72.9

O futebol que me dá nome

Ewerton Martins Ribeiro 25 de junho de 2015

Se valesse o desejo de minha mãe eu me chamava Eros, ou Elvis — ou pior: Everly. Por sorte, no frigir da burocracia cartorial eu calhei de atender pelo nome que está aí a assinar este texto: “Ewerton”. Diria graças a Deus se soubesse que o homem teve alguma influência nisso, mas o que motiva este texto é justamente o contrário: eu não sei graças a que eu acabei sendo nomeado assim. Na verdade, o curioso é que eu sei com exatidão, e é justamente por isso que eu, bem à moda socrática (o filósofo, não o jogador), sei que eu não sei. Permita-me explicar o absurdo desta história.

“Ewerton” foi ideia de um pai com bom gosto para o futebol – posto que atleticano – mas péssimo de ortografia, já que era, na verdade, fã do Éverton que jogou no Galo na década em que nasci, a de 1980, e quis, com meu nome, homenageá-lo. O jogador veio para o Galo em 1984 e ficou por aqui até o início da temporada de 1987, tornando-se o artilheiro do Galo em todas as temporadas que jogou pelo clube: 22 gols[1] em 1984, 34 gols em 1985 e 39 gols[2] em 1986. Com apenas três anos de Galo, Éverton consagrou-se como o 17º artilheiro da história do clube, com 95 gols[3].

Pois eis o mistério da fé — futebolística: Éverton chegou ao Galo em janeiro de 1984, mas eu nasci em novembro de 1981. Então como, em nome de todos os dezessete maiores craques do panteão de artilheiros atleticanos – Reinaldo, Dadá, Mário, Guará, Lucas, Said, Nívio, Nilson, Jairo, Éder Aleixo, Tomazinho, Rezende, Marcelo, Campos, Alvinho, Paulo Isidoro, Éverton! –, meu nome pode ter-me sido dado em homenagem a um craque do Galo que só viria a jogar no Galo três anos depois do meu nascimento?! Porque, quando eu nasci, o Éverton jogava no São Paulo: havia se transferido para o clube em 1980 sem nunca antes ter passado pelo Atlético. No ano do meu nascimento, 1981, o jogador inclusive ajudou o clube paulista a conquistar o campeonato regional. E ficou no São Paulo até o final da temporada de 1982, quando acertou com o Guarani, onde ficou até 1984, para só então vir para o Galo. Então como?!

Éverton jogava com a 9 — curiosamente, eu só calço uma chuteira de travas se o “professor” me der a camisa de número 6, lateral esquerdo de ofício que sou (menos pelo ofício e mais pelas limitações para qualquer outra posição). Vestido assim, com a 6, na iminência de alguma pelada, sempre acabo vendo-me como uma projeção verticalmente espelhada deste meu duplo; é como se eu estivesse mesmo de cabeça para baixo sob os seus pés, grama adentro, espelhado-esperando assim sacar da sua existência (pelos pés, que é por onde o jogo acontece) uma resolução para o enigma que é a minha própria existência, simbolizado pelo caráter absurdo do meu próprio nome.

Everton Nogueira. Foto: Galo Digital (reprodução).
Everton Nogueira. Foto: Galo Digital (reprodução).

Quando confronto meu pai com a falta de lógica dessa genealogia nomenclatória, o homem tergiversa e muda de assunto. Se insisto, o homem diz qualquer coisa estapafúrdia, acentuando o tom da discussão, de forma a escapar do absurdo histórico por meio da prerrogativa hierárquica.

— Sua mãe queria um nome com a letra “é”, não queria? Então. Dei o nome dele, ué.

— Mas na época o Éverton jogava no São Paulo, pai…

— Uai, moleque, e daí que ele jogava no São Paulo? E por acaso você tem alguma coisa contra o São Paulo? É preciso respeitar o São Paulo, oras. É preciso respeitar o São Paulo. O São Paulo teve o Zetti, vá me dizer que você não se lembra do Zetti? O Zetti era um grande goleiro, ora essas. Não acredito que você tem essa opinião sobre o Zetti…

Curiosamente, em 1981 havia no escrete do Atlético um jogador cujo nome começava com a letra “é”, portanto pronto para me nomear — e não era uma opção qualquer: era Éder Aleixo, simplesmente o 10º maior artilheiro da história do Galo. Então por que não “Éder”, em vez de “Éverton”? Nem pai nem mãe sabem dizer.

Em outro desses momentos em que pus meu pai contra a parede, o homem chegou a sugerir que tivesse escolhido o nome em homenagem ao jogador mesmo ele não sendo do Atlético na época, e sim do São Paulo.

— E que problema você vê nisso? Olha, do jeito que você anda eu acabo achando que você tem mesmo um problema com o São Paulo…

Se a hipótese já não soaria crível mesmo que o time em questão fosse um time qualquer, sendo ele o São Paulo, particularmente, o argumento do meu pai ganhava contornos ainda mais absurdos. Afinal, ao tempo do meu nascimento nós atleticanos estávamos engasgadíssimos com o clube paulista, que na final do Brasileirão de 1977 tinha sequestrado, nos pênaltis, o título de um Galo invicto.

De toda forma, na ocasião eu me dispensei de argumentar com o meu pai sobre o contrassenso que seria um atleticano dar ao filho o nome de um jogador do São Paulo naquela época, e não o de um craque do seu próprio time. Tampouco falei sobre o segundo absurdo que essa hipótese encerraria: a de que justamente esse jogador se tornaria, “por acaso”, o grande artilheiro do nosso time pouco tempo depois do meu nascimento, e por três anos seguidos.

Hoje percebo que não contra-argumentei porque na hora acabei relembrando de Guimarães Rosa, que escreveu que “muita coisa importante falta nome”, e acabei me entretendo com esse bonito pensamento.

Naquela hora, ao concordar com o escritor, não escapei de fazer um acréscimo bem pessoal ao seu achado, pensando naquele momento na importância desimportante que, para cada um de nós, têm as suas próprias coisas comezinhas, pessoais — e não escapo de lembrar aqui, agora, também, daquilo que alguém já disse, talvez Nelson Rodrigues: que o futebol é a coisa mais importante entre as coisas sem importância.

Naquele dia, pensando em Rosa, pensei que se para ele “muita coisa importante falta nome”, para mim, particularmente, muito nome importante falta explicação.

[1] Ou 21. (Conforme: ZILLER, Adelchi Leonello. Enciclopédia Atlético de todos os tempos: a vida, as lutas, as glórias do Clube Atlético Mineiro, o campeoníssimo das gerais. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Lemi, 1997).

[2] Com Nunes, que também fez 39 gols nesta temporada.

[3] Talvez 94, talvez 92. Fontes consultadas variam quanto a esse dado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ewerton Martins Ribeiro

Escritor de ficção, jornalista da UFMG, mestre e doutor em estudos literários e bicampeão brasileiro em 2021.

Como citar

RIBEIRO, Ewerton Martins. O futebol que me dá nome. Ludopédio, São Paulo, v. 72, n. 9, 2015.
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