O pequeno de Istambul que insiste em fazer história
Em pouco mais de sessenta anos de história da principal competição nacional do futebol turco, a Süper Lig, apenas cinco clubes tiveram a proeza de levantar o ambicioso caneco desde que o campeonato se tornou profissional em 1957. Do total de 62 edições já ocorridas, em incríveis 55 ocasiões, o título escapou do trio de ferro da capital Istambul, composto por Beşiktaş, Fenerbahçe e Galatasaray. Nem mesmo diante da inexorável supremacia dos três grandes da capital Istambul, que compõem cerca de 90% da torcida do país, e de um cenário tão polarizante em títulos, é capaz de tirar o brilho dos olhos e a paixão arraigada nas veias do torcedor turco por esse esporte advindo de terras britânicas.
Se estão distantes em termos técnicos em relação às grandes ligas europeias, o futebol turco não fica para trás quando o fator é torcida. O país é um dos mais fanáticos pelo esporte bretão no mundo. As torcidas vão em peso aos estádios, são intensas e vibrantes o que acarreta, muitas vezes, até em brigas generalizadas, sobretudo, em grandes clássicos. E todo esse amor está longe de se restringir aos times, digamos, mainstream, do país. Pelo contrário. Os 10% de adeptos restantes espalhados pela Turquia tem muito o que comemorar.
Com apenas 28 anos de existência, o modesto İstanbul Başakşehir é um desses clubes representantes da minoria que, vez ou outra, surge no futebol, rompendo padrões e escrevendo histórias épicas. Na atual temporada, os turcos de Basaksehir têm a chance de quebrar a hegemonia de oito anos consecutivos do trio de ferro e conquistar o seu inédito título nacional. Após onze rodadas disputadas, o İstanbul lidera o campeonato turco com 24 pontos, quatro a mais que o vice-líder e atual detentor do caneco Galatasaray.
O time sofreu apenas quatro gols nessas onze rodadas. Um número impressionante. Vemos que as chances de uma surpresa ao final da temporada crescerem ainda mais devido a má fase do Fenerbahçe, frequente postulante ao título, que está surpreendentemente na 15ª posição, com apenas 10 pontos. Além disso, o Besiktas, penúltimo campeão da Süper Lig está na 6ª colocação, com seis pontos a menos que os líderes.
Na temporada anterior, a quebra da hegemonia no futebol turco quase aconteceu. O İstanbul terminou em terceiro empatado em pontos com o vice Besiktas e apenas a três do campeão Galatasaray. O time chegou a liderar mais da metade da temporada passada. Por pouco não levou.

Na temporada 2016/2017, os pequenos audaciosos da capital haviam sido as sensações da liga, ao surpreenderem as fanáticas torcidas com seu futebol simples, pragmático, cauteloso, mas não menos efetivo e competitivo. Munido de jogadores experientes e com um sólido sistema defensivo, o time também liderou o primeiro turno daquela edição. Disputando ponto a ponto com o Beşiktaş, o Başakşehir quase levou a taça da Süper Lig (os alvinegros foram os campeões com duas rodadas de antecedência).
Naquela temporada, eles ainda chegaram em sua primeira final nacional de sua história: a Copa da Turquia. O adversário era um outro pequeno do país, o Konyaspor. Após classificação épica nos pênaltis (10 a 9), nas semifinais, contra o Fenerbahçe, digna de roteiro das grandes zebras, o clube chegava à final, de jogo único, como favorito. No entanto, a zebra acabou sendo surpreendida pela outra zebra e, após um entediante 0 a 0 no tempo normal e na prorrogação, o time sucumbiu ao Konyaspor nas cruéis cobranças de pênalti, por 4 a 1.
Mas voltando à principal competição do país… A última vez que o título da liga não ficou nas mãos do trio de ferro foi na temporada de 2009/2010, quando o Bursaspor interrompeu a série de conquistas dos três grandes que já durava 26 anos. Apesar da façanha naquela época, há uma pequena diferença entre os dois casos. O Bursaspor não era nenhum completo novato no cenário nacional, pois já tinha em seu currículo uma Copa da Turquia e uma história de 47 anos.
Ao contrário do clube de Bursa, o Başakşehir foi fundado em 1990 e era frequentador assíduo da segunda divisão do país até finalmente se ascender na temporada 2006/2007. Só para se ter uma ideia, quando o clube sequer existia, o Fenerbahçe já havia vencido o Turco, na era profissional, doze vezes, enquanto o Beşiktaş e o Galatasaray haviam se sagrado campeões em oito oportunidades cada.
Os títulos (até hoje) não vieram, mas, acredite, são reles detalhes diante das temporadas mágica que o İstanbul vem fazendo na Turquia. O surpreendente desempenho do pequeno clube da capital tem sido fruto de um projeto a longo prazo pacientemente protagonizado pelo experiente técnico Abdullah Avci, com passagens pela seleção turca de 2011 a 2013.
O trabalho já dava seus primeiros sinais de êxito na temporada 2014/2015 quando o time se classificou pela primeira vez em sua história para uma competição europeia, a Europa League. A eliminação veio precocemente, já no primeiro duelo diante do AZ Alkmaar, porém, nem a frustração de não seguir adiante abalou a saga de Avci e seus comandados. Na mesma temporada, fecharam o Turco novamente na quarta colocação, garantindo a vaga continental pelo segundo ano consecutivo. Dessa vez, foram mais longe, ao eliminarem o Rijeka, da Croácia, antes de caírem para o Shakhtar Donetsk na quarta fase.
Intercedência dos deuses do futebol sobre os oprimidos? Bênção do Sobrenatural de Almeida? Enlace de sorte? Simples acaso que recai sobre as zebras? Parece-me que tais fatores metafísicos não se aplicam à trajetória do pequeno Başakşehir. Encontrar respostas objetivas e pragmáticas para as peças pregadas pelo futebol, um esporte tão imponderável em sua essência, talvez seja um esforço vão.
Racionais tal qual somos, reles seres humanos na ávida e incessante busca por explicações para tudo, vamos, aqui, tentar encontrar respostas lógicas para esse sucesso. Afinal, que raios de fórmula mágica foi essa que levou o modesto Başakşehir a quase uma dobradinha histórica? A conquistar uma inédita vaga na Champions League, desbancando, com rodadas de antecedência, os poderosos Galatasaray e Fenerbahçe?
O primeiro fato plausível para as temporadas sublimes do Başakşehir pode ser creditado no fator casa. O mais impressionante é que o time não possui uma torcida numerosa. Dos quase 18 mil lugares do Fatih Terim, são raros os jogos que a capacidade atinge cinco mil. Mesmo longe de ser um ambiente de caldeirão, o time tornou-se literalmente imbatível em seus domínios.
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— İstanbul Başakşehir (@ibfk2014) November 3, 2018
Outro fator relevante para o sucesso tem sido o nível de competitividade contra os três grandes. Na temporada 2016/2017, diante do Fenerbahçe, foram cinco duelos com duas vitórias, dois empates, apenas uma derrota e uma classificação para a final da Copa da Turquia, derrotando os rivais nos pênaltis. Contra o Galatasaray, o desempenho fora mais uma vez surpreendente: três vitórias, um empate e nenhuma derrota. O retrospecto mais equilibrado foi diante do Beşiktaş. Em quatro duelos, uma vitória para cada (vale ressaltar que a dos alvinegros foi em um amistoso) e dois empates.
Na temporada passada, resultados expressivos como a goleada no Galatasaray, que viria a ser o campeão, por 5 a 1; uma vitória, fora de casa, contra o Fener, por 3 a 2; e um triunfo diante do Beşiktaş, por 1 a 0. No entanto, o time sofreu duas derrotas no returno: 2 a 0 para o Fener, em casa, e 2 a 0, como visitante, contra o Galatasaray. O sexto duelo diante do trio de ferro foi um empate em 1 a 1 contra o Beşiktaş.
O terceiro motivo para o sucesso tem sido a estratégia traçada pela diretoria e comissão técnica em rechear o elenco com jogadores experientes. O Başakşehir optou em contratar jogadores com reputação internacional ou nomes já consagrados no país. A começar pelo gol com Volkan Babacan, de 29 anos, que já teve passagem pela seleção turca. Na maioria das vezes como reserva, o arqueiro esteve na última Eurocopa defendendo as cores de seu país. No clube desde a temporada 2014/2015, Babacan foi um dos pilares que contribuíram com a ascensão do time com campanhas consistentes no campeonato nacional nos quatro últimos anos.
A dupla de defesa mudou da última temporada para a atual. Os experientes e altos Bekir Írtergün, de 33 anos, 1,92 m, e o moldavo Alexandru Epureanu, 30 anos e 1,89 m, deram lugar à dupla: Manuel da Costa e Alexandru Epureanu. A lateral direita conta com a experiência do brasileiro Júnior Caiçara, de 28 anos, com passagem pelo Schalke 04, que reveza com o turco Uğur Uçar, de 30 anos, que atuou por muito tempo no Galatasaray. Na esquerda, mais um jogador com experiência em grandes competições: o francês Gael Clichy, ex-Arsenal, Manchester City e seleção francesa.
Já no setor de meio de campo, a liderança fica por conta do multicampeão Emre Belözoğlu, aquele mesmo com passagens pelo Newcastle, Internazionale de Milão, Atlético de Madrid e que fez história no Fenerbahçe durante os tempos de Alex. Capitão, o interminável meia de 37 anos, eterno ídolo da seleção turca, é a referência do time no quesito técnico e tático.
Para ajudar a municiá-lo, o Başakşehir investiu na experiência do meia brasileiro Márcio Mossoró, de 34 anos, frequentador assíduo da Europa League com o Sporting Braga nas cinco temporadas em que esteve lá. Outro jogador importante da intermediária é o bósnio Edin Višća, de 28 anos, que atuou pela sua seleção na Copa do Mundo de 2014. Na outra ponta, mais um jogador com passagem em seleção: o holandês, eterna promessa, Eljero Elia.
A responsabilidade pela marcação do meio fica por conta do volante Mahmut Tekdemir, 30 anos, cria da base que já está há dez anos atuando no profissional. No setor, o time ainda conta com o suíço Gökhan Inler, por muito tempo titular da Napoli e da seleção suíça, um dos mais caros do elenco. Mas o grande astro mesmo do time é o meia Arda Turan. Talvez da década de 2010 tenha sido o principal jogador turco em atividade. Atingiu seu auge no sólido time do Atlético de Madrid de Diego Simeone, bicampeão da Liga Europa, campeão espanhol e vice da Champions League, entre 2011 e 2014. Ele ainda não emplacou desde que foi emprestado pelo Barcelona, entretanto, é um líder técnico e a sua contratação de peso foi uma boa resposta ao trio de ferro.

No ataque, o Başakşehir tem apostado na experiência de mais um atleta com reputação internacional: Emmanuel Adebayor, de 33 anos, com longa passagem pelo futebol inglês em grandes clubes como Arsenal, Tottenham e Manchester City. Poucos devem se lembrar, mas o togolês até vestiu as cores do Real Madrid, atuando em 14 partidas e marcando cinco gols, na temporada 2010/2011.
Mais um segredo do primo pobre de İstanbul tem sido o forte senso coletivo de jogo. Assim como casos recentes a exemplo de Leicester e Red Bull Leipzig, o Başakşehir conta com um esquema tático pragmático que privilegia a solidez defensiva, tanto vem mostrando os melhores números do país, nesse quesito, nas últimas temporadas.
Por último, outro fator que vem sendo determinante para o sucesso e o crescimento exponencial do clube é o forte investimento externo. Uma rede de hospitais do país tem injetado cifras e mais cifras, tanto que os salários astronômicos de Arda Turan, Adebayor e Inler vêm da contribuição dessa empresa.
Sem comparações ao feito inacreditável do Leicester de 2015/2016, que, para muitos, inclusive que vos escreve, o maior da história do futebol, a trajetória do Başakşehir tem sido digna de glória e prestígio. Sem pompa, sem torcida, sem tradição, o primo pobre de Istambul, imperturbáveis frente às adversidades, serenos, firmes e conscientes de sua condição, como autênticos estoicos, seguem a sua saga quixotesca rumo à vitória sobre o improvável. O que os deuses do futebol acham dessa tamanha ousadia?