. Criação né, poder usar a criatividade. Pertencimento, amizade, tudo isso… A minha vida como torcedor é presente durante toda minha vida… É uma das coisas que mais amo na vida. E isso acabou chegando na minha música, porque minha música fala sobre mim.”

E na música, assim como nas outras artes, repetir parece conduzir a um modo de olhar para as coisas da vida que, a partir da própria repetição, inventa a diferença, desde que o corpo deixe ser tomado pelas possibilidades de afecção do novo que chega com o que se repete.

No que se refere aos cânticos futebolísticos, percebe-se que essa repetição é assumida como elemento identitário da torcida. Passam anos, jogadores, treinadores. O time se reconfigura, mas a experiência de torcer continua sendo guiada por vozes e composições de um passado, de um outro tempo.

Makalister conta que o processo de produzir músicas para a torcida organizada, por vezes, é constituído pela repetição de outras canções já consagradas.

“A gente pegava algumas músicas de outras torcidas e criava as nossas em cima. Ou pegava alguma de outro estilo qualquer e criava em cima da batida.”

Assim como pode ser percebido no cântico acima referido, que foi (re)inventado a partir da música O canto dessa cidade, de Daniela Mercury. Fazendo compreender que a repetição constrói também maneiras de sentir, por meio de símbolos que manifestam um lugar comum.

Makalister

***

Nessa constância de repetições, aprendi com o azlheimer de meu avô, que mesmo que se repita, o mesmo não é mais o mesmo ao repetir-se. Algo que dá contorno a esse mesmo, que o coloca em vias de repetição, também faz com que aquilo que era o mesmo se (re)invente. Fazendo com que seja sentido como um novo. Com que seja não mais a música de Daniela Mercury, porque agora é música do torcedor alvinegro.

A questão é que, aquilo que enxergamos como novo, como acontecimento único e primeiro, por vezes já é repetição, mas que ainda não foi assimilada. Eis a questão do eterno retorno. Como nos diz Deleuze (1968, p. 278):

“O estado dos textos de Assim falou Zaratustra nos ensina que por duas vezes está em questão o eterno retorno, mas sempre como uma verdade ainda não atingida e não expressa: uma vez, quando o anão, o bufão fala (cf. li I, “Da visão e do enigma”); uma segunda vez, quando os animais falam (cf. III, “O convalescente”). A primeira vez basta para deixar Zaratustra doente, inspirando-lhe um pesadelo terrível, e o determina a fazer uma viagem por mar. A segunda vez, após uma nova crise, Zaratustra convalescente sorri a seus animais, cheio de indulgência, mas sabendo que seu destino estará somente numa terceira vez não dita (aquela que anuncia o fim, “o signo chega”).”

Assim sendo, aprende-se que a repetição é condição da diferença e do novo, que talvez nem novo seja, porque sempre vem de alguma coisa, que veio de outra e de outra. Contudo, é a repetição que faz chegar num signo, numa tradução simbólica do sensível que é levado à consciência.

De volta ao rapper:

“Eu acho que o que vem sendo cantado agora no estádio é o mesmo que se canta há muito tempo, na maioria das torcidas, não vejo mudar muita coisa. O que era diferente na torcida organizada que participava. As letras eram mais poéticas, o ritmo de bateria era mais lento também, bem romântico.”

Mas para chegar nesse outro ritmo, de bateria e de expressão simbólica, é preciso caminhar para muitas outras discussões futebolísticas e lembrar que as vozes que cantam a música que era de Daniela Mercury, também são as vozes algozes que amaldiçoam quem era até então tido como ídolo. O futebol enquanto leitura de mundo, denuncia o apego que temos aos formatos. De compor cânticos, de dizer de um outro, de se enxergar torcedor. Há muito ainda o que se repetir em estádios de futebol para que se produza diferença, não só na maneira como somos afetados enquanto torcedores, mas, principalmente, no modo como enxergamos esse outro que é o jogador.

É um processo lento, como tudo que caminha para a diferenciação. Demora até que seja possível ouvir música com outros órgãos, driblar com outros pés, ver não só com os olhos, torcer de forma ética. Demora até que seja possível atingir determinados signos e verdades. É preciso também uma disposição para que a repetição crie diferença, um desejo por encontrar outras formas de expressão que não sejam apenas repetições de outras vozes.

O que nos leva de novo a Makalister.

Futebol é samba, para tantos brasileiros. Escolher falar do futebol através do rap, e dizer de vários elementos subjetivos que compõem a experiência do ser-torcedor, que são quase invisíveis dependendo do olho que vê, é missão na vida do rapper, que apresento aqui como integrante final de uma série de textos sobre minha pesquisa de doutoramento. Ouvir o que dizem vozes como a do torcedor e musicista é se deixar permear por coisas que não são acessadas por não terem sido repetidas ao ponto de ocuparem esse espaço cultural e político que é dos “grandes”.

Penso ser um dever nosso, enquanto pesquisadores, pensadores e torcedores, não só dar voz, mas somar voz junto a essas outras tantas vozes que são marginalizadas por serem menores. Por se arriscar a dizer em outros formatos, através de outros sons. É muito. São as pequenas transformações que conduzem à revolução ética.

Por fim, convido quem me lê a ouvir o álbum de produção independente que foi lançado na última semana. “A volta da esperança” é marcado por um conjunto de músicas que convidam a pensar sobre a cidade, o futebol, a arte e a vida. Das importantes duplas que marcaram o ataque no futebol, fica o aceno a dupla de Makalister, o produtor e também rapper Beli Remour, vascaíno de coração sofredor, dada as últimas temporadas de seu time, e que compõe bela dupla de ataque, a lá Euller e Romário, entregando canções como a que diz:

“meus ídolos emocionaram gerações

Dinamite, Edmundo, Romário

Só sonhava com o vasco

Não pensava no passado

Tinha medo das palavras

Nunca escrevi em um diário

[…]

Ter conhecimento das coisas é um fardo

[…]

Dinamite e Fernandes,

Já não nascem mais ídolos como antes”

E eu respondo, a Makalister, a Beli, e a quem lê… Espero que não nasçam mais ídolos como antes. Saudades só sinto de Sócrates, provavelmente por não ter sido ídolo apenas dentro de campo. Espero, inclusive, que não nasçam mais ídolos. Idolatrias destroem homens e seus sonhos, como nos lembra o Imperador, que foi ídolo triste e agora, longe dos gramados, pode ser só um Adriano feliz.

A arte livre é a arte brasileira!


Referência

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1968.

Notas

[1]Espaço geográfico porque diz do alcance do conjunto de vozes que reverbera para além do estádio. Espaço sensível porque diz de algo que é tocado individualmente ao estar acompanhado de outros que também repetem o cântico.

[2]O nome da música é um aceno ao filme Synecdoche, New York de Charlie Kaufman, como diversas outras composições que fazem conexão com o cinema.

[3]A tatuagem de palhaço é conhecida como um modo de expressar na pele a relação que se tem com a prática de crimes.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

MORO, Eduarda. O canto dessa cidade é meu: Makalister, futebol, música e outras formas de dizer. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 15, 2024.
Leia também:
  • 181.20

    Considerações finais da pesquisa (parte 1): Os clubes sociais como caminho de categorização para a preservação do futebol varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
  • 181.19

    O futebol e a cidade: centenário esportivo no sertão da Paraíba

    Rodrigo Wanderley de Sousa-Cruz
  • 181.18

    A naturalização da barbárie: a cultura dos “parças” e a permissividade no âmbito hostil do futebol

    Eduardo Gomes