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O futebol é como bicicleta? A formação de treinadores de futebol

Ian Massumi Carneiro Ogawa 17 de maio de 2017

No dia 10 de abril de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) divulgou uma nota dizendo que não havia previsão legal para determinar a obrigatoriedade para que treinadores de futebol tenham um diploma em Educação Física. Também nenhum outro diploma ou certificação é, por ora, exigido. Ou seja, não há uma formação mínima para ser treinador de futebol. Mas será que isso é bom, ruim ou indiferente?

Mesmo que para muitos isso soe arcaico, me parece que havia até pouco tempo um preconceito, dentro do futebol, com treinadores que nunca tiveram a experiência de ter uma bola nos pés e de estar dentro de um vestiário como jogador. Tenho algumas hipóteses para tal preconceito. A primeira se deve ao fato de que, para muitos dirigentes, se a pessoa não viveu o campo e obteve o conhecimento empírico, não conseguirá compreender o que os jogadores sentem e muito menos gerir um time inteiro. Outra possibilidade, é o receio de que os jogadores não o respeitarão se não for ex-jogador, não reconhecendo seu saber. Um terceiro ponto é que o ex-atleta conviveu com uma variedade de treinadores diferentes, tendo experimentado diferentes metodologias de treinamento, o que leva a crer que o aposentado dos campos vá ter um banco de dados extremamente grande para colocar em prática em seu time. E, por fim, a torcida, também reconhecendo o saber empírico de um ex-atleta, pode ter maior respeito e paciência com o treinador, principalmente se é um ídolo daquele clube.

Nas competições regidas pela União Europeia das Associações de Futebol (UEFA) é obrigatório que os treinadores tenham o curso de licença da profissão fornecido na própria entidade para a disputa de seus campeonatos. Dentro do curso da UEFA há conteúdos como treinamento de goleiros, preparação física, futsal, além dos estudos de tática e gerenciamento de equipes, entre outros, com o objetivo de formar um “coach completo”.  É necessário fazer o curso até o seu nível máximo para, somente assim, comandar alguma equipe que dispute os campeonatos de ponta da Europa. Zinedine Zidane é um exemplo disto. Quando o francês comandava a equipe B do Real Madrid e não possuía a licença adequada, quem assinava as súmulas das partidas era o seu auxiliar. Quando a UEFA descobriu essa “artimanha”, puniu-o com três meses de suspensão. É válido pensar que a rigidez é tão grande na Europa que até mesmo o Real Madrid, clube de dimensão gigantesca, foi punido ao tentar burlar este sistema. Ao mesmo tempo surpreende que tal clube – no qual se espera grande profissionalismo – não entenda que tal certificação seja necessária, ao menos não para Zinedine.

zidane
Zidane agora é técnico do Real Madrid. Foto: Danilo Borges/ Portal da Copa.

No Brasil, por sua vez, a CBF também promove uma série de cursos para capacitação de treinadores. Há tanto cursos curtos voltados para temas específicos[1], quanto cursos para uma formação ampla, que fornece Licenças oficiais da CBF. Há quatro tipos de Licença, sendo a Licença A e a Licença Pro voltadas para equipes adultas profissionais. Além da CBF, também há, por exemplo, cursos dentro da Universidade de Futebol, entidade de estudo e pesquisa sobre futebol que conta com a parceria da UNICEF. Se as opções de qualificação conhecidas não são tantas, elas certamente existem, ainda que não sejam acessíveis para todos, sobretudo pelo alto custo financeiro. Mas será que a preparação para ser treinador é uma preocupação dos treinadores atuais?

Recentemente há ex-jogadores que buscaram a formação acadêmica e chamaram a atenção do país por desempenhos dignos de elogios. Roger Machado, formado em Educação Física pela Faculdade SOGIPA, assumiu o time do Grêmio durante o Brasileirão de 2015 e promoveu uma organização tática no time que pouco se via no clube gaúcho em tempos. Com todos os méritos, conquistou o prêmio de técnico revelação do Campeonato. Analistas mostravam o tricolor gaúcho como exemplo de um futebol moderno, caracterizando o desempenho com termos como: time compactado, intenso, futebol de posse de bola, defesa em duas linhas de quatro e assim por diante.

A safra de treinadores descritos pela mídia como estudiosos, geralmente detentores de um diploma universitário tem crescido. Posso citar Jair Ventura (técnico do Botafogo), Fernando Diniz (vice-campeão paulista de 2016 com o Grêmio Audax), Zé Ricardo (técnico do Flamengo), Tite (técnico da seleção brasileira) e outros. O principal trunfo dos treinadores mencionados, os bons resultados somados à formação de times organizados taticamente, são comumente relacionados à sua preparação para exercerem a função de treinadores de futebol.

Há também treinadores já renomados que não tiveram nenhuma experiência como jogadores e tiveram sucesso como treinadores. José Mourinho, por exemplo, nunca jogou. Ele buscou o caminho dos estudos para sua formação e conseguiu alcançar enorme sucesso. Vanderlei Luxemburgo é outro. Apesar de não ser jogador, fez trabalhos reconhecidamente qualificados em diversos clubes do país, chegando a seleção brasileira e sendo um dos poucos técnicos brasileiros que treinaram um time europeu de ponta.

Mas a necessidade de estudo e preparação para a função de técnico não é um total consenso. Renato Portaluppi, ao ser campeão da Copa do Brasil em 2016 pelo mesmo Grêmio que anteriormente teve Roger no comando, soltou a seguinte frase: “Futebol é como andar de bicicleta. Quem sabe, sabe. Quem não sabe, vai estudar”, desdenhando dos técnicos estudiosos e das críticas que recebia (e recebe) por não ser (ou não transparecer ser) um cara voltado aos estudos do futebol e da Educação Física.

RS - FUTEBOL/CAMPEONATO GAUCO 2017/GREMIO X YPIRANGA - ESPORTES - Lance da partida entre Gremio e Ypiranga disputada na noite desta quinta-feira, na Arena, valida pelo Campeonato Gaucho 2017. FOTO: LUCAS UEBEL/GREMIO FBPA
O técnico Renato Portaluppi passa instruções para seus jogadores. Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

Este pensamento, na opinião deste estudante que vos escreve, é um tanto quanto ultrapassado, porque a preparação antes de fazer qualquer trabalho é muito importante. Se um médico precisa de anos de estudo e de residências antes de começar a atuar, porque o treinador de futebol não precisa se preparar para exercer sua profissão? Será que se Renato buscasse estudo e formação, ele não se tornaria um profissional melhor do que é hoje em dia?

Parece-me que o ex-atleta é visto como alguém dotado do saber futebolístico (adquirido empiricamente) e com condições de liderar um coletivo de atletas que reconhecerá tal saber. Liderança é a arte de comandar pessoas, atraindo seguidores e influenciando de forma positiva mentalidades e comportamentos, suma importância ao comandar um time de futebol. Julian Nagelsmann (técnico do Hoffenhein, formado em Ciências do Esporte e eleito o melhor técnico da Alemanha em 2016) diz: “Se você quer sucesso em curto prazo, conhecimento tático está bom, mas, para longo prazo, você precisa ter uma ideia de como gerir pessoas, como colocá-las para trabalhar junto, como lidar com os problemas pessoais dos jogadores. No fim do dia, um atleta que nem sempre faz tudo certo, mas que põe o coração no que faz é muito mais eficaz do que aquele que faz tudo 100% corretamente, mas está emocionalmente envolvido apenas pela metade”. De fato, a liderança é aspecto fundamental ao ofício de treinador e confiança do coletivo de jogadores é fundamental para tal tarefa. Para um treinador que não tenha jogador, é necessário assim conquista-la.

Penso que o treinador deve ser completo, o que envolve saber sobre métodos de treinamento, sobre táticas, sobre como gerenciar uma equipe e ser um líder para seu grupo. O estudo e o aprendizado sempre são bem-vindos para agregar novos saberes e manter-se atualizado.

Todos esses exemplos vieram para tentar argumentar contra a ideia de que o ex-jogador de futebol possa assumir um time sem nenhum tipo de preparação.

Dentro das alternativas de formação possíveis a um treinador, considero o diploma de Educação Física deveras importante inclusive porque o treinador, antes de tudo, é um professor e, como professor, deve ensinar. Como tal, ele deve ter conhecimento de pedagogia para conseguir escolher o melhor método para ensinar seus atletas seus conceitos e táticas que pretende aplicar.

Além disso, uma série de conhecimentos básicos obtidos nesse curso, como anatomia, fisiologia, nutrição e biomecânica, podem lhe auxiliar a trabalhar em melhor sintonia com toda a comissão técnica presente nos clubes atuais. Cabe reconhecer, contudo, que, se por um lado o curso de Educação Física fornece conhecimentos dessas várias áreas, não há o aprofundamento em cada campo de atuação ou modalidades específicas. As experiências em em competição, principalmente de alto nível, por exemplo, são raras (CUNHA apud CHAGAS, 2015). Isso demanda que esse profissional busque formações complementares, cursos preparatórios e especializados para terem competência nas funções que optam exercer – necessidade essa de todo profissional, não apenas do treinador de futebol.

Acredito, assim, na importância da junção de saberes – teóricos e empíricos – para ter um bom desempenho na função. E vejo que no Brasil, como meus exemplos apontaram, que já está havendo uma mudança na imagem do treinador, valorizando cada vez mais sua preparação. Possuo a esperança que esta valorização do profissional que busca se qualificar venha a melhorar mais e mais daqui pra frente.

 

Referências

CHAGAS, Gabriel. A formação acadêmica para os treinadores de futebol: ter ou não ter o diploma. 2015

http://universidadedofutebol.com.br/a-formacao-academica-para-os-treinadores-de-futebol-ter-ou-nao-ter-o-diploma/

https://www.significados.com.br/lideranca/

https://esporte.uol.com.br/futebol/campeonatos/espanhol/ultimas-noticias/2014/10/27/zidane-e-suspenso-por-3-meses-por-atuar-como-tecnico-do-real-sem-licenca.htm

http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-alemao/noticia/ciencia-do-esporte-e-lideranca-quem-e-o-tecnico-de-29-anos-que-encanta-a-europa.ghtml

[1] No momento o site da entidade oferece os cursos de formação de treinadores, treinamento de goleiros, preparação física, categorias de base e etc. Disponível em: http://www.cbf.com.br/cbfacademy/pt/licencas/?p=1&secao=&sm=&q= Acesso e 12 de maio de 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ian Massumi Carneiro Ogawa

Estudante de educação física, futuro técnico de futebol e aquele que vai mudar o jogo.

Como citar

OGAWA, Ian Massumi Carneiro. O futebol é como bicicleta? A formação de treinadores de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 95, n. 20, 2017.
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