181.24

O circo do futebol: personagens, tramas e estereótipos

José Paulo Florenzano 23 de julho de 2024

I PARTE[1]

 A conquista da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, desencadearia uma profusão de discursos de celebração da identidade nacional. De um modo geral, tais discursos giravam em torno de uma ideia-chave veiculada de forma obsessiva naqueles dias de euforia coletiva, tanto nos comentários das emissoras de rádio, quanto nos artigos e reportagens da imprensa escrita. Com efeito, ao redor da questão racial rodopiavam inúmeras narrativas, convergiam quase todas as conclusões.

A crônica esportiva extraía dela uma verdade supostamente inquestionável acerca da nacionalidade e a canalizava para o conjunto da vida social, alcançando os espaços mais distantes, atingindo os segmentos mais alheios ao acontecimento, difundindo uma pretensa verdade cuja força avassaladora agora entrava em choque com as formulações teóricas que haviam vaticinado o atraso inelutável do país, a inferioridade inata da população. Foi preciso aguardar a resposta elaborada no domínio do ritual coletivo para exorcizar os fantasmas do passado e desfazer o mal-estar do presente.

A façanha esportiva, selada com a vitória de 5 a 2 contra a Suécia, na decisão do torneio, adquiria o caráter de redenção do ser brasileiro, projetava-o em uma nova dimensão, afirmava-o em toda sua plenitude -, sem hesitações nem ambiguidades. Ela ensejava, sobretudo, o acerto de contas com os que ousaram colocar em dúvida o porvir da nação:

E constatamos que o brasileiro, que Gobineau considerou raça inferior, diante do gol adversário, ao invés de sucumbir, ao invés de entregar-se, demonstrou uma admirável capacidade de luta, e foi à frente, confiante e sereno, fazendo valer a qualidade de nossa gente e da nossa raça. [2]

Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), “arauto do racismo biológico”,[3] adepto do “determinismo racial absoluto” [4] e diplomata de carreira com ambições políticas,[5] havia desembarcado no Rio de Janeiro em meados do século XIX trazendo na bagagem as teses esgrimidas no “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”.[6] A breve estada nos trópicos lhe reforçara as convicções mais profundas sobre as consequências nefastas da mestiçagem, cristalizadas, conforme acreditava, na “degenerescência” genética da população nativa;[7] na “esterilidade” cultural da nação brasileira;[8] até mesmo na aparência física das pessoas comuns: “Todo mundo é feio aqui, mas incrivelmente feio: como macacos”.[9]

As teorias raciais consagravam o primado do biológico na explicação do social, ao mesmo tempo em que postulavam o vínculo entre “raça” e nação, situando-as dentro de um campo semântico no qual se forjavam múltiplas conexões de sentido, não necessariamente congruentes entre si, mas direcionadas, de modo geral, à classificação e hierarquização dos grupos humanos, cujas diferenças eram então concebidas como inatas, as distâncias vistas como intransponíveis, as desigualdades encaradas como “naturais” e imutáveis, expressas em termos físicos, morais e intelectuais.[10]

Qualquer movimento encetado para suprimi-las só podia acarretar riscos incalculáveis. De fato, para estas doutrinas “científicas” o anátema maior consistia na miscigenação, considerada, em última instância, responsável pela degenerescência dos povos. [11] “Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças”, desafiava Louis Agassiz (1807-1873), “venha ao Brasil”. O zoólogo suíço esteve no país em 1865 e assegurava ao leitor incrédulo a “deterioração decorrente do amálgama de raças, mais geral aqui do que em qualquer outro lugar do mundo, e que vai apagando, rapidamente, as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental.”[12]      

A proeza representada pela conquista da Copa do Mundo, nesse sentido, fornecia a oportunidade ansiosamente aguardada para, no campo em que o país escolhera se reimaginar enquanto comunidade nacional, refutar as doutrinas alienígenas que colocaram em questão o potencial criador do novo tipo antropológico que emergia nos trópicos.[13] Em sua coluna na Manchete Esportiva, Nelson Rodrigues evocava os que haviam decretado que “éramos feios”, contestando agora o juízo estético enunciado pelos forasteiros: “Mentira!” E acrescentava em tom de ironia: “Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos”.[14]

Copa 1958 Brasil
Brasil ganhou seu primeiro título em Copa do Mundo em 1958
Créditos: Divulgação CBF

As considerações de José Silveira, em A Gazeta Esportiva, vibravam no mesmo diapasão: “A vitória do Brasil”, salientava o jornalista, “tem um grande sentido. Morre, em nosso coração, o complexo de raça”.[15] De acordo com a crença amplamente difundida na esfera do futebol, o atleta canarinho padecia de uma maldição que o condenava a fracassar nos momentos mais importantes das competições internacionais, como se o espectro de Gobineau o espreitasse em cada lance crucial, se materializasse a cada derrota decisiva: “A tremedeira”, recordava o cronista supracitado, “acompanhou-nos por muito tempo”, mais precisamente até 1958 quando, então, o jogador covarde prefigurado pelas teorias racistas cedera lugar ao campeão mundial sonhado pelos discursos patrióticos:

Desta vez, contra tudo e contra todos, levantamos o campeonato da saúde, o campeonato da técnica, o campeonato da força de vontade, o campeonato da organização, o campeonato da disciplina, o campeonato do patriotismo e – graças a Deus – o campeonato da raça.[16] 

Uma vitória perseguida com sofreguidão, refletida em vários planos, capaz de dissipar medos atávicos e de desmentir falsas doutrinas, consumada, ademais, por uma esquadra que reunia e encarnava os atributos físicos, as qualidades psicológicas e as virtudes morais que os ideólogos do racismo insistiam em não reconhecer ao povo brasileiro. Eis, em síntese, as asserções ufanistas suscitadas pela conquista do título inédito.

Todavia, convém analisar mais detidamente estas narrativas a fim de explicitar o que ficava subtendido nas entrelinhas. Aqui se nos impõe uma pergunta incontornável: porventura a nação que havia conquistado em 1958 o “campeonato da raça” não era a mesma que em 1950 o havia perdido? A questão racial que aflorara com tamanha intensidade na Copa da Suécia acaso estivera ausente por completo na Copa do Brasil?


[1] Artigo originalmente publicado na Revista Espaço Plural, do Centro de Pesquisa e Documentação sobre o Oeste do Paraná, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, (CEPEDAL-UNIOESTE). Ver: FLORENZANO, José Paulo. O circo do futebol: personagens, tramas e estereótipos. Espaço Plural. Toledo, v. 14, n. 29, p. 314-337, 2013.

[2] Cf. “Brasil, Brasil, Brasil!”, A Gazeta Esportiva, 2 de julho de 1958.

[3] Poliakov, Léon. O mito ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. São Paulo, Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p.221.

[4] Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.63.

[5] Skidmore, Thomas. E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.46.

[6] Gobineau, Arthur de. Essai sur l`ingégalité des races humainés (1853-1855). Paris, Éditions Pierre Belfond, 1967. 

[7] Cf. Munanga, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ, Vozes, 1999, p.42.

[8] Araújo, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994, p.29.

[9] In: Skidmore, Preto no branco… op.cit., p.47.

[10] De fato, a crença na existência de “raças” se traduz na crença de que “atributos morais e intelectuais decorrem de atributos biológicos”. Fry, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005,p.18. Com efeito, “raça” não corresponde à realidade biológica, constituindo-se em uma construção social e histórica, desvelando-se como uma “categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo”. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik (organizadora), Belo Horizonte, UFMG, 2006, p.66. Ver, também, sobre as imbricações de “raça” e de nação, Gilroy, Paul. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. São Paulo, Annablume, 2007, p.50.  

[11] Cf. Kabengele Munanga, Rediscutindo a mestiçagem no Brasilop. cit., p.42.

[12] In: Thomas Skidmore, Preto no Brancoop.cit., pp.46/47. Louis Agassiz esteve no Brasil durante uma expedição científica em 1865.

[13] Cf. Anderson, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

[14] Rodrigues, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. Crônicas de futebol. Ruy Castro (org.) São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.61.

[15] Cf. “Lavando a alma”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, 1ª quinzena de julho de 1958.

[16] Matéria citada na nota anterior.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O circo do futebol: personagens, tramas e estereótipos. Ludopédio, São Paulo, v. 181, n. 24, 2024.
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