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O “lugar” do negro no futebol brasileiro

Filipe Fernandes Ribeiro Mostaro 17 de outubro de 2019

Não deveria chamar atenção e ter uma repercussão grande dois treinadores negros, que foram destaque como jogadores, estarem se enfrentando na área técnica. Para mim isso é a prova que existe um preconceito, à medida que a gente tem 50% da população negra e a proporcionalidade que se representa não é igual. A gente tem que se questionar: se não há preconceito no Brasil, por que os negros tem um nível de escolaridade menor que os brancos, por que a população carcerária é 70% negra, por que quem mais morre são os jovens negros no Brasil…

Este foi um dos trechos da contundente e lúcida entrevista do atual técnico do Bahia, Roger Machado, após a derrota de seu time por 2 a 0 para o Fluminense. Suas declarações foram um oásis no deserto de reflexões e ideias que se tornaram as coletivas pós-jogo no Brasil. Seja por culpa das perguntas banais que beiram a mediocridade ou do media training dos técnicos, uma resposta que expande as quatro linhas é algo, infelizmente, inesperado.

Além de sua precisão nos argumentos, a fala de Roger nos instiga a questionar o motivo de termos apenas dois treinadores negros na primeira divisão do torneio. O jornalista Mario Filho escreveu em 1947 um livro clássico para as pesquisas sobre esporte no Brasil: O negro no futebol brasileiro. Em sua visão, considerada por alguns pesquisadores como “romântica” e influenciada pelas ideias do amigo e sociólogo Gilberto Freyre, Mario Filho acreditava que a destacada presença do negro no esporte mais popular do país era um exemplo de “democracia racial”. Anos mais tarde, após observar os reflexos da derrota em 1950 e das vitórias em 1958 e 1962, relativizou sua argumentação inicial, incluindo dois capítulos a sua obra: a provação do preto (sobre 1950) e a vez do preto (1958 e 1962). Apesar de dentro de campo o mestiço ter auxiliado no bicampeonato, isso não significava que a “democracia racial” tinha chegado ao país. Em outras esferas o negro ainda era (e até hoje é) estigmatizado. O talento dos nossos mestiços era uma arte que precisava ser “domada” e “orientada” por uma “organização” que seguiria o modelo europeu, branco e elitista. Esta organização, tutelada pela elite, estaria a cargo do treinador de futebol.

Para iniciar este debate, é fundamental observamos como o conceito de treinador foi construído no Brasil. Em minha pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ, foquei neste “perfil exigido” dos treinadores da seleção brasileira de futebol ao longo das Copas do Mundo. Os resultados desta investigação nos dão caminhos para analisar a constatação de Roger Machado.

Roger Machado e Marcão em campanha contra o racismo no futebol. Foto: MAILSON SANTANA/FLUMINENSE FC.

Parto do princípio de que o futebol, como uma manifestação cultural importante, estimula imaginários e narrativas que podem ser expandidas para outros setores. Tentar manter o controle destas narrativas é algo decisivo para os grupos que disputam esses imaginários. Quando falamos de seleção brasileira, por exemplo, o que podemos notar é que a projeção deste conceito de treinador nos jornais sempre passou pela tutela da elite nacional, que comanda o futebol brasileiro desde a criação da CBD. Do “doutor” Píndaro de Carvalho em 1930 ao “gestor” Tite em 2018, podemos notar uma série de interações entre diferentes campos que vão definir qual será o “perfil” do treinador da seleção a cada competição na narrativa da imprensa.

A chegada do treinador no Brasil passou pela ideia de um “professor” vindo de outros países, mais frequentemente da Inglaterra, que ensinaria aos jovens oriundos de classes mais abastadas “os segredos do esporte”. Ter um treinador era sinônimo de status social para os clubes que podiam pagar por essas aulas, mesmo seus atletas sendo amadores. A expressão se enraizou no imaginário nacional, e até hoje notamos referências aos treinadores como “professores”.

Entretanto, com a sua rápida popularização, diferentes camadas da sociedade passaram a praticar o futebol, e, aos poucos, jovens de outras classes sociais foram inseridos em “clubes da elite”. O papel do treinador, além de ensinar, passou a ser também o de disciplinar esses atletas para se “adequarem” aos “clubes”. Logicamente, existe uma disputa entre esse “obedecer” e “não obedecer”, que trará ao longo dos anos a fama de “rebeldes” aos jogadores que não cumprem a “adequação” pretendida.

Essa popularização culminou na profissionalização do esporte. Nesse sentido, concordamos com o pesquisador inglês Stephen Wagg ao destacar, em seu livro The football world: a contemporary social history, que o treinador seria, nesse cenário, a ponte entre capital e trabalho. Alguém que estaria na linha de frente dos confrontos entre dirigentes e jogadores. Além de incutir os ensinamentos pretendidos pelos dirigentes, o treinador se tornaria um “gerente” responsável pelos resultados e o foco principal das críticas no caso de derrota, o que culmina, na grande maioria das vezes, na sua troca por outra “peça”, mantendo toda a estrutura acima dela intacta.

Roger Machado comanda treino do Bahia na véspera do jogo contra o Fluminense, válido pela 25ª rodada do Brasileirão de 2019. Foto: Felipe Oliveira/Esporte Clube Bahia Oficial.

Essa tutela dos dirigentes, representantes da elite nacional, definiria quem teria “o perfil” para tal cargo. A interação entre o mundo político, econômico, social e militar com o esportivo é nítida ao observarmos as escolhas desses dirigentes. Alguns deles flutuam entre esses campos, saindo de presidência de clubes diretamente para cadeiras em Assembleias e Câmaras, tanto municipais, estaduais e federais. Durante o Estado Novo, Adhemar Pimenta, treinador da seleção na Copa de 1938 foi o primeiro a usar o termo “convocação” para os jogadores, como se estivessem realmente indo para uma “guerra”, indicando uma relação vicinal com o campo militar. Outro exemplo é Claudio Coutinho, capitão do exército, que foi treinador na Copa de 1978, durante a ditadura militar. Obviamente que outras interações determinam tais escolhas e na pesquisa completa é possível ter uma visão mais ampla do argumento que aqui queremos trazer para analisar a fala de Roger.

Em síntese, podemos novamente nos remeter a Stephen Wagg (1984), que, parafraseando Karl Marx, entende que os técnicos fazem suas histórias, mas certamente não as fazem em situações comandadas por eles. Concordamos com tal análise e, neste sentido, cabe aqui um apontamento que julgamos importante e sintetiza a tutela da elite. Se apenas o “sucesso” na esfera esportiva fosse fundamental para assumir o cargo de treinador da seleção, como a compreensão do jogo por quem já esteve lá e “brilhou”, por exemplo; não parece estranho que, com tantos jogadores negros e mestiços que possuem tais atributos, nenhum tenha assumido a seleção? Essa elite tutelaria algum desses jogadores a assumir por conta de seu capital esportivo ou por conta de seu capital social, que grosso modo significaria uma aproximação e/ou uma relação direta com essa elite? Por mais complexa que seja essa questão, sinalizamos que “estar adequado” à elite será o principal fator, excluindo os demais, que podem ser justificativas amenizadoras do conflito caso o primeiro item seja cumprido.

A análise deste processo narrativo sobre o perfil do treinador na seleção traz elementos que podemos usar no caso de Roger. Em uma sociedade racista e preconceituosa, com uma elite que se nega a discutir a questão da escravidão, tutelar negros em qualquer local de destaque, seja ele qual for, é algo extremamente difícil. Ser a ponte entre capital e o trabalho nos clubes de futebol no Brasil é um cargo usado constantemente como escudos para os cartolas. O “lugar” demarcado no futebol para esses agentes parece bem definido. A tal “democracia racial” vista dentro de campos com os negros e mestiços, Pelé e Garrincha, por exemplo, ocupando lugar de destaque, não é vista nos cargos de dirigentes esportivos e de federações. Nessas instituições, uma classe rica, branca e elitizada continua no comando e, salvo exceções, prefere colocar como seu “gerente”, técnicos que cumpram a sua “cartilha”. Indo além, na estrutura racista construída pelos anos de escravidão e que ainda permanece enraizada no Brasil, estar no local da “organização” é um “lugar” negado ao negro. Ah, então como você explica o Roger e Marcão serem técnicos? Bom, para você que ainda não entendeu que isso é algo estrutural de nossa sociedade e que também se reflete no esporte, Roger respondeu de forma brilhante: “Nós precisamos sair da fase da negação! Negar e silenciar é confirmar o racismo!”


Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Filipe Mostaro

Doutorando em Comunicação pelo PPGCOM - Uerj com bolsa CAPES. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ (2014). Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2006), especialização em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte pela FACHA-IGEC-RJ (2012). Foi bolsista de Apoio Técnico a Pesquisa do CNPq - Nível 1A no projeto LEME (Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte) - UERJ de 2014 a 2015. Pesquisador do Grupo Esporte e Cultura da UERJ. Integra também o Grupo de Pesquisa Comunicação e Esporte, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Autor do livro GARRINCHA X PELÉ: influência da mídia na carreira de um jogador (2012). Atua principalmente nos seguintes temas: comunicação com ênfase em Rádio, TV, Jornalismo Esportivo, Copas do Mundo, representações, narrativas midiáticas e identidade nacional.

Como citar

MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro. O “lugar” do negro no futebol brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 124, n. 18, 2019.
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