20.1

O compromisso diário com a pesquisa

Paulo Nascimento 2 de fevereiro de 2011

“Como o Greg e eu não jogávamos nada,
nós falávamos de esporte o tempo inteiro.”

Em minha tentativa de férias, que foi da última semana de dezembro à primeira de janeiro, tive enfim a oportunidade de acessar algo da obra do comentado comediante americano Chris Rock. Foi o seriado “Todo mundo odeia o Chris” que, do pouco que soube até agora, parece ter sido inspirado na adolescência do próprio Rock, vivida no Brooklyn de meados dos anos 80. Além de pai, mãe e dois irmãos, uma personagem bastante recorrente nos episódios é Greg, o melhor amigo de Chris – que é o único estudante negro de seu colégio, lugar onde surgem boa parte dos desafios diários que o protagonista da série enfrenta em sua vida (muitos deles relacionados à sua identidade étnico-racial). Seja no colégio, em casa, desafios ou eventuais prazeres que surjam na vida de Chris, são, invariavelmente, compartilhados com Greg. Os episódios são todos narrados em primeira pessoa. Em um dos que acompanhei, Chris explicou o resultado de sua falta de habilidade para estar inserido no grupo dos esportistas com a frase que desloquei como epígrafe deste texto. Isso porque ela me pôs a pensar.

Frequento os espaços universitários que se abrem para discussões sobre esporte há cerca de sete anos. Pouco, se comparado aos que hoje ocupam postos de professores titulares e/ ou seus equivalentes, e que merecem sempre serem lembrados como de grande valia para que a discussão sobre esporte na universidade fosse feita de modo íntegro, sem que esse esporte estudado fosse tido com objeto de pouca valia (o já batido “ópio do povo”). No entanto, defendo este meu tempo de inserção na universidade como suficiente para perceber algo: a maioria dos que estudam esporte tiveram uma relação intensa de praticantes de alguma modalidade e, por vários fatores (que podem ir de uma oportunidade de ascensão negada à falta de habilidade técnica), viram-se na situação de estabelecer uma relação com o esporte que não a de aspirantes ao alto-rendimento. Pensar as inúmeras manifestações do esporte, em tempo passados ou contemporâneos: me parece ser, em linhas gerais, o desejo que move os pesquisadores de esporte no Brasil, e que não raro estiveram em algum momento de suas vidas relacionados à prática de algum esporte.

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Bola do Nelito – Nhambonda, Moçambique. Foto: Jéssica Hilltout.

Penso que trabalhar com pesquisas cujo método é a História Oral me permite perceber a potência destes relatos para que possamos, se não incorporar, ao menos refletir as nossas práticas de vida a partir do que um atleta de alto-rendimento diz sobre seu cotidiano. Todos são unânimes ao afirmarem que é necessária uma dedicação enorme, quase que integral, quase que obsessiva, ao seu objetivo de vida, quer seja um título, uma medalha, ou alcançar o índice para participar de um campeonato que parecia distante. E é esse compromisso com o esforço diário que, no entender de muitos atletas com quem tive a oportunidade de conversar, acaba por ser determinante nos milésimos de segundos, nas últimas braçadas, no ponto final. E vejo este como um dos valores mais bacanas que um atleta de alto-rendimento pode transmitir à sociedade: o compromisso diário com seu ofício, a habilidade em lidar com adversidades, sem esmorecer. Isso com o cuidado de não se deixar levar pelos ditames do self-made man, que vê todos saindo do mesmo lugar, conferindo aos que “não chegaram lá” uma preguiça, uma falta de caráter, um desvio moral.

Não são poucas as adversidades que os pesquisadores têm de enfrentar no Brasil, que vão desde insuficiências materiais até os jogos de poder corporativistas. Como se não bastassem, aqueles que poderiam se aliar por terem alguns interesses em comum se perdem na incapacidade de administrar suas vaidades. Para além de tudo isso, no entanto, creio que cada um que se vê na condição de pesquisador pode assumir alguns compromissos diários, tal qual o atleta que deseja melhorar seu tempo, aprimorar sua técnica ou superar problemas de ordem subjetiva que insistem em aparecer e atrapalhar. Segredo? Nenhum: basta transpor para nossas vidas esse esmero diário na feitura de sua pesquisa, em especial na escrita (afinal, tão importante quanto ter boas idéias e saber dizê-las, é saber expressá-las generosamente para aqueles que forem ler possam acompanhar o raciocínio do pesquisador sem sobressaltos). Ao que me parece, o que alça uma pesquisa ao posto de acima da média nada mais é do que repercussão da perspicácia de este autor teve em dedicar-se o máximo possível à sua pesquisa. Dedicação diária. Obstinação própria de atleta.

Esta semana tive a honra de acompanhar a defesa de um companheiro de grupo de estudos. Elogios não faltaram. Melhor foi ver que, para a banca que o argüiu, as adversidades não pareceram justificativas para a não-realização disso ou daquilo. E o que sobressaiu foi a qualidade do produto final. Que este exemplo se espraie e alcance a todos os que desejam contribuir para o avanço das discussões acadêmicas sobre o esporte em suas respectivas linhas de pesquisa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulo Nascimento

Professor de História.

Como citar

NASCIMENTO, Paulo. O compromisso diário com a pesquisa. Ludopédio, São Paulo, v. 20, n. 1, 2011.
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