Frequentemente escutamos e lemos na mídia o epíteto “Brasil, o país do futebol”. Repetido diversas vezes e vendido para o exterior como uma das imagens que melhor retratam o país, o epíteto merece uma investigação mais cuidadosa. Primeiro, por conter expressiva força simbólica que contribuiu para a construção da idéia de identidade brasileira. Segundo, porque até pouco tempo costumávamos rejeitar outras formas de nos reconhecer como nação. E terceiro porque, paradoxalmente, em certos momentos, o epíteto é usado com valor negativo, do tipo “este não é um país sério”.

Torcedora do Brasil. Foto: Raquel Santana.

É especialmente nas Copas do Mundo que o “país do futebol” ganha dimensão mais notável. A derrota na final para o Uruguai em 1950 e a conquista do tricampeonato em 1970 foram sentidas como derrota e vitória da própria nação brasileira. Recentemente, porém, as narrativas jornalísticas já não retratam o futebol como metonímia da nação. Os triunfos em 1994 e 2002 e os reveses em 1998, 2006 e 2010 não transcenderam o campo futebolístico e foram comemorados e sofridos como vitórias e derrotas esportivas. Comparando a situação atual com a carga emocional de 1950 e 1970 especulamos se estaríamos assistindo a um declínio do futebol como emblema da nação.

O “país do futebol” foi uma construção social realizada por jornalistas e intelectuais em um momento de consolidação do “estado-nação”, acompanhada por formulações acadêmicas sobre a sociedade. Na obra clássica de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, de 1933, a mistura racial passa a ser entendida como um valor positivo e força maior do povo brasileiro. Dentro do projeto nacionalista e integracionista do Estado Novo, esta forma de entender a cultura brasileira se consolida. Mário Filho, um dos fundadores do nosso jornalismo esportivo, foi fundamental nesse uso do futebol como meio de construir uma ideia de nação. Filho era amigo de Freyre, que prefaciou sua obra mais conhecida, O Negro no Futebol Brasileiro, onde a junção do futebol com a nação é evidente. A paixão pelo futebol é um fenômeno que ocorre em diversos países do mundo. O que nos diferencia, talvez, é a forma como nos utilizamos dele como matriz ideológica de nossa identidade imaginada.

Não negamos a força dessa representação, tampouco sua eficácia simbólica, mas questionamos seu papel nos dias de hoje. As vitórias e derrotas da seleção em Copas do Mundo ainda produzem celebrações e tristezas coletivas. No entanto, não são mais vividas como vitórias ou derrotas da nação brasileira como um todo. A seleção não é mais a “pátria de chuteiras” nos termos de Nelson Rodrigues, que cunhou e imortalizou a expressão. Há um conjunto complexo de razões para isso. E haverá os que lamentam e os que celebram. Mas seguramente o processo de consolidação da democracia e da organização da sociedade civil, nas últimas décadas, tem influência no declínio da pátria de chuteiras.

A modernização do país, a expansão do consumo e a segmentação das camadas médias refletem-se nas preferências esportivas. O futebol não reina mais absoluto, dividindo suas glórias com outros esportes. As identidades regionais e clubísticas também sobressaem. Hoje, notamos que alguns torcedores preferem ver o seu time campeão brasileiro do que a seleção ganhar a Copa.

Resta saber como os brasileiros irão se comportar diante de um evento como a Copa do Mundo organizada no país. Seremos testemunhas de um resgate simbólico de um nacionalismo exacerbado ou a espetacularização do evento nos moldes do capitalismo do século XXI diluirá a identificação nacional?

De todo modo, a sensação é que tão importante quanto a conquista do Hexa, será demonstrar nossa capacidade de organizar um evento desta grandeza dentro de um espírito republicano e com transparência democrática.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo; GORDON JUNIOR, Cesar. O país do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 28, n. 4, 2011.
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