10.9

O futebol: “veneno remédio” do Brasil

Paulo Nascimento 30 de abril de 2010

Se compararmos o cenário editorial atual ao de vinte anos atrás, podemos dizer sem grandes riscos de equívoco que são cada vez mais recorrentes, quantitativa e qualitativamente, as publicações que se apresentam para ter o futebol como seu principal mote. Contudo, grande parte dessas obras contém, como sendo sua razão de ser, uma interpretação de questões, digamos, adjacentes ao futebol ou à sociedade brasileira, sendo raros os que, com o devido vigor que o tema exige, abarcam tanto questões contextuais quanto análises referentes às especificidades dos modos de se jogar futebol.

Pois é essa a proposta do ensaio “Veneno remédio: o futebol e o Brasil”, de autoria de José Miguel Wisnik, publicado pela Companhia das Letras (2008). O autor, conhecido musicista e linguista, envereda pelo universo do futebol sem abandonar o campo que lhe consagrou, estabelecendo uma relação entre futebol, música e literatura com a propriedade e o sucesso de poucos. Assim, mantendo constante interação com as perspectivas metodológicas e interpretativas que são recorrentes na música e nas letras, sem, contudo, limitar-se a elas, Wisnik relaciona Machado de Assis com Pelé, envereda em elucubrações acerca das primeiras práticas do “esporte-bretão” em terras brasileiras, trata da propagação da prática do esporte nas primeiras décadas do século XX, e das várias participações brasileiras em Copas.

Ao tratar do trauma da Copa de 50, por exemplo, realizando o esmiúce da letra de “Touradas em Madri” (“delírio eufórico absoluto (p. 254)”, entoado na sonora vitória sobre a Espanha, por 6 a 1, por sinal última vitória antes da derrota para o Uruguai na final), e tratando dos elementos simbólicos, de dimensões psicológicas inclusive, que estavam postos nos jogos e na relação que a torcida brasileira estabeleceu com aquela equipe (digo eu, aqui, “torcida brasileira de um modo genérico”), Wisnik nos aponta que:

Esse fato [o empate do Uruguai na final], que garantia ainda ao Brasil um resultado favorável, é vivido, no entanto, como um desabamento surdo que desvela o inacreditável: o Outro existe. A situação é um momento emblemático de uma vicissitude do veneno remédio brasileiro: o outro, que subsiste tão naturalmente quando objeto de apropriação e paródia – vide as “Touradas em Madri” – existe com dificuldade quando reverte como limite (p. 261).

O mesmo apuro no discurso se faz presente em outros tantos relatos sobre as participações do Brasil em Copas: a redenção que a Copa de 58 veio a ser, o apogeu do estilo “poético” do time de 1970, as outras singularidades de outros títulos e de outras derrotas, e como estiveram envolvidos nessas tantas histórias jogadores, técnicos, torcida, imprensa, e nação brasileira como unidade.

Pois bem, até aqui, nada de muito diferente dos outros ensaios que foram feitos, fosse numa perspectiva sociológica ou não, com a pretensão de discutir as repercussões do futebol na sociedade brasileira, ou ainda sobre o jeito de se do povo brasileiro. O título do livro, por exemplo, remete-nos ao homem cordial que nos foi apresentado por Sérgio Buarque de Holanda, aquele que estabelecia uma relação entre público e privado sem separações rígidas, atrelando méritos e deméritos ao homem brasileiro, assim, sem uma escala precisa de medição sobre o começo de um e o término de outro. O que surge como diferencial nesse ensaio de Wisnik é a disposição em, mais do que discutir o racismo no futebol, as questões de gênero, a violência nos estádios, as nuances dos que operam nas instâncias superiores do poder, mais do que apresentar versões categóricas do porque o futebol ter se constituído e permanecer como um importante elo de identificação do brasileiro para com sua nação, seu diferencial consiste em propor uma discussão rara em grupos acadêmicos que se dispõem, de um modo mais ou menos intenso, em recorrer ao futebol em suas analises: tratar dos elementos técnicos próprios do jogo, que além de serem passíveis de análise (diferente, que fique claro, daquelas que nos são apresentadas por alguns veículos de comunicação antes, no intervalo ou após os jogos), são um dos grandes responsáveis pelo elevado grau de popularidade que a prática do futebol tem no mundo.

Sobre o componente bola, por exemplo, nos diz Wisnik:

O poder de irradiação do futebol é impensável sem uma fenomenologia da bola: esse objeto distinto de todos os outros (…), que rola e quiçá como se animado por uma força interna, projetável e abraçável como nenhum. A bola é redonda – não há como recuar diante da mais rotunda das obviedades. Ao contrário, é preciso redescobrir esse fato espantoso, que a distingue de todo o resto (pp. 57-58).

As considerações de ordem técnica se dão, também, no que tange às especificidades do futebol em contraste com outros esportes. Para exemplificar, surge-nos como justificativa a tal perspectiva a relação tempo-espacial que seria própria do futebol: as ações que não são absolutamente objetivas não decorrem necessariamente em prejuízo ao seu executor – caso do drible, por exemplo, que pode inclusive ser um importante elemento para desestabilização, senão explícita, implícita do adversário – enquanto que em outros esportes coletivos, uma prática “sem objetividade” como o drible decorre, necessariamente, perdas à equipe.

Outro exemplo, dos muitos do livro, sobre peculiaridades do futebol, seria o alto teor subjetivo concedido aos juízes, a quem cabe o veredicto se a bola ultrapassou toda a linha do gol ou não, se tal jogador tocou com a mão na bola intencionalmente ou não, se houve intenção de falta do zagueiro ou o mesmo apenas “foi na bola”.

Evocações a Pasolini, a Gilberto Freyre e às letras de música e textos de Chico Buarque também são feitas. Esse livro não deixa de ser uma declaração apaixonada de um torcedor de futebol – e não embuto nenhuma carga pejorativa quando faço tal constatação. Talvez um ponto não muito interessante seja que a classificação ensaio permita uma postura perigosamente conveniente para que o autor se esquive de discussões mais ardilosas (caso da presença dos negros no futebol, por exemplo, que é elogiada em boa parte da obra, mas quando emerge a possibilidade de uma perspectiva racialista ser problematizada, ela não o é).

Para encerrar, digo que um dos méritos do autor foi apresentar um pequeno memorial seu, logo ao início do livro, declarando sua relação visceral com o futebol, e explicitando ao leitor sobre onde é o ponto em que ele se situa para fazer suas observações.

É digna de reverência tal atitude, pois não escamoteia a parcialidade que é própria de alguns que se dispõem sobre seus objetos de análise e que, não percebendo – ou não querendo declarar – a parcialidade que é inalienável da condição humana, evocam o verniz da imparcialidade científica, fazendo com que esta se torne, em vez de vantagem, um calcanhar-de-aquiles de insuficientes análises. “Veneno remédio” esta à margem disso; os interessados por futebol e por discursos sofisticados agradecem.

Bibliografia
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Paulo Nascimento

Professor de História.

Como citar

NASCIMENTO, Paulo. O futebol: “veneno remédio” do Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 10, n. 9, 2010.
Leia também:
  • 73.2

    Dunga, sua frase racista e o que mudou de 1994 pra cá

    Paulo Nascimento
  • 57.5

    Racismo e homofobia não fazem parte do jogo

    Paulo Nascimento
  • 51.3

    Futebol não é religião

    Paulo Nascimento