160.27

O jogo e o jeito de ser brasileiro: uma observação ao ensaio de Vilém Flusser (1998)

Introdução 

Este artigo visa refletir a respeito do ensaio “A Fenomenologia do Brasileiro” de Vilém Flusser (1998) e sua maneira de olhar o jeito de ser brasileiro partindo de suas análises sobre jogos e brincadeiras e assim entender quais as influencias que suas perspectivas poderiam ter na Educação Física escolar.

A escolha deste ensaio específico, deve-se ao fato do mesmo corresponder ao material utilizado na disciplina de Pesquisa em Ciências da Educação e apresentada por este aluno no ano de 2021 ao Programa de Mestrado em Educação da UFMT (PPGE/UFMT).

O contato com o ensaio de Flusser (1998) apresentou uma importante perspectiva a respeito do Brasil e do que significa ser brasileiro aos olhos de um imigrante, o que por sua vez culminou no desejo de se observar o que as percepções do autor poderia contribuir para a Educação Física e como o olhar apresentado por este imigrante agregaria a aplicação dos jogos e brincadeiras, nos ambientes educacionais. Afinal,

[…] o próprio homem não consegue perceber de verdade e assimilar integralmente sequer a sua própria imagem externa, nenhum espelho ou foto o ajudariam; sua autentica imagem externa só pode ser vista e interpretada por outras pessoas, graças a distância espacial e ao fato de serem outras […]. No campo da cultura, a distância é a alavanca mais poderosa de interpretação. A cultura do outro só se revela com profundidade […] aos olhos de outra cultura. (BAKHTIN, 2017 p.18-19)

E é partindo da visão extraterritorial e cultural de Flusser (1998), que este artigo pretende proporcionar análise do assunto expondo diferentes leituras do mesmo, para então encontrar uma janela que nos permita ver como o jeito de ser brasileiro apresentado pelo autor supracitado, pode refletir na Educação Física escolar partindo de suas comparações sobre jogos e brincadeiras.

Este texto refere-se a uma pesquisa qualitativa bibliográfica, na qual será analisado o ensaio de Flusser (1998) discutindo-o com as obras de Caillois (1990), Huizinga (2000), Oliveira & Gomes (2013) e Oliveira & Gomes (2008), sendo que as escolhas destes textos se devem ao fato de que o primeiro se refere ao olhar de um imigrante a respeito do jeito de ser brasileiro a partir de sua descrição de jogo e os demais textos à pensadores do jogos e brincadeiras.

Tal artigo seguirá o seguinte roteiro: O item 1 corresponde a sua Introdução; o 2: O Olhar do Imigrante; o 3: O jogo e o jeito de ser brasileiro e o 4: Algumas contribuições para a Educação Física escolar.

Para iniciar a observação, propomos que façam a seguinte reflexão:

Imagine uma pessoa olhando da arquibancada um determinado jogo sendo este integrante da torcida do time visitante o qual está vencendo a partida …

Ela verá como seu time joga para vencer e também verá como um dos jogadores do time adversário tenta a todo custo mudar as regras do jogo, mas talvez não veja como o juiz que deveria ser imparcial, favorece o time visitante como vê um torcedor do time de casa. Quem sabe, nenhum dos dois contemplariam nesse jogo, como o time visitante dispões de maior investimento em seus jogadores da mesma maneira que o técnico do time de casa vê, ou quem sabe nenhum dos três teriam em seu campo de visão as dificuldades de se jogar essa partida, sendo o jogador do time de casa, que por sua vez tenta a todo custo jogar para mudar as regras do jogo, prevendo uma derrota eminente.

Imagine também que as quatro visões fossem descritas em um mesmo folhetim. Quem o lesse talvez tivesse uma perspectiva muito diferente das realidades deste jogo. Quem sabe até um olhar mais compreensivo.

E é esse o objetivo desta deste artigo. O de apresentar diferentes visões e assim ter uma imagem diversificada do jogo de ser brasileiro para então encontrar algo que contribua para a educação física escolar.

Comecemos então…  

Vilém Flusser
Vilém Flusser em 1940. Fonte: Wikipédia

O Olhar de um Imigrante

O observador utilizado para apresentar esse ponto de vista, será Vilém Flusser em seu ensaio “A Fenomenologia do Brasileiro” (1998).

Em seu texto Flusser (1998) retrata que “este ensaio assumirá o ponto de vista de um intelectual burguês brasileiro, imigrado da Europa” (p. 6) deixando claro que sua perspectiva será incomum ao retratar o que significa ser brasileiro, fornecendo-nos importantes contribuições, já que trata de uma perspectiva de alguém que vem de fora e não está em todo imerso no contexto brasileiro.

Utilizando-se de uma pesquisa fenomenológica, o autor buscou observar diferentes aspectos da sociedade brasileira, sem lhes atribuir juízo de valor e ater-se apenas aos fatos observados, fato este, que pode ser detectado na seguinte fala do autor:

Quanto ao método a ser seguido neste ensaio: será empreendida a tentativa de dar um passo para trás com relação à situação de um intelectual brasileiro imigrado, para ver tal situação à distância e permitir que ela própria se articule. Isto significa que será feita a tentativa de abandonar todo preconceito e todo valor antes de dar o passo. Tal método constitui, geralmente, o método da fenomenologia. (FLUSSER, 1998 p. 6)

É importante destacar, que a busca por neutralidade do autor é algo comum a aqueles que se propõem ao ramo das pesquisas sociológicas, haja vista, que como aponta Maffesoli & Icle (2011) no que tange a pesquisas que se dispõem a fenomenologia “[…] o trabalho do pesquisador não deve se situar em relação à moral. Ele também não deve se situar em relação a uma atitude militante. […] é essa a base mesmo da pesquisa: ela não é moral. Ela não é ética. Ela é neutra. Ela faz uma constatação das coisas” (p. 523-524). Mas como expresso por Flusser (1998), ainda que neutra e eximida de militância e pré-conceitos,

[…] este ensaio se distancia da nossa situação, assume um ponto de vista específico, procura projetar daí uma imagem da situação, na esperança que tal imagem possa servir, em conjunto com outras, a uma orientação na situação e de trampolim para a sua modificação – portanto, para um engajamento. (p. 4)

Diante E inspirada nesse discurso ne Flusser (1998), que este artigo se utiliza da metáfora janela para descrever o distanciar e enfocar dos pontos de vista, aqui descritos para que sirva ao pensamento crítico.

Neste ensaio o autor descreve, que as vistas de um imigrante, a população urbana se apresenta amorfa e heterogenia, amorfa porque não tem uma característica bem definida e mesmo que fale uma mesma língua não estrutura através dela. E heterogenia porque é fruto de uma mistura dos descendentes da população rural que migraram aos centros urbanos, dos descendentes dos imigrantes, dos negros que no passado foram trazidos da África e aqui escravizados e que mesmo compondo uma grande parcela da população não tem peso decisório na sociedade e uma elite que representa uma parcela minúscula da população, ainda assim goza de luxos e é símbolo da grande desigualdade social.

Já a população rural é basicamente composta pela mistura dos descendentes dos primeiros colonizadores, dos africanos e dos índios, sendo que das suas principais características segundo Flusser (1998), está o sincretismo religioso, no qual há uma mescla dos ritos católicos, indígenas e africanos, a grande resiliência à extrema pobreza e aos impropérios da natureza, além do orgulho e senso de dignidade inescrutáveis aos de fora.

Flusser também menciona o grupo de descendentes dos portugueses que mesmo correspondendo a uma elite desposta, constitui-se uma importante chave para desvendar a mentalidade brasileira, dado ao fato de que a mesma se apresenta, aos olhos do autor, como uma mentalidade aberta e sedutora.

Para Flusser (1998), a complexidade da interação de um imigrante com o povo brasileiro se dará exclusivamente pela sua resposta interna, isso porque, aos seus olhos, esta sociedade se revela de fácil penetração e de difícil integração, já que a população urbana, diferente da rural, não apresenta resistência ao estrangeiro e comporá na grande maioria das vezes o ambiente virtual deste, cabendo-lhe, integrar-se a massa, ou resisti-la com sua bagagem cultural, ou ainda, engajar-se em transformá-la ao passo que é transformado por ela, mas o ponto crucial dessa interação está no fato de que “tornar-se brasileiro é difícil, porque as estruturas brasileiras estão escondidas, e ninguém é brasileiro” (p. 14), o que por sua vez, conduziu o autor ao questionamento do que significa ser brasileiro.

Diante desta questão, Flusser (1998) começa retratando que ser brasileiro não significa ser exatamente americano, não pelo menos como os Estados Unidos da América (USA) o é, pois, embora os dois países tenham sido colônias de países europeus, sua colonização se deram de maneiras distintas, já que, os colonizadores que adentraram aos USA o fizeram em busca de estabelecer um Novo Mundo e para tal, exterminaram quase que por completo seus nativos e os poucos que restaram foram empurrados para os cantos do pais, apropriando-se da terra e fazendo de sua população predominantemente de origem europeia. Já no Brasil, esse processo de colonização deu-se em função de explorar a terra e adquirir riquezas e sem obterem êxito diante de da natureza dura do território, foram gradativamente perdendo o contato com suas origens, misturam-se aos negros aqui escravizados e a população indígena nativa, o que por sua vez, fez esse povo bem diferente da população norte-americana, a qual recebe o imigrante europeu com as boas novas do novo mundo em oposto ao ambiente de hostilidade do território brasileiro que muito sofreu com exploração no passado, o que por sua vez, segundo o autor, gerou em seu povo uma sensação de não ser parte da história e sim sofredor dela.

Em busca de encontrar uma boa maneira de descrever a essência de ser brasileiro, Flusser (1998) sugere o termo “Três Raças Tristes”, o qual serve para se observar o fato de que a sociedade brasileira é o fruto de uma mistura, ou melhor dizer, de uma síntese na qual a matéria base foram os escravizados trazidos da África, os indígenas aqui explorados e o os colonizadores portugueses, formando assim, um resultado único em que cada uma das raças e até outras podem ser encontradas em um único indivíduo, somando suas essências e elevando-as.

No entanto, apresentam-se tristes, porque, ou foram eliminados da história ou nunca fizeram parte, pois os portugueses que deram origem a esse povo a muito perderam o contato com suas raízes, e aos escravizados e indígenas que se somam a esta mistura se quer fizeram parte do que se chama história neste contexto, fazendo do cenário brasileiro um ambiente a-histórico, no qual a mentalidade brasileira se constrói na subjetividade de cada um, e é vista na capacidade de sintetizar os opostos de forma espontânea, cabendo ao imigrante que se insere neste ambiente com a finalidade de integrar-se, a atitude afastar-se para observar como ele se apresenta e a partir daí criar um mapa que possibilite sua integração, sabendo que neste processo mudará o ambiente e por este mesmo ambiente será transformado.

Construído o mapa pretendido, Flusser (1998) revela que sua pretensão é a de que seja encontrada a essência brasileira no brasileiro, de modo que o ensaio seja assim dialogado por seus públicos alvos (brasileiros e europeus) e questionado a fim de ser respondido.

Desta forma, seu primeiro diagnóstico do exposto é que diferente do continente norte americano, o Brasil encontra-se completamente isolado da Europa pois segundo Flusser (1998):

Quem tentar ver o globo do ponto de vista de astronauta na Lua (de astronauta interessado não na Lua, mas na Terra, e equipado com instrumentos que permitem observar a Terra), terá a seguinte visão da humanidade: ela não está distribuída uniformemente, mas vive em oito aglomerações, das quais seis no hemisfério norte e duas no hemisfério sul, e são estas: no leste norte-americano, na Europa, no norte da Índia, na península malaia, no arquipélago da Sonda, no leste chinês (incluindo o Japão), no ocidente africano e no sudeste sul-americano. As aglomerações se unem entre si por numerosos canais comunicativos, exceção feita à primeira e à última, que são isoladas. Isto sugere que as duas aglomerações não surgiram “espontaneamente”, mas deliberadamente, por salto. Mas, se o telescópio do astronauta for realmente bom, descobrirá que a aglomeração norte-americana está ligada por inúmeros fios tênues à europeia, enquanto que a sul-americana está isolada. O astronauta concluirá o seguinte: a humanidade composta por mais de três bilhões de indivíduos vive em aglomerações ligadas entre si, exceção feita a um grupo, com aproximadamente 120 milhões de indivíduos, que foi expulso da comunhão dos homens. (p. 96-97)

E tal vez por este isolamento, inconscientemente não trilhe o mesmo caminho ideológico em que separa o homem ideal do homem concreto negligenciando sua subjetividade, seus sonhos e sentimentos.

Para compreender o jeito de ser brasileiro, o autor propõe olhar a maneira que o brasileiro age a partir de três formas de se vivenciar um jogo, sendo elas: a de jogar para vencer, assumindo a possibilidade da derrota; o de jogar para não perder, diminuindo o risco de ser vencido e o de jogar para mudar o jogo, sendo o último pertinente a conduta brasileira, que ocorrem não por demagogia ou ideologia, mas que inconscientemente, faz do brasileiro homo ludens, de modo que termos como “o brasileiro trabalha brincando e brinca trabalhando” (FLUSSER, 1998 p. 100) caracteriza sua subjetividade agregada ao racionalismo do trabalho, mudando as regras do jogo no trabalho, ponto este que será melhor discutido no item seguinte.

Por fim, o autor aponta que a melhor maneira de descrever o que significaria ser brasileiro está em entender que mesmo havendo nos seios do Brasil a miséria, as desigualdades sociais e manipulação externa, o mesmo faz graça agindo na contramão dos elementos.

Vilém Flusser
Vilém Flusser em 1984. Fonte: Wikipédia

O jogo e jeito de ser brasileiro 

Para iniciarmos a discussão destete item, começaremos pela seguinte fala retirada das observações fenomenológicas de Flusser (1998), o qual aponta que:

Era uma vez um menino, de cinco anos, que vivia numa instituição de acolhimento, certo dia, algumas pessoas visitavam a instituição, uma delas perguntou para o menino, qual seu nome? Rapidamente ele respondeu outro nome que não era o seu, na sequência contou algumas histórias sobre os funcionários, foi repreendido por conta da “mentira”, mas não retirou o nome fantasia que deu a si próprio. Este episódio teve vários desdobramentos para o menino com advertência verbal e ameaças de que poderia perder algum privilégio, como por exemplo, um passeio.

Alguns orientadores me contaram este episódio “mentiroso”, segundo eles, por parte do menino que mentiu o nome e levantou calúnias sobre os funcionários. Ouvi atentamente todos e passei a pensar nesta “brincadeira” da criança, logo me fez relacionar ao filme O contador de história, que na sua imaginação e fantasia o menino podia distanciar-se de sua realidade contando histórias fantásticas (OLIVEIRA & GOMES, 2013 p. 58)

Neste caso, menino busca burlar as regras do jogo utilizando da fantasia como escape de sua realidade, conduta esta, descrita por Flusser (1998) no que tange a atitude brincante do brasileiro frente as adversidades da vida, isso porque, a realidade vivenciada por estas crianças acaba por retirar-lhes muitas de suas necessidades individuais já que:

A realidade em algumas instituições de acolhimento ainda prima por espaços com elevado número de crianças, rotinas que não respeitam a individualidade, seja exemplo, as crianças não possuir objetos pessoais, tais como gavetas para seus pertences, roupas, calçados, produtos de higiene, copo para tomar água (todas usam o mesmo copo, muitas vezes em fila) sem deferência a questões de higiene e construção de autonomia. Estas e outras formas de atendimento caracterizam ausência de cumprimento da lógica prevista no ECA para abrigo de proteção e acolhimento, igualmente, total desrespeito a dignidade das crianças. Com relação à autonomia, na tentativa de conquistar o “seu espaço” algumas crianças exercitam o seu protagonismo, com uma conotação de “transgressão”, como por exemplo, um garoto, que escondeu alguns livros que ganhou na escola, num buraco de ar condicionado. (OLIVEIRA & GOMES, 2013 p. 62)

Tal situação relembra a descrição de Flusser (1998), no qual aponta que o jogador vendo as regras, situação do jogo e prevendo o resultado, acaba por querer mudar os rumos deste já que insatisfeito com sua situação atual e prevendo o final, já que o brasileiro através da futurologia “Procura ela descobrir as regras do jogo, os elementos do jogo, a situação atual do jogo, e os lances possíveis. Se todos os lances possíveis no jogo resultarem em situação indesejável, propõe a futurologia que sejam mudadas as regras, ou os elementos, ou ambos” (p. 100), assim como um menino que vê sua individualidade se esvaindo, busca subverter as regras e assegurar seu protagonismo mesmo que pareça ir contra as regras do jogo.

A função de jogo como um escape para as realidades sócias, também foi descrita por Huizinga (2000), o qual descreve que o jogo está presente na vida do indivíduo como uma extensão de sua subjetividade, bem como estabelece vínculo nas relações em sociedade e é imprescindível a vida do homem, já que, como descreve em seu livro, o jogo está presente em todas as áreas da vida social e individual, sendo ele algo inerente ao ser humano, já que:

[…] em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele se torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma parte integrante da vida em geral. Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida toma-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua significação, a seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais, em resumo, como função cultural. (p.11)

Deste modo, a restrição da ludicidade na vida da criança acaba por gerar uma sequência de efeitos catastróficos como nos casos estudados por Oliveira & Gomes (2008), em que seu objeto de estudo, a saber, os jovens em regime de privação de liberdade no sistema socioeducativo, relembram que suas experiências brincantes foram interrompidas ao passo que adentram a criminalidade como podemos ver no seguinte relato:

A amostra revelou que as brincadeiras de infância estão presentes em sua experiência lúdica, porém, com certo predomínio de sentimento de perda, dessa fase que foi interrompida com a convivência com as drogas, com o crime e, em alguns casos, com o início precoce na participação em festas de adultos, fazendo uso de álcool, ainda muito criança. […]. Os depoimentos que foram analisados mostram como a ludicidade vai sendo esquecida na experiência dos sujeitos, conforme vão entrando no mundo do cometimento de atos infracionais, qualquer que seja a natureza. (p. 119-120)

Neste caso, a privação de uma infância lúdica, acabou por inserir, estes jovens no que Caillois (1990) define como corrupção dos jogos, que é quando a barreira e as “leis” que dividem a vida comum e o jogo são derrubadas de modo que “o que era prazer se torna ideia fixa; o que era evasão torna-se obrigação; o que era divertimento torna-se paixão, obsessão e fonte de angústia” (p. 66), pois:

Para adaptar a vertigem a vida quotidiana, urge passar dos rápidos efeitos da física aos poderes ambíguos e confusos da química. Solicita-se, então, às drogas e ao álcool a excitação desejada ou o pânico deleitoso que, de forma violenta e brusca, os aparelhos da feira proporcionam. Mas, desta vez, o turbilhão não está fora nem sequer separado da realidade. Está instalado e desenvolve-se nessa realidade. Se, de forma análoga à vertigem física, essa embriaguez e essa euforia conseguem também destruir por uns tempos a estabilidade da visão e a coordenação dos movimentos, libertar do peso da lembrança, dos horrores da responsabilidade e da pressão do mundo, a sua influência não termina quando desaparecem os seus efeitos, já que alteram lentamente, mas de forma duradoira, o organismo. Tendem a criar uma insuportável ansiedade, uma necessidade permanente. Encontramo-nos, desta feita, nos antípodas do jogo, atividade sempre contingente e gratuita. Pela embriaguez e pela intoxicação, a busca de uma vertigem provoca uma irrupção crescente a nível da realidade, tanto mais longa e perniciosa quanto mais provoca uma habituação que torna cada vez mais afastado o limiar a partir do qual se experimenta o distúrbio desejado. (p. 72-73)

No caso destes jovens pesquisados por Oliveira & Gomes (2008), a característica de mudar as regras do jogo descrita por Flusser (1998), foi para além do fazer graça com as adversidades da vida, corrompendo as próprias regras do jogo e conduzindo-os a um comportamento autodestrutivo, a fim de fugir do peso de suas realidades sociais.

Deste modo, vê-se com clareza, que o jogo tem papel fundamental na vida tanto das crianças como também dos jovens aqui descritos, e se apresenta algo essencial para a assimilação e alivio do peso imposto pelas desigualdades sociais do povo brasileiro. Desigualdades estas, descritas por Flusser (1998) em seu ensaio, das quais o autor aponta que o brasileiro, faz graça como forma de superá-las.

Algumas contribuições para a Educação Física escolar 

Diante do prospecto outrora apresentado, podemos observar que jogar e ser brasileiro está intimamente ligado, pois como apontado por Flusser (1998 p. 100), “o brasileiro trabalha brincando e brinca trabalhando”, faz graça com a música e o barulho, e taxa como característica cultural básica o futebol, o carnaval e a loteria, pois acredita que com alegria, ludicidade, subjetividade e divertimento, escapará de seu abandono, sendo este povo homo ludens em sua essência.

Entendendo o importante papel do jogo, a primeira contribuição a ser descrita é a característica do jogo de falar a respeito de seus jogadores pois “o jogo possibilita a percepção total da criança” (Oliveira & Gomes, 2008 p. 117), já que como outrora descrito neste artigo, as experiências brincantes tanto dos jovens com das crianças, revelavam muito de suas realidades sociais, trazendo importantes informações para promoção de uma educação humanizada.

A segunda contribuição a ser apresentada, está na própria qualidade de distensão da vida comum presente no jogo, sendo um importante elemento para a assimilação da vida real daqueles que o praticam. Mas para tal, o professor deve compreender que para que isso ocorra, o jogo e a brincadeira deve sofrer o mínimo possível de interferência, diferentemente dos casos relatados por Oliveira & Gomes (2010).

A última das contribuições que aqui queremos descrever, é que o jogo é também um referencial da cultura de uma sociedade estando em todos os seus setores e aspectos da vida comum, e deste modo compõe um instrumento para entender o comportamento cultural da localidade na qual os alunos estão propiciando uma formação significativa sua comunidade.

Referências 

BAKHTIN, Mikhail (1895-1975). Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Bocharov. São Paulo, Editora 34, 2017.

CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Edições Cotovias, Lda., Lisboa, 1990.

FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do Brasileiro: Em busca de um Novo Homem. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.

HUIZINGA. Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva 2000.

MAFFESOLI, Michel & ICLE, Gilberto. Pesquisa como Conhecimento Compartilhado: Uma Entrevista com Michel Maffesoli. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 2, p. 521-532, maio/ago. 2011. Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade . Acesso em: 25 de março de 2021.

OLIVEIRA, Sonia Cristina de; GOMES, Cleomar Ferreira. Os jogos e brincadeiras de adolescentes privados de liberdade: uma possibilidade na prática educativa. Revista da Faculdade de Educação. Cuiabá, MT: UFMT Ano VI nº 9, p. 115-128, jan. / jun. 2008. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/ppgedu/article/view/3612/2884. Acesso em: 16 de maio de 2020.

OLIVEIRA, Sonia Cristina; GOMES, Cleomar Ferreira. Brinco, fantasio, mudo de nome e transgrido para brincar: experiências brincantes de crianças sob a égide da proteção integral. Revista Eletrônica de Educação. São Carlos, SP: UFSCar, v. 7, no. 1, p. 56-69, mai. 2013. Disponível em http://www.reveduc.ufscar.br. Acesso em: 16 de maio de 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Alexandre Queiroz de Azerdo

Licenciado e Educação Física pela Universidade do Estado de Mato Grosso  (Unemat). Prós graduado em Educação Física na Escola pela Universidade Pitágoras Unopar. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (PPGE/UFMT) com focos de pesquisa em Jogos e brincadeiras como proposta de Ensino em Educação Física; Educação e Ludicidade; Formação de Professores.Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Corporeidade e Ludicidade (GEPECOL)

Como citar

AZEREDO, Wagner Alexandre Queiroz de; GOMES, Cleomar Ferreira. O jogo e o jeito de ser brasileiro: uma observação ao ensaio de Vilém Flusser (1998). Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 27, 2022.
Leia também:
  • 161.19

    A implantação das escolas militares no Brasil: um fait accompli e seus efeitos

    Wagner Alexandre Queiroz de Azeredo, Cleomar Ferreira Gomes