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O sonho do ponta-direita

Marcos Alvito 18 de novembro de 2019

O sonho de criança era ser ponta-direita, espécie futebolística extinta por volta da década de 80. A eleição da posição preferida pela criança é uma escolha que denota traços importantes da personalidade. Um horóscopo da bola. Futuros homens práticos, voltados para a aquisição, para a acumulação e para a resolução de problemas em geral escolhiam ser centroavantes, goleadores, não importando como marcavam, de cabeça ou de canela. Os prudentes, mais preocupados em não perder do que em ganhar, viam-se como zagueiros, soldados da defesa. Aqueles que gostavam de ser diferentes, isolados e destacados em sua exceção, com direito a até mesmo usar um uniforme diferente de todos, abraçavam a bola e a posição de goleiro. Havia quem gostasse de resolver tudo com a imposição do corpo e uma certa brutalidade, esses viam-se como volantes. Imaginavam-se vestindo a sagrada camisa 10 os que tinham alguma pretensão de gols, devido à superioridade, à visão privilegiada do que ocorre em campo, a uma intimidade maior com a bola e seus segredos.

Garrincha deixa mexicano no chão durante jogo da Copa do Mundo de 1962, no Chile. Foto: Reprodução/Facebook.

E o ponta-direita? Representava o caminho do sonho, da utopia. Não defendia, mas tampouco seu dever era marcar o centroavante ou comandar todo o time feito o camisa 10. Levava nas costas o número 7, místico, de significado esotérico poderoso. O ponta-direita era o inesperado, a arte aparentemente sem motivo, que podia, raramente, desabrochar em uma jogada de gol. O ponta-direita era o deslocado, ocupando uma faixa marginal, acariciando a beleza com os pés, de quem nunca poderia se dizer que era eficiente ou produtivo. Corria pela fronteira da linha lateral, entre o ser e o não ser, mas estava mais próximo do calor dos torcedores, para o bem e para o mal. Goleiros, zagueiros, camisas 10 e centroavantes continuam existindo, estiveram e estão no centro do jogo. O ponta-direita foi engolido pela modernidade tática do novo futebol. Ponta-direita não há mais. Era um sonho grande demais para caber em um campo de futebol que fica a cada dia menor.

PS: É um texto de ponta-direita, extremo e impreciso feito um cruzamento mal-executado, não o tomem como uma descrição correta ou verdadeira, vade retro. É uma jogada que raramente dá certo, chamada metáfora.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. O sonho do ponta-direita. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 24, 2019.
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