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Os conflitos no campo esportivo e a oficialização dos esportes (1933-1937) [parte 1]

Denaldo Alchorne de Souza 15 de agosto de 2023

Na Copa do Mundo de 1938, realizada na França, a seleção brasileira de futebol ganhou dos tchecoslovacos por dois a um.1 No dia seguinte, o Jornal dos Sports noticiava:

Passeatas, gritarias, ruídos de todos os gêneros, bombas, cantos patrióticos, serpentinas, confetes, folhetos, papel rasgado – eis o que se viu e ouviu ontem, durante horas inteiras no cenário carioca. E mais, bandeiras desfraldadas em todos mastros, nas sacadas ou carregadas por grupos e, ainda, recobrindo automóveis.

Inédito, apenas inédito, o espetáculo de ontem. Cena que se via de momento em momento: verdadeiras multidões cantando o Hino Nacional. E não apenas uma ou duas ou três vezes. Por exemplo; debaixo da sacada do JS, centenas de pessoas entoaram e repetiram durante cerca de duas horas o Hino Nacional.2

Nesta competição, o futebol adquiriu uma popularidade jamais vista até então. Pode-se notar semelhanças com as atitudes dos torcedores atuais: a cada vitória, gritos de alegria; a cada derrota, choros de tristeza. Multidões cantando o hino nacional. Jogadores tornando-se heróis da noite para o dia.

1938 seleção
Embarque da delegação brasileira para a Copa de 1938. Foto: Arquivo Nacional Fundo Correio da Manhã.

Estado e esporte

Na Europa, o debate em torno da importância dos esportes com fins político-ideológicos já estava ocorrendo desde o final da Primeira Guerra Mundial. Países como Itália e, posteriormente, Alemanha já utilizavam as atividades desportivas como uma forma de auto-afirmação nacional. Nesse período, os esportes e a moderna comunicação de massa, como imprensa, cinema e rádio, foram significativos em transformar os símbolos nacionais em parte da vida dos indivíduos comuns, rompendo as divisões que existiam entre o privado e o público, entre o local e o nacional. As partidas foram transformadas num espetáculo de massa onde, numa sucessão infindável de contendas, “se digladiavam pessoas e times simbolizando Estados-nações, o que hoje faz parte da vida global”.3

Destacaram-se, na época, os preparativos para os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, em pleno apogeu do nazismo na Alemanha. O evento contou com a participação de multidões de cento e vinte mil pessoas nos estádios. As competições foram irradiadas para dezenas de países. Milhares de jornalistas fizeram a cobertura. Ocorreram filmagens cinematográficas apresentadas posteriormente nos cinemas.4 Quando o atleta ganhava uma prova esportiva, o hino do país era entoado, as bandeiras eram içadas vagarosamente diante de uma multidão silenciosa, toda uma solenidade era preparada com o objetivo de causar uma impressão profunda perante o público. Uma vitória nas Olimpíadas passou a ser um ato de propaganda nacional diante do mundo inteiro.

O Estado brasileiro que se consolidou após a Revolução de 1930 estava atento ao fenômeno, procurando participar dos grandes eventos esportivos desde os primeiros anos do novo regime. Exemplo disso foi, em 1932, a recepção inédita que o governo concedeu aos jogadores de futebol vitoriosos da Copa Rio Branco, disputada contra os uruguaios. O time brasileiro viajou para Montevidéu desfalcado de seus principais atletas, brancos em sua maioria, que foram substituídos por negros. Estes não decepcionaram. Foram decisivos na vitória brasileira por dois a um.5 No retorno ao Rio de Janeiro, milhares de pessoas aguardavam os craques para uma grandiosa festa. Dezenas de lanchas ancoradas soltavam rojões para saudar o desembarque. Do porto, seguiram em carro aberto e desfilaram pelas ruas da cidade. Era gente por todos os cantos. Das janelas dos prédios chovia papel picado, nas ruas o grito era um só: “Brasil! Brasil!” A homenagem final aconteceu em frente ao Palácio do Catete, onde os jogadores foram recebidos pelo próprio presidente Getúlio Vargas.6

Mas o que se pergunta no momento é: de que forma o governo Vargas poderia investir nos esportes?

Para o historiador Eric Hobsbawm, o espetáculo esportivo se tornou um meio eficaz para inculcar sentimentos nacionalistas devido à facilidade com que todos os indivíduos podiam se identificar com a nação simbolizada por jovens que se destacavam no que todo ser humano gostaria de ser: bom naquilo que faz. Segundo o autor, “a imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze pessoas com nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação”.7 Portanto, o torcedor, quando observa a seleção nacional jogar, está vendo um pretenso espelho da nação e, mais importante, se sente participando dela. O futebol permite uma relação entre produtor/receptor, isto é, entre o jogador e o torcedor, que não é de submissão. O torcedor também participa do espetáculo, muitas vezes interferindo decisivamente no resultado final do jogo.

A seleção brasileira seria o veículo perfeito a dar concretude à idealização de democracia social do Estado Novo. Não como fora antes de 1930, quando os scratchs eram geralmente formados por jogadores brancos e de boa família. Mas sim com pobres e ricos, negros e brancos, representando uma única nação. Foi justamente isso que o escritor José Lins do Rêgo quis dizer a respeito do jogo acima mencionado:

Os rapazes que venceram em Montevidéu eram um retrato de uma democracia social, onde Paulinho, filho de família importante, se uniu ao negro Leônidas, ao mulato Oscarino, ao branco Martim. Tudo feito à boa moda brasileira, na mais simpática improvisação. […] Eu acredito no Brasil, nas qualidades eugênicas dos nossos mestiços, na energia e na inteligência dos homens que a terra brasileira forjou com sangues diversos, dando-lhes uma originalidade que será um dia espanto do mundo.8

Segundo um relatório do Ministério da Educação, a importância dos esportes no mundo moderno era incontestável e poucos países poderiam apresentar matéria-prima mais favorável para a sua organização nacional do que o Brasil.9 No entanto, existiam dois problemas que dificultavam a sua utilização como símbolo da nação brasileira: a influência estrangeira e o comercialismo dos clubes. De um lado, uma grande parte dos clubes estava associada a elementos estrangeiros, atuando de forma desagregadora dos elementos nacionais. De outro, o comercialismo fazia com que os dirigentes tivessem como principais objetivos o divertimento dos seus associados e a obtenção de lucros por meio dos jogadores profissionais. Inexistia a preocupação com os ideais olímpicos, a cultura eugênica e a educação cívica de um povo. Para os governantes, já não era mais possível esperar que particulares tomassem a seu cargo a responsabilidade de desenvolver os esportes. Por falta de meios financeiros, os esportes não se desenvolviam onde mais se precisava: no interior do Brasil. Com exceção das grandes cidades, onde a renda dos jogos de futebol poderia cobrir as despesas dos clubes, o restante do país estava praticamente abandonado. Era necessário intervir e, ao mesmo tempo, conseguir o apoio da sociedade. Durante toda a década de 1930, membros do governo procuraram pensar e planejar uma ação direta. Finalmente, em 1941, a oficialização dos esportes se consolidou com a criação do Conselho Nacional de Desportos (CND). Porém, o processo não ocorreu de forma imediata e, muito menos, linear. Várias disputas políticas aconteceram na sociedade e dentro do próprio governo para que o projeto de oficialização fosse efetivado.

Para compreender melhor este processo, iremos utilizar o conceito de campo, que consiste num espaço onde agentes sociais travam lutas concorrenciais em função de interesses e conflitos específicos à área em questão – seja artístico, intelectual ou esportivo –, sem abandonar os aspectos políticos, econômicos e sociais mais amplos.10 A sua importância está justamente na possibilidade de adequar a ação social e a estrutura social de uma forma mais dialética, obtendo assim o meio de apreender a particularidade na generalidade e a generalidade na particularidade.

No presente artigo, empregaremos os conceitos de campo político e campo esportivo, que possibilitarão uma análise mais aprofundada do processo de oficialização dos esportes.

Vargas
Desfile em celebração do dia 1o. de maio no estádio de São Januário 1942. Foto: Arquivo Nacional

O campo esportivo e a profissionalização do futebol

No início da década de 1930, o apoio da sociedade ao projeto de intervenção do Estado no meio esportivo era mínimo. A oficialização era vista como uma medida prejudicial ao desenvolvimento esportivo, levando ao fracasso uma iniciativa que estava progredindo de forma privada e autônoma desde o final do século XIX.11 Na verdade, foram conflitos no interior do campo esportivo que possibilitaram ao Estado o consenso necessário na sociedade brasileira para empreender o seu projeto.

Nestes conflitos, um tema se destacava: a profissionalização do futebol. Durante as últimas décadas o esporte tinha passado por um intenso processo de ampliação e democratização. Os torcedores aumentaram, fazendo com que a atividade virasse um grande negócio para os clubes. Os jogadores passaram a ser recrutados entre as camadas mais pobres da população, com uma intensa participação de elementos negros. As reivindicações por uma melhor remuneração cresceram. Todo o processo se consolidou com a profissionalização em 1933, quando, no Rio de Janeiro, foi criada a Liga Carioca de Futebol (LCF).

Ficou consagrada pelo jornalista Mario Rodrigues Filho a versão de que a causa da profissionalização foi a migração de jogadores para lugares que já tinham adotado este regime. Países como Itália, Espanha, Argentina e Uruguai proporcionavam aos brasileiros, principalmente aos negros e pobres, uma via de crescimento econômico e social. Assim, os clubes foram obrigados a adotar o regime profissional para impedir o fluxo migratório dos seus melhores atletas.12 Seguindo o mesmo raciocínio, o autor também explicava a atitude ambígua do Fluminense, o clube mais aristocrático do país, liderando o movimento de criação da liga profissional de futebol. Para ele, “o Fluminense cansado de perder campeonatos, tornou-se um pioneiro do profissionalismo. Com o profissionalismo, ele lutaria em igualdade de condições com os outros clubes”.13

Porém, “a fuga precipitou a profissionalização. Não a causou, como muitos pensam” (Santos, 1981, p. 47-48).14 Não podemos esquecer que, se o futebol se profissionalizou, deveu-se às inúmeras transformações ocorridas na sociedade brasileira desde o final do século XIX. A intensa industrialização, a urbanização dos grandes centros, a luta por reconhecimento econômico e social da população pobre e negra, o desenvolvimento dos meios de comunicação e a transformação dos esportes em espetáculo de massa explicam a introdução do profissionalismo em 1933 como fruto de um processo histórico mais amplo e complexo (Rosenfeld, 1993, p. 73-106).15 Neste caso, a saída de atletas do país teve o papel de alavancar a introdução do profissionalismo. Mas, mesmo assim, uma análise mais atenta nos mostrará que outros aspectos também foram decisivos para a precipitação do processo. Para a imprensa da época estava bem claro que o sr. Rivadávia Corrêa Meyer, presidente da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), e o sr. Arnaldo Guinle, ex-presidente da CBD e da AMEA, disputavam o poder. Permeada de interesses alheios à criação do futebol profissional, o que estava em jogo era a dominância dentro do campo esportivo.

Arnaldo Guinle pertencia a uma das famílias mais ricas e poderosas do país na primeira metade do século XX. Ele, juntamente com os seus seis irmãos, era herdeiro da concessão da Companhia Docas de Santos.16 As atividades da família se expandiam por vários setores, como: hotelaria, construção civil, indústria têxtil, energia elétrica e instituições financeiras. No Rio de Janeiro, os Guinle construíram diversos prédios imponentes e luxuosos, como o Palácio Laranjeiras e o Copacabana Palace. Arnaldo não era somente um empresário. Tinha interesses em diversas áreas, inclusive na arte popular. Foi ele, por exemplo, quem resolveu financiar a viagem de Pixinguinha e seu conjunto “Os Oito Batutas” para São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Salvador e Recife. Em 1922, Guinle decidiu patrocinar uma temporada do conjunto na Europa. Durante seis meses, os Batutas tocaram no Dancing Schéhérazade em Paris. Entre suas canções:

Nous sommes batuta

Batutas, batutas,

Venus du Brésil

Ici tout droit

Nous sommes batuta,

Batutas, batutas,

Nous faisons tout le monde

Danser le samba.17

Foi um sucesso.

No campo esportivo, Guinle era uma figura proeminente, sendo fundador e patrono de diversos clubes. Presidiu a Confederação Brasileira de Desportos, entre 1916 e 1920, e se tornou um dos três delegados do Brasil no Comitê Internacional Olímpico (CIO).18 Foi presidente do Fluminense entre 1916 e 1931 e entre 1943 e 1946, promovendo grandes empreendimentos. Destacou-se por ter construído o primeiro estádio de foot-ball para grande público, além de uma luxuosa sede no bairro das Laranjeiras, com instalação nobre de vitreux francês, lustre de cristal e pinturas de art noveau. Segundo o Estatuto da agremiação: “Arnaldo Guinle é o patrono do Fluminense, em caráter único e permanente, como reconhecimento aos excepcionais serviços por ele prestados ao Clube”.19 Guinle sempre esteve envolvido nos conflitos do campo esportivo. Em 1924, liderou um grupo formado pelos mais antigos e aristocráticos clubes da cidade em defesa da manutenção da ética do amadorismo e contra a rápida popularização do foot-ball. Novos clubes estavam aparecendo naquele momento – como o Vasco da Gama – provocando um reagrupamento no interior do campo esportivo carioca. A dominância dentro da federação estava sendo questionada por esses clubes que, em geral, tinham um caráter mais popular e suburbano. Como forma de manter o domínio e o status quo foi criada uma nova liga esportiva: a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA). Arnaldo Guinle foi escolhido seu primeiro presidente, cargo que ocupou até 1928. Porém, em janeiro de 1932, a sua dominância seria novamente ameaçada. Um novo dirigente, contrário à política anterior, acabava de se tornar presidente da AMEA: Rivadávia Correa Meyer.

Rivadávia era de uma geração mais nova que a de Guinle. Passou a fazer parte dos quadros do Botafogo em 1916, quando ingressou na equipe infantil de foot-ball. Cinco anos depois já fazia parte do time principal. Em 1924, abandonou em definitivo a prática do sport e se tornou secretário do clube. No Botafogo, atuou em diversos cargos como a vice-presidência entre 1935 e 1938. Na AMEA, foi membro do Conselho de Julgamentos e o seu dirigente maior entre 1932 e 1934. Ao ser interrogado sobre o profissionalismo, ele respondeu: “Orgulho-me de ter sido um amador puro. Sempre paguei minha mensalidade no Botafogo, mesmo quando jogava no primeiro quadro. Comprei as minhas shooteiras e o meu uniforme, que sempre eu mesmo levava para o campo. Nunca recebi dinheiro para condução, como também nunca fui punido nem sequer censurado por nenhum juiz”.20 Rivadávia ainda se destacou como dirigente na conquista da Copa Rio Branco de 1932 pela equipe brasileira. Ele bancou, contra as pretensões do então presidente da CBD Renato Pacheco, a participação de jogadores negros na competição. Porém, o seu cargo mais importante foi o de presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) entre os anos de 1943 e 1955. Para o amigo João Lyra Filho: “Riva sintetizou o Botafogo da cabeça aos pés. No estádio, honrou a camisa alvinegra com o suor e a flama”.21

Em 1932, Rivadávia conseguiu a presidência da AMEA com o apoio dos clubes menores e contra a vontade da maior parte dos clubes que formavam o Conselho de Fundadores. Este era formado por representantes do Fluminense, Flamengo, Botafogo, Vasco da Gama, América, Bangu e São Cristóvão e liderado por Arnaldo Guinle. Algumas semanas após a posse de Rivadávia, a maior parte dos “Fundadores” alegaram que a renda dos jogos tinha diminuído e que os atletas estavam cansados. Como solução, propuseram reduzir a quantidade de times do campeonato. Na nova fórmula participaria os sete clubes fundadores, o SC Brasil e mais um time classificado em torneio composto pelas equipes menores. A medida possuía um claro objetivo de diminuir o poder do presidente da AMEA. Este, ao contrário, tinha uma proposta mais ampla, com a participação de doze clubes. Rivadávia ganhou e os clubes considerados menores puderam disputar a competição.22 Ainda em 1932, Arnaldo Guinle deixava público que o Fluminense lideraria a criação de uma liga de futebol profissional.23

Quanto ao profissionalismo, todos os dirigentes esportivos sabiam da importância dos craques para a manutenção do espetáculo. Porém, havia um consenso quanto à necessidade de adiar a sua adoção o máximo possível. Não era novidade a opinião de Rivadávia Corrêa Meyer sobre o assunto: “Os nossos clubes, em sua grande maioria, não dispõem dos necessários recursos para pagar os ordenados que os jogadores profissionais viriam a exigir. Cumpre, ademais disso, considerar que é contra a nossa índole, o profissionalismo nos esportes”.24 Mas, surpreendente foi a afirmação de Oscar da Costa, presidente do Fluminense e aliado de Arnaldo Guinle, em julho de 1932: “Acho que muitos clubes cariocas morrerão, quando se regulamentar, aqui, o profissionalismo. Não temos capacidade financeira para tanto”.25 Tais opiniões eram compartilhadas por quase todos os dirigentes do futebol carioca até esta data. Quanto aos jogadores que partiam para o exterior, os dirigentes lamentavam, mas achavam que este fato não iria tirar os fãs dos estádios já que muitos recusavam viajar, como Romeu Pelliciari, e outros estavam surgindo, como Leônidas da Silva.

O movimento para a criação do profissionalismo iniciou quando Arnaldo Guinle e seu grupo perceberam que poderiam dominar o campo esportivo se criassem uma nova liga de futebol. Sabiam que o profissionalismo era uma questão de tempo. Porém, naquele momento, a AMEA era o órgão responsável pelos esportes no Rio de Janeiro e o grupo de Guinle levava uma grande desvantagem no interior da associação. Criar uma nova liga também significava esvaziar o poder de oponentes como Rivadávia Correa Meyer, Paulo Azeredo e João Lyra Filho, todos ligados ao Botafogo. Além disso, os dirigentes tinham plena consciência da importância econômica do futebol para a ampliação de seus negócios. A popularização do esporte na década de 1920 possibilitou um incremento contínuo nas fontes de renda dos clubes. O Fluminense, por exemplo, em 1922 teve uma renda com o foot-ball de 44:112$000; em 1927 passou para 142:447$500; e em 1931 para 297:468$000.26 O grupo que conseguisse controlar o futebol teria plenas condições de aumentar ainda mais os seus lucros.

Arnaldo Guinle
Fonte: reprodução/Fluminense

A estratégia de Arnaldo Guinle para dominar o campo esportivo estava transparente. O seu grupo já tinha a direção de quatro grandes clubes – Fluminense, América, Vasco e Bangu –, a presidência da CBD, pertencente a Renato Pacheco, e uma relação amistosa com a associação paulista (APEA). O grupo de Rivadávia detinha apenas a direção da associação carioca e de três clubes importantes – Botafogo, Flamengo e São Cristóvão, sendo os dois últimos ainda incertos. As mudanças seriam feitas dentro das normas esportivas vigentes, sem correr riscos de punições por parte da CBD e das entidades internacionais (FIFA, CIO). Seria o próprio Conselho de Fundadores da AMEA que aprovaria a criação da liga profissional. Várias reuniões ocorreram com os representantes dos clubes entre os meses de agosto e dezembro de 1932. Finalmente, em janeiro de 1933, aconteceu a reunião do Conselho que deliberou a criação da Liga Carioca de Futebol (LCF).27 Em São Paulo, a APEA aderiu ao movimento. No Rio, o grupo botafoguense se enfraqueceu ainda mais com a adesão do Flamengo e do São Cristóvão à liga profissional.

A imprensa se dividiu. Alguns periódicos, como o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, se posicionaram favoráveis ao grupo de Rivadávia. Em suas páginas, diversas reportagens eram feitas com o intuito de mostrar o lado negativo do profissionalismo. Numa delas, um colunista do Jornal do Brasil assim tentou justificar o seu ponto de vista:

O profissionalismo, […] entre outros malefícios, trará como triste e odiosa consequência a irrevogável diferença de classes que o amadorismo, com finalidade social e humana, congrega, fortalece e estimula, para o bem comum. […] Queremos, assim, mostrar o afastamento de classes que o profissionalismo vai criar, por exemplo, entre o estudante e o operário, o rico e o pobre, o aristocrático e o humilde, quando, até agora, ambos se harmonizam numa simpatia estreita, propícia, justa e humana que lhes oferece, socialmente, o amadorismo.28

Outros periódicos, como o Jornal dos Sports e O Globo, defenderam de forma igualmente ardorosa o futebol profissional. Um exemplo foi a entrevista concedida por Benedicto, jogador que acabara de abandonar o Botafogo e ingressara no Fluminense. Na matéria o ex-botafoguense dava suas explicações:

– O maior responsável pela condição de falso amador em que estive por tanto tempo foi unicamente o Botafogo. O amadorismo “manque” me fez errar. Agi por algum tempo contra o meu modo de pensar. Errei, é bem verdade, mas cedo ainda reconheci a minha falta e corrigi-me. Quase me transformei num malandro, quase me acostumei a ganhar sem trabalhar, quase mudei de pensar porque o amadorismo falso, o amadorismo hipócrita tudo me facilitava. Estou satisfeito, sinto-me feliz e creio que assim pensam todos aqueles que, como eu, ingressaram nas hostes da moralização do profissionalismo.29

Rivadávia em breve deu a resposta: desfiliou o Fluminense, o América, o Vasco e o Bangu da AMEA.30 Esses clubes foram automaticamente desligados da CBD, já que a AMEA detinha os direitos das filiações esportivas estaduais. Arnaldo Guinle levou a questão à CBD. Com o presidente da instituição Renato Pacheco do seu lado, acreditava aprovar com facilidade um novo estatuto que possibilitasse a filiação dos profissionais. A assembleia ocorreu em maio de 1933, contando com a participação de inúmeros representantes de entidades esportivas. Entre estes, se destacou Luiz Aranha, da Federação de Atletismo do Rio Grande do Sul.

Luiz Aranha era irmão de Oswaldo Aranha, figura proeminente na política nacional e que teve grande influencia em sua formação política. Na década de 1920, lutou ao lado do irmão contra os “tenentes”. Em 1930, participou ativamente das articulações que levaram ao movimento armado de outubro. Foi um dos fundadores do Clube 3 de Outubro e do Partido Autonomista do Distrito Federal. Recusou, em dois momentos distintos, o convite feito por Getúlio Vargas para disputar a prefeitura do então Distrito Federal. Também lhe ofereceram o cargo de chefe de polícia do Distrito Federal e o de chefe da Casa Civil da Presidência, recusando sempre. Luiz Aranha se destacou principalmente como grande articulador dos bastidores políticos. A sua ligação familiar com Oswaldo Aranha, sua amizade pessoal com Getúlio Vargas, acrescentados a sua habilidade política lhe deram um real prestígio no cenário nacional, colaborando decisivamente na indicação ou na eleição de diversos políticos para cargos públicos.31 No campo esportivo, contra os que propunham o “esporte oficial”, isto é, a intervenção total do Estado, Luiz Aranha defendia o “esporte oficializado”. Dizia que o “esporte oficializado” significava que os clubes permaneceriam em poder da iniciativa particular e que o papel do Estado seria de dar reconhecimento e apoio econômico às práticas desportivas.32 Em contrapartida, o Estado iria fiscalizar os clubes e cobrar deles uma colaboração mais patriótica.

Na assembleia geral da CBD, Luiz Aranha teve uma importante participação para que o evento terminasse indefinido. Dias após, Rivadávia convidou Luiz Aranha a fazer parte do quadro social do Botafogo. Na assembleia seguinte, realizada em junho de 1933, aprovaram um novo estatuto, porém contrário às pretensões de Guinle.33 Ficou decidido que o Conselho Administrativo possuiria mais poderes que o próprio presidente da CBD. Para regê-lo escolheram Luiz Aranha. Em setembro, Renato Pacheco pedia renúncia da presidência.34

Podemos deduzir que o grupo liderado por Rivadávia Correa Meyer, sentindo-se enfraquecido com a sua situação dentro do campo esportivo, procurou aproximar-se do campo político, através de Luiz Aranha. Além disso, muitos membros do governo cultivavam simpatias pelos “defensores” do esporte amador, já que viam no profissionalismo uma deturpação da educação física.

[Continua…]

Notas

1 O atual texto está dividido em duas partes e é uma versão revista e adaptada do segundo capítulo do livro do mesmo autor, intitulado O Brasil entra em campo. Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. O Brasil entra em campo: construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). São Paulo: Annablume, 2008, p. 27-57.

2 Jornal dos Sports, de 15 de junho de 1938.

3 HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo de 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 170.

4 Ver o filme alemão Olympia (1938), de Leni Riefenstahl.

5 A dominância da seleção uruguaia na década de 1920 ficou demonstrada pela conquista dos títulos sul-americanos de 1920, 1923,1924 e 1926; olímpicos de 1924 e 1928; e mundial de 1930. A partida foi realizada em 4 de dezembro de 1932, no Estádio Centenário, em Montevidéu. Os dois gols brasileiros foram feitos pelo negro Leônidas da Silva.

6 Jornal dos Sports, de 20 de dezembro de 1932.

7 HOBSBAWM, op.cit., p. 171.

8 RÊGO, José Lins do. “A biografia de uma vitória”. In: RODRIGUES FILHO, Mario. Copa Rio Branco, 32. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1943, p. 7 e 8.

9 Arquivo Gustavo Capanema, 3 de janeiro de 1937, rolo 41, fot. 821. FGV/CPDOC. O relatório era de autoria de João Alberto Lins de Barros.

10 Segundo Pierre Bourdieu, no interior do campo, os agentes sociais travam uma relação de forças que tem por instrumento e alvo o capital simbólico, institucionalizado ou não, que os diferentes agentes e instituições conseguiram acumular no decorrer das lutas anteriores. Todo campo é desigual, dividido entre dominantes e dominados. Cada um investindo em estratégias que dependem de sua posição. Os dominantes tenderão a uma estratégia de conservação e os dominados à transformação ou ao descrédito do capital simbólico considerado legítimo. Ver: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

11 Jornal dos Sports, de 10 de julho de 1936.

12 RODRIGUES FILHO, Mario. O negro no foot-ball brasileiro. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1947, p. 227-231.

13 Idem, p. 244.

14 A obra de Joel Rufino dos Santos tem o mérito de mostrar que acontecimentos particulares, como a profissionalização do futebol, não podem ser dissociados de uma visão mais ampla da sociedade e do Estado. No entanto, discordo de sua explicação de que o conflito entre amadorismo e profissionalismo se restringiu a uma luta de classes entre o “futebol de elite” e o “futebol do povo”. Para ele, os atletas e dirigentes contrários à profissionalização “defendiam uma posição de classe, eram burgueses, com negócios e empregos, ameaçados pela invasão proletária”. Ver: SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981.

15 Em Negro, macumba e futebol, o autor Anatol Rosenfeld defende que a profissionalização possibilitou uma real ascensão econômica aos negros; no entanto, seria um erro pensar que o jogador de futebol, em conseqüência de seu prestígio como craque, encontrava também reconhecimento social. Ver: ROSENFELD, Anatol. Negro, macumba e futebol. Campinas: Perspectiva, 1993.

16 Eduardo Palassin Guinle e Cândido Gaffrée foram os fundadores da Companhia Docas de Santos. Gaffrée não teve filhos. Ao morrer, a concessão da companhia e de outros negócios ficaram com os sete filhos de Guinle: Eduardo, Guilherme, Arnaldo, Carlos, Octávio, Celina e Heloísa.

17 TINHORÃO, José Ramos. História da música popular brasileira. São Paulo. Editora 34, 1998, p. 278-279.

18 Os outros eram Raul Paranhos do Rio Branco e José Ferreira Santos. Raul Paranhos do Rio Branco foi eleito membro do CIO em 1913. Arnaldo Guinle e José Ferreira Santos foram eleitos em 1923.

19 Estatuto do Fluminense Foot-balll Club. Rio de Janeiro, s/d.

20 Jornal dos Sports, de 31 de janeiro de 1932.

21 LYRA FILHO, João. Escritos a lápis. Rio de Janeiro: Gráfica, 1969, p. 219.

22 Jornal dos Sports, de 2 de março de 1932.

23 Jornal dos Sports, de 19 de agosto de 1932.

24 Jornal dos Sports, de 17 de julho de 1932.

25 Jornal dos Sports, de 19 de julho de 1932.

26 Relatório dos trabalhos sociaes do anno de 1922. Rio de Janeiro: Fluminense Foot-ball Club, 1923; Relatório dos trabalhos sociaes do anno de 1927. Rio de Janeiro: Fluminense Foot-ball Club, 1928; Relatório dos trabalhos sociaes do anno de 1931. Rio de Janeiro: Fluminense Foot-ball Club, 1932.

27 Jornal dos Sports, de 28 de janeiro de 1933.

28 Jornal do Brasil, de 17 de março de 1933.

29 Jornal dos Sports, de 14 de março de 1933.

30 Jornal dos Sports, de 12, 14, 23 e 25 de fevereiro e de 2 de março de 1933.

31 ABREU, Alzira; BELOCH, Israel (orgs.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984, p. 161-163.

32 Jornal dos Sports, de 21 de julho de 1938.

33 Jornal dos Sports, de 21, 24 e 25 de junho de 1933.

34 Renato Pacheco foi substituído por Álvaro Catão, ligado ao grupo botafoguense.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Os conflitos no campo esportivo e a oficialização dos esportes (1933-1937) [parte 1]. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 15, 2023.
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