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Os conflitos no campo esportivo e a oficialização dos esportes (1933-1937) (2ª e última parte)

Denaldo Alchorne de Souza 22 de setembro de 2023

[Continuação da 1a. parte…]

No início da década de 1930, o apoio da sociedade ao projeto de intervenção do Estado no meio esportivo era mínimo. A oficialização era vista como uma medida prejudicial ao desenvolvimento esportivo, levando ao fracasso uma iniciativa que estava progredindo de forma privada e autônoma desde o final do século XIX. Foram conflitos no interior do campo esportivo, que separaram os esportes brasileiros em dois grupos opostos, que possibilitaram ao Estado o consenso necessário na sociedade brasileira para empreender o seu projeto de oficialização. Nestes conflitos, um tema se destacava: a profissionalização do futebol. Porém, para a imprensa da época estava bem claro que o sr. Arnaldo Guinle, ex-presidente da CBD e da AMEA, e o sr. Rivadávia Corrêa Meyer, presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), disputavam o poder. Por sua vez, este último, sentindo-se enfraquecido com a sua situação dentro do campo esportivo, procurou aproximar-se do campo político, através de Luiz Aranha, irmão do influente ministro Oswaldo Aranha. Assim, permeada de interesses alheios à criação do futebol profissional, o que estava em jogo era a dominância dentro do campo esportivo.

O ano de 1934 iniciou com os preparativos para a disputa da segunda Copa do Mundo de Futebol, a ser realizada na Itália. Se na edição de 1930, o conflito entre cariocas e paulistas prejudicou a formação de um selecionado com os melhores jogadores da época, em 1934 foi a vez da contenda entre “profissionais” e “amadores” fazer o mesmo. A Federation International of Foot-ball Association (FIFA), órgão máximo do futebol mundial, não reconhecia as ligas profissionais e sim a CBD, à qual caberia convocar os atletas. O Botafogo formou a base do time, já que era o único grande clube de futebol que permanecia filiado à entidade. A “amadora” CBD também tentou, em troca de boas propostas financeiras, convencer atletas profissionais a trocarem de lado. Conseguiram atrair alguns deles, destacando-se Leônidas da Silva. Para chefe da delegação, escolheram Lourival Fontes, por indicação de Luiz Aranha.

O jornalista Lourival Fontes era outro agente social de relevância dentro do campo político. Em 1930, defendeu a Aliança Liberal que lançou o nome de Getúlio Vargas à Presidência da República e, logo depois, o movimento que assumiu o poder. O primeiro contato oficial de Lourival Fontes com Getúlio Vargas deu-se por intermédio de um amigo comum, Luiz Aranha. Em 1931, Fontes fundou no Rio de Janeiro a revista Hierarquia de tendência fascista, que contou, entre seus colaboradores, com Plínio Salgado. Tinha uma grande admiração pelo fascismo italiano e por Mussolini. Para ele, o fascismo era um regime que caminhava para o povo, antecipando e conquistando a dignificação, valorização e igualdade do trabalhador. O Duce chegou a declarar que Fontes era uma das poucas pessoas estrangeiras que conheciam realmente o regime italiano (Abreu e Beloch, 1984, p. 1309-1312). [1] Em 1934, se tornou diretor geral do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), no Ministério da Justiça.[2] A criação do Departamento foi uma iniciativa do governo de centralizar e coordenar a propaganda oficial através da utilização de diferentes meios de comunicação.[3] Cinco anos depois, seus poderes foram ampliados ainda mais quando o órgão se transformou no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), agora independente do Ministério da Justiça e ligado diretamente à Presidência da República. Quanto ao esporte, Fontes considerava uma atividade fundamental para a consolidação de uma sociedade moderna. Obviamente, o seu modelo era o Estado italiano. Antes de embarcar para a Copa do Mundo, afirmou ao Jornal dos Sports que “só a autoridade suprema do Estado, considerando que o esporte é a disciplina formadora dos cidadãos e dos quadros de reserva pré-militar da Pátria, poderá intervir para coordenação, disciplina, enquadramento e orientação técnica do esporte brasileiro, sob todos os seus aspectos”.[4]

Lourival Fontes
Lourival Fontes. Fonte: Wikipédia/Esta imagem é parte do Fundo Agência Nacional Série FOT Subsérie PPU

Foi uma viagem longa, de onze dias até o porto de Gênova. Ao chegarem, estavam todos cansados. A primeira partida estava marcada para quatro dias depois contra o time espanhol de craques como Zamora, Quincoces, Muguerza, Lecue e Langara. O jogo foi repleto de lances emocionantes, com um pênalti perdido por Waldemar de Brito, um gol feito por Leônidas e outro anulado pelo juiz – segundo os atletas patrícios. Porém nada disso conseguiu impedir a vitória dos espanhóis por três gols a um. Já os brasileiros estavam desclassificados da competição.[5] Ao deixar a Itália, Fontes remeteu uma carta ao Jornal dos Sports, relatando a emoção que a hospitalidade e a simpatia dos italianos causaram nos atletas e dirigentes brasileiros, acrescentando ainda que: “nosso pensamento é de adesão e devoção à Itália fascista, que oferece ao mundo um novo destino e uma força de vontade que guia os povos para uma civilização nova”.[6]

Para os jogadores restava voltar para casa; mas, os dirigentes, que pareciam estar prevendo uma derrota prematura, agendaram uma série de amistosos pela Europa. A excursão tinha a função de propagar no exterior o nome do Brasil e suas riquezas. Os atletas não gostaram, mas, por questões contratuais, foram obrigados a aceitar. Foram oito partidas em terras iugoslavas, espanholas e portuguesas, com três vitórias, quatro empates e uma derrota.[7] Segundo Leônidas da Silva: “Foi uma campanha desastrosa, apesar de algumas vitórias. Como ciganos, viajávamos de trens e ônibus, por falta de maiores recursos, sem conforto e mal alimentados. Os hotéis em que pernoitávamos não eram também de boa qualidade, não havendo, portanto, o repouso necessário para uma boa produção em campo. Mais parecíamos um bando de apatriados correndo de um lado para o outro”.[8]

Ainda em 1934, o grupo de Rivadávia criou novas ligas de futebol.[9] Na cidade do Rio de Janeiro surgiu a Federação Metropolitana de Desportos (FMD) que, além do Botafogo, contou com as adesões de Vasco da Gama, Bangu e São Cristóvão. Em São Paulo surgiu a Liga Paulista de Foot-ball (LPF) com a participação de Santos, Palestra Itália e Corinthians. Mas a grande novidade destas ligas era a aceitação de profissionais. A imprensa criticou abertamente a transformação dos antigos e “puros” amadores em ferrenhos defensores do profissionalismo.[10]

Rivadávia terminou o ano de 1934 com muitas vitórias dentro do campo esportivo. Conquistou a dominância na AMEA e na CBD. Atraiu clubes importantes para suas ligas de futebol. Promoveu a excursão da seleção brasileira à Europa. E conseguiu, finalmente, uma aproximação com o campo político através de Luiz Aranha e Lourival Fontes.

Jogos 1936
Pôster oficial dos Jogos Olímpicos de 1936. Fonte: Wikipédia

Os Jogos Olímpicos de Berlim

O governo estava preocupado com os rumos que a crise esportiva estava tomando. Muitos viam na oficialização uma forma de pacificar a contenda e restabelecer a harmonia. Algumas tentativas de intervenção foram feitas. No final de 1934, o Ministério da Marinha remeteu aos dirigentes esportivos um projeto onde os desportos seriam regidos por um Conselho Supremo formado por representantes do Ministério da Guerra, da Marinha, da Educação e mais dois delegados ligados aos grupos litigiosos.[11] Os dirigentes rejeitaram o projeto alegando que o Conselho tinha muitos políticos e poucos desportistas.[12] Em 1936, outra tentativa foi feita. Circulou pelo Congresso um projeto de autoria do deputado paranaense Paula Soares. A emenda procurava dar plenos poderes ao governo para uma quase intervenção nos esportes. Teve uma repercussão péssima entre os dirigentes e a imprensa, chegando a acusar o governo de “absolutista”.[13] Entretanto, a medida mais enérgica por parte do governo federal foi a adaptação da Lei Getúlio Vargas – que tratava da censura no meio artístico – aos eventos esportivos, igualando os profissionais do futebol aos artistas de teatro. Com essa lei, a Censura Policial passava a inspecionar o comportamento dos jogadores e o cumprimento de seus contratos.[14]

Os esforços oficiais foram consideráveis, porém, as contendas dentro do campo esportivo continuavam. O grupo de Arnaldo Guinle foi aos poucos perdendo posições importantes: não possuía mais o controle sobre a CBD, tinha perdido o apoio de clubes importantes e não conseguia conquistar a simpatia do campo político. Alguns avanços eram necessários. Com objetivo de competir com os confederados, o grupo criou federações independentes de cada esporte. Para reger o futebol, por exemplo, criaram a Federação Brasileira de Futebol (FBF). Ainda fundaram mais dezesseis federações especializadas até 1936.[15] Os esportes menos populares encontraram um ambiente propício para reivindicar mais autonomia em relação à CBD. Assim, não somente o futebol, mas todos os esportes no Brasil ficaram divididos em dois grupos distintos.

Uma questão importante para as especializadas era a busca do reconhecimento em nível mundial. Para isso, era preciso que a federação de determinado esporte possuísse a licença internacional de sua entidade máxima. No futebol, o mais importante organismo era a FIFA e a licença internacional pertencia à CBD. Porém, em outros esportes, como o basquete e o boxe, a licença pertencia às especializadas.[16] Se, com a FIFA, o grupo de Arnaldo Guinle tinha fracassado em buscar uma melhor aproximação, com o Comitê Internacional Olímpico (CIO) o relacionamento era mais favorável. Todos os delegados do CIO no Brasil – Raul Paranhos do Rio Branco, José Ferreira Santos e o próprio Guinle – eram ligados ao grupo. Em 1935, ficou acertado que eles iriam organizar o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), visando à preparação dos próximos Jogos a serem realizados no ano seguinte em Berlim. Os delegados providenciaram a reunião de fundação, que contou com a participação de diversas federações esportivas. A própria CBD foi convidada, porém recusou o convite.[17] Os confederados se consideravam os legítimos representantes dos esportes brasileiros no exterior. Em resposta, criaram duas semanas depois outro Comitê Olímpico. A cerimônia da CBD contou com a presença de inúmeras personalidades do campo político.[18] Assim, os esportes brasileiros passavam a ter dois Comitês Olímpicos. O formado pela CBD possuía, aparentemente, maior apoio do governo federal. Porém, o campo esportivo é relativamente autônomo, com suas próprias leis de evolução e suas crises. [19] Em agosto de 1935, o presidente do Comitê Internacional, conde Henri de Baillet-Latour, remeteu uma nota oficial dizendo que a entidade organizada pelo grupo de Arnaldo Guinle era sua legítima representante, já que contava com os delegados oficiais.[20]

Os Jogos Olímpicos estavam próximos. Novas tentativas de pacificação foram feitas e novos fracassos foram acumulados.[21] CBD e COB continuavam irredutíveis. Quando chegou o momento de embarcar para a longa viagem, o que todos temiam aconteceu: enviaram duas delegações independentes com destino a Berlim. Foram as maiores equipes já mandadas para uma competição, até então. Somando os dois grupos eram mais de cem esportistas. Cada um querendo levar mais atletas que o outro. A contenda teve ampla cobertura da imprensa. Algumas matérias eram irônicas. Para o Jornal dos Sports: “Numericamente, o Brasil deve ter das melhores classificações nas Olimpíadas, caso não seja recordista, o que não será de estranhar, pois nas nossas caravanas só faltaram as manicuras…”.[22] Outras eram acaloradas, pedindo inclusive a intervenção do Estado. Segundo A Gazeta: “O assunto pode-se tornar muito sério, vindo a sofrer o nome do Brasil no estrangeiro. Não seria melhor um acordo? […] Desse jeito, não há dúvidas, faremos feio em Berlim. Os poderes oficiais continuam indiferentes. Não se incomodam com a vida esportiva. No entanto, já chegamos a um ponto em que deviam intervir, pois o Brasil esportivo não pode se expor ao ridículo no estrangeiro”.[23]

A sociedade estava preocupada com os acontecimentos. Nos últimos anos, o interesse pelos esportes tinha aumentado e os fãs acompanhavam o assunto com grande expectativa. Alguns mandaram correspondências para o presidente Getúlio Vargas pedindo que o governo tomasse as atitudes necessárias. Um exemplo foi a carta remetida pelo trabalhador paulista Dorival Campello: 

Clamo a V. Excia. a fim de obrigar que cessem os dissídios esportivos, que neste momento já culminam em Berlim, cobrindo de vergonha a nossa Pátria e expondo-nos ao ridículo perante as demais nações.

Contando que V. Excia. não deixará que maus brasileiros enxovalhem vergonhosamente a terra que lhes dá o pão, espero ansioso suas enérgicas providências a fim de que cesse a situação deplorável em que nos encontramos.[24]

Em 8 de julho de 1936, os organizadores dos Jogos declararam que os esportistas brasileiros somente seriam aceitos no caso das inscrições serem subscritas tanto pela entidade que possuía a filiação internacional como pelo COB. Assim, criou-se uma situação inusitada: os atletas de remo, natação e atletismo das especializadas não poderiam participar dos Jogos porque tinham o visto do COB, mas não o da CBD que possuía as filiações internacionais. Por seu turno, os atletas da CBD não tinham o visto do COB, de sorte que também estariam impossibilitados de participar do evento. As entidades rivais remeteram dois grupos para a Alemanha e possivelmente nenhum dos dois iria participar do certame.[25] Para o Jornal dos Sports: “Compete agora ao governo intervir decisivamente para acabar com a especulosa contenda que está denegrindo o país, e, para fazê-lo, basta mandar fechar, de vez e com verdade, os cofres públicos”.[26] O governo não ficou apático. Designou um representante para atuar junto aos organizadores dos Jogos e mandou o chefe da Censura Teatral à Europa para estudar a regulamentação esportiva de outros países.[27] A imprensa entendeu o recado: “Volta-se a falar insistentemente na oficialização dos esportes”.[28]

Enquanto isso, em Berlim, os atletas passavam por dificuldades. A delegação do COB se alojou na Vila Olímpica, porém a da CBD teve que passar a noite na estação de trem. Somente conseguiram acomodações no dia seguinte, em casas de particulares. Eles não tinham onde treinar. Tiveram que se dirigir aos descampados e lagos próximos para poderem manter o preparo físico. Finalmente, em 31 de julho, na véspera da abertura da competição, o conflito foi apreciado pelo Comitê Internacional. As negociações duraram a noite inteira e contou com participação ativa do embaixador brasileiro.[29] Segundo um telegrama enviado da Alemanha para o governo brasileiro: “O embaixador dirigiu um apelo ao patriotismo das duas partes, de modo que pode ser resolvida de maneira honrosa a pendência quanto à direção da delegação unificada, o que foi finalmente aceito”.[30]

Os Jogos ocorreram entre os dias 1 e 16 de agosto. Para recepcionar os atletas do mundo inteiro, os alemães construíram o monumental estádio de Grünewald. O evento serviu como um gigantesco instrumento de propaganda do nazismo, com o próprio Hitler acompanhando de perto todos os detalhes da organização. No quadro de premiação sobressaíram as delegações alemã, norte-americana, húngara e italiana. O grande destaque foi o atleta negro americano Jesse Owens, que ganhou quatro medalhas de ouro em provas de atletismo e o apoio da imprensa mundial.[31] Os brasileiros não conquistaram medalhas. Quase todos os atletas tiveram péssimas colocações em seus esportes. O caso mais grave foi do remo, esperança de diversas medalhas, que chegou nos últimos lugares em quase todas as raias disputadas. As melhores colocações foram de Piedade Coutinho nos cem metros livre de natação; de Sylvio Magalhães Padilha nos quatrocentos metros com barreiras de atletismo; e de José Salvador Trindade na prova de tiro de carabina. Os três atletas conquistaram a quinta colocação em suas respectivas provas.

Piedade Coutinho
Piedade Coutinho. Fonte: Wikipédia

Para a imprensa, os principais responsáveis pelo fiasco nas Olimpíadas eram os dirigentes. Por causa dos interesses particulares, mandaram duas delegações, cada uma delas com dezenas de atletas. Em Berlim, as discussões continuaram, com a paz só sendo selada no último momento. Quando todos pensaram que os problemas estavam sanados, aí começou o fracasso dos atletas. Muitos não tinham condições esportivas de estarem ali, outros foram prejudicados pelas péssimas condições de treinamento. Mas, o pior era que essas atitudes vergonhosas estavam sendo feitas na frente de todos. Todos presenciaram as brigas e as discussões. Todos viram a incompetência dos atletas brasileiros. Todos, esportistas, imprensa, governantes e torcedores de mais de cinquenta países. Era preciso fazer alguma coisa. Para o governo brasileiro, a lição mais importante extraída dos Jogos era que a oficialização não poderia ser mais adiada. Já no início de 1937, “o presidente Getúlio Vargas dirigiu-se aos deputados da maioria fazendo-lhes saber que lhe seria grato a votação da emenda Paula Soares, autorizando o governo a intervir no esporte”.[32] E enquanto o governo apressava a votação da emenda, Arnaldo Guinle e Luiz Aranha – presidente da CBD desde setembro de 1936 – estavam imbuídos de aproximar as facções e propor uma trégua.[33] Diversas reuniões foram realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Porém, o principal obstáculo continuava sendo as filiações internacionais.[34] Os atletas também se empenharam na causa. Exemplo disso foi a união das duas maiores nadadoras da época, Piedade Coutinho e Maria Lenk, a primeira pertencente à CBD e a segunda às especializadas. Segundo o Jornal dos Sports: “Piedade Coutinho considera indispensáveis os nadadores das especializadas para que o Brasil possa levantar o Sul-Americano de Natação. Ela e Maria Lenk combinaram uma ação conjunta: um apelo ao presidente da República para intervir”.[35]

A paz entre as duas entidades finalmente foi selada em 20 de julho de 1937, quando os presidentes do América e do Vasco da Gama assinaram um acordo estabelecendo as bases de fundação de uma liga no futebol carioca que congregaria todas as forças esportivas.[36] Esta ficaria atrelada à Federação Brasileira de Futebol (FBF) que, por sua vez, se filiaria à CBD. A FBF ficaria com o controle total sobre o futebol no país, cabendo à CBD as filiações internacionais e a representação do Brasil em competições no exterior. O mesmo ocorreria com os outros esportes: as federações regionais ficariam filiadas às federações especializadas e estas à CBD.[37] Assim, o grupo de Arnaldo Guinle mantinha o domínio nas federações específicas de cada esporte, enquanto o grupo do Rivadávia Corrêa Meyer e de Luiz Aranha mantinha o domínio na CBD. Um grupo dominando as bases e o outro dominando a cúpula do campo esportivo.

Portanto, a Olimpíada de Berlim representou o momento em que o projeto de intervenção do Estado nos esportes adquiriu uma forma mais consensual perante a sociedade. Se, antes, existiam dirigentes esportivos, atletas, jornalistas e torcedores contra tal proposta, foi somente devido aos conflitos existentes dentro do campo esportivo, atingindo o seu clímax durante os Jogos, que as oposições cederam em torno da oficialização dos esportes.

Nos anos seguintes o Estado ampliou a sua particiação no campo esportivo. Em 1938, participou ativamente dos preparativos para a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França. Em 1939, criou a Escola Nacional de Educação Física e Desportos (ENEFD), ligada à Universidade do Brasil.[38] Entre 1937 e 1940, apoiou diretamente a prefeitura de São Paulo na construção do Estádio do Pacaembu. E, finalmente, em 1941, criou o Conselho Nacional de Desportos (CND), dentro do Ministério da Educação e Saúde, de Gustavo Capanema. O CND tinha as atribuições de estudar as matérias e sugerir medidas legislativas relativas à organização desportiva; além de superintender; vigiar; estimular e organizar os desportos no país. Tinha o poder de autorizar a participação de delegações nacionais em competições internacionais, de fiscalizar e proibir competições ou publicações esportivas incompatíveis com o interesse público e inclusive intervir em qualquer entidade desportiva. Ao CND também foi atribuído o poder de regulamentar os símbolos desportivos nacionais e das expressões utilizadas nos desportos. O decreto-lei também caracterizava as entidades desportivas como entidades patrióticas [O CND será abordado em outro artigo]. [39]

Com o CND, o Estado consolidou a oficialização dos esportes, processo iniciado desde os primórdios do regime, mas que ganhou consenso a partir dos conflitos ocorridos no interior do campo esportivo brasileiro. Sendo assim, o processo não ocorreu somente “de cima para baixo”. O que decidiu, a meu ver, foi o clamor de uma grande parte da sociedade. Os grupos que defendiam a oficialização dos esportes obtiveram apoio social – e daí a vitória de suas propostas.

Notas

[1] ABREU, Alzira; BELOCH, Israel (orgs.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984, p. 1309-1312.

[2] Decreto nº 24.351, de 10 de julho de 1934. O DPDC abarcava a Imprensa Nacional, uma secretaria e três secções, que se incumbiam dos problemas relativos ao rádio, ao cinema e à cultura física.

[3] Segundo Schwartzman, Bomeny e Costa: “Esta decisão fez parte, sem dúvida, de um esforço de colocar os meios de comunicação de massa a serviço direto do Poder Executivo, uma iniciativa à qual não faltava a influência do Ministério da Propaganda Alemão, recém-criado com a instalação do governo nacional-socialista em 1933”. Ver: SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena; COSTA, Vanda. Tempos Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 105.

[4] Jornal dos Sports, de 8 de maio de 1934.

[5] Partida realizada no dia 27 de maio de 1934, no Stadio Comunale Marassi, em Florença, Itália.

[6] Jornal dos Sports, de 31 de maio de 1934.

[7] Nesta série de amistosos na Europa em 1934, a seleção brasileira teve os seguintes resultados: perdeu de 4 a 8 para a seleção iugoslava em Belgrado (03/07); em 6 de junho, em Zagreb, empatou sem gols com Gradjanski em Zagreb (06/7); empatou em 2 gols com a seleção da cidade de Gerona, na Espanha (17/07); ganhou de 2 a 1 da mesma equipe (24/06); empatou em 4 gols com o Barcelona, na cidade homônima (01/07); ganhou de 4 a 2 do combinado português em Lisboa (12/07); ganhou de 6 a 1 do Sporting, em Lisboa (15/07); empatou sem gols com o Porto, na cidade homônima (22/07).

[8] Última Hora, de 7 de abril de 1964.

[9] Ver: Jornal dos Sports, de 1, 4, 6, 8, 11 e 12 de dezembro de 1934.

[10] Jornal dos Sports, de 11 de abril de 1935.

[11] Jornal dos Sports, de 2 de dezembro de 1934.

[12] Em 1935, o chefe da Casa Militar Newton Cavalcanti organizou reuniões no Palácio do Catete em busca de uma solução pacificadora. Novamente, recusaram a proposta. Ver: Jornal dos Sports, de 2 de maio de 1935.

[13] Jornal dos Sports, de 3 de janeiro de 1937.

[14] Jornal dos Sports, de 6 de outubro de 1935.

[15] Foram criadas federações especializadas de futebol; atletismo; basquetebol; tênis; vela e motor; natação, pólo aquático e saltos; remo; tiro; ginástica, luta; hipismo; ciclismo; motociclismo; esgrima, boxe; halterofilismo e hóquei.

[16] Até este momento, as especializadas conseguiram sete filiações internacionais e ainda tinham cinco pedidos à espera de confirmação. Ver: Jornal dos Sports, de 4 de dezembro de 1935.

[17] A reunião ocorreu em 20 de maio de 1935. Na verdade, foi uma refundação, já que a primeira tentativa de instituir o COB ocorreu em 8 de junho de 1914.

[18] Jornal dos Sports, de 2 de junho de 1935. Estavam presentes na cerimônia o ministro das Relações Exteriores Cavalcanti de Albuquerque e o chefe do Departamento de Propaganda Lourival Fontes.

[19] BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, p. 137.

[20] Jornal dos Sports, de 6 de junho de 1935.

[21] Em janeiro de 1936 surgiu um projeto de pacificação que previa que as filiações internacionais ficariam sob o controle da CBD e as estaduais ficariam nas mãos das especializadas. Em março, já era evidente o fracasso das negociações. Ver: Jornal dos Sports, de 12 de janeiro de 1936.

[22] Jornal dos Sports, de 11 de agosto de 1936.

[23] A Gazeta, de 5 de julho de 1936.

[24] Arquivo Nacional. Ministério da Justiça e Negócios Interiores (1933-1939), caixa 181, código de fundo 49, processo nº 2240/36.

[25] Jornal dos Sports, de 9 de julho de 1936.

[26] Jornal dos Sports, de 2 de agosto de 1936.

[27] Os representantes do governo eram Joaquim Antônio de Souza Ribeiro e Pitta de Castro.

[28] Jornal dos Sports, de 10 de julho de 1936.

[29] Embaixador Muniz Aragão.

[30] Jornal dos Sports, de 4 de agosto de 1936.

[31] Jesse Owens conquistou as medalhas nas provas dos cem metros, duzentos metros, salto em distância e no revezamento quatro por cem metros.

[32] Jornal dos Sports, de 3 de janeiro de 1937.

[33] Antes, de 1933 até 1936, Luiz Aranha era presidente do Conselho Administrativo da CBD.

[34] Jornal dos Sports, de 16 de abril de 1937.

[35] Jornal dos Sports, de 31 de janeiro de 1937.

[36] Os presidentes eram Pedro Magalhães Correa, do América, e Pedro Novaes, do Vasco da Gama.

[37] Jornal dos Sports, de 18 de julho de 1937.

[38] Ver: Decreto nº 1.212, de 17 de abril de 1939.

[39] Ver: Decreto-lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941.

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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Os conflitos no campo esportivo e a oficialização dos esportes (1933-1937) (2ª e última parte). Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 22, 2023.
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