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Os primórdios do automobilismo fluminense: o caso da Corrida de São Gonçalo

Eduardo de Souza Gomes 22 de julho de 2020

Os últimos meses estão sendo difíceis no Brasil e no mundo, devido as ameaças globais da pandemia gerada pelo Coronavírus (Covid-19). Nesse cenário, peço licença para hoje escrever sobre um acontecimento que marcou os primórdios do campo esportivo fluminense no início do século XX, naquela que foi considerada a primeira corrida automobilística ocorrida no estado do Rio de Janeiro. Se hoje diversos eventos esportivos mundo a fora, estão sendo cancelados devido as ameaças do vírus, em 1909 a corrida aqui retratada foi um marco na região. Historicamente, tal fenômeno ficou conhecido como a “Corrida de São Gonçalo”, por ter ocorrido no município homônimo que fica na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro que, naquela época, se tratava do Distrito Federal do Brasil.

Os automóveis chegaram ao Brasil na transição do século XIX para o XX. Mas quando o automobilismo se consolidou enquanto uma prática esportiva? Quando e onde ocorreu a primeira corrida do país? Quais cidades foram percussoras no desenvolvimento dessa prática esportiva em terras brasileiras?

É normal, ao realizar tais questionamentos, que os nomes das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, apareçam no imaginário relacionado aos primórdios de tal prática. Afinal, foram nessas duas cidades que o uso de automóveis começou a se disseminar com maior força pelo país. A chegada do Peugeot do “pai da aviação” Santos Dumont, que chegou no Porto de Santos em 1891; e do Serpolet de José do Patrocínio, desembarcado no Rio de Janeiro em 1895, explicitam o pioneirismo das duas localidades (MELO; PERES, 2016, p. 102).

No geral, o automobilismo enquanto esporte se desenvolveu com mais força no decorrer do século XX, apesar de já ter uma considerável importância na parte final do século XIX. As competições pioneiras da modalidade foram realizadas na Europa, ainda na década de 1890. E querendo inserir o Brasil nesse cenário de modernidade, essa “moda da velocidade” também chegou em terras tupiniquins.

Em 1908, ocorreu a primeira grande aventura com automóveis no país, com um percurso longo que ia do Rio de Janeiro até São Paulo. O francês Conde Lesdain o percorreu por completo pilotando um Brasier, modelo muito requisitado na época. Depois de 35 dias, conseguiu completar o trajeto. Para os espectadores daquele contexto, esse foi um grande marco para o desenvolvimento de corridas e para o avanço do uso de automóveis no país.

A primeira corrida organizada no Brasil teve também São Paulo como espaço pioneiro. Trata-se do Circuito de Itapecerica, que ocorreu com a tutela do Automóvel Clube de São Paulo, criado em 1908. Itapecerica da Serra é um município da região metropolitana de São Paulo. Em mais de 70 quilômetros de percurso, seus competidores foram da cidade de São Paulo, de onde partiram do Parque Antártica, até Itapecerica da Serra, para então regressarem ao ponto inicial. Essa organização fez com que esse circuito ganhasse destaque como sendo a primeira grande prova “oficial” do automobilismo na história brasileira.

A imagem em questão foi publicada no periódico Careta, na edição de 25 de novembro de 1909, representando parte do circuito da “Corrida de São Gonçalo”. Também pode ser encontrada na obra “Primórdios do esporte no Brasil: Rio de Janeiro” (2016, p. 107), escrita por Victor Andrade de Melo e Fabio de Faria Peres.

Na cidade do Rio de Janeiro, desde 1907, já havia sido criado o Automóvel Clube do Brasil, onde se iniciaram debates para, também, realizarem um circuito de corrida similar ao que ocorreu em São Paulo. Inicialmente, a proposta era de realizar o percurso dentro da própria cidade do Rio de Janeiro. Porém, uma série de fatos fizeram com que essa ideia fosse inviabilizada e o percurso da primeira corrida pensada na capital federal, foi transferido para uma cidade vizinha, a “novata” São Gonçalo, que em 22 de setembro de 1890 havia se emancipado de Niterói, então capital da província do Rio de Janeiro.

O interesse dos organizadores era, inicialmente, o de realizar a corrida no Alto da Boa Vista. Porém, tal hipótese foi logo descartada. Após as autoridades municipais, durante o governo do então prefeito Souza Aguiar no Rio de Janeiro, proibirem as corridas na localidade, os idealizadores da prova enxergaram na cidade de São Gonçalo uma fértil opção para realizarem o grande evento (MELO; PERES, 2016, p. 106).

A escolha de São Gonçalo como sede da primeira corrida em terras fluminenses, se deu por distintos motivos. Além da geografia favorável, ainda marcada por características bem mais rurais do que as vizinhas Rio de Janeiro e Niterói, o desenvolvimento industrial ocorrido na virada do século XIX para o XX, fez com que a cidade pudesse ser entendida como um espaço propício para a simbólica corrida, considerando o cenário de modernidade em que buscavam enquadrar tal evento.

Imagem publicada no periódico Careta, Ed. 69, p. 13. Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1909. Fonte: “Primórdios do esporte no Brasil: Rio de Janeiro” (2016, p. 105), livro escrito por Victor Andrade de Melo e Fabio de Faria Peres

A região de Neves, por exemplo, formava com outras adjacentes, como o bairro do Barreto em Niterói, o espaço que ficou conhecido no imaginário social como “Manchester Fluminense”. Notadamente, esse termo foi utilizado para representar a grande estrutura industrial e fabril desenvolvida naquele território, fazendo referência a cidade britânica famosa mundialmente por seu polo industrial. É óbvio que tais discursos possuem um teor ufanista e que, muitas das vezes, exacerbam a própria realidade local (REZNIK, 2002, p. 2). Todavia, foi esse imaginário construído, a partir do avanço industrial ocorrido em Neves, que fez com que a região fosse cogitada como um espaço propício para a realização da corrida.

Sendo ou não a “Manchester Fluminense”, a relação que a região tinha naquele período com um determinado padrão de modernidade e tecnologia, ligados a questão das industriais, fez com que São Gonçalo pudesse se tornar o centro daquela que ficou conhecida como a “primeira corrida de automóveis em terras fluminenses”. De forma equivocada, alguns periódicos e escritores memorialistas da época, inclusive, diziam ser essa a “primeira corrida de automóveis do Brasil”, ignorando o já aqui citado Circuito de Itapecerica, ocorrido no ano anterior em São Paulo. O fato é que, sendo a primeira ou segunda corrida em âmbito nacional, o circuito gonçalense mexeu com o imaginário e referendou fortes identidades na cidade e regiões adjacentes, em um cenário ainda fértil e propício para a construção de diferentes símbolos locais que, em muitas situações, se tornavam nacionais.

Monumento que faz referência ao centenário da Corrida de São Gonçalo (1909-2009). Neves, São Gonçalo/RJ Fonte: https://simsaogoncalo.com.br/sao-goncalo/voce-sabia-que-2a-corrida-oficial-de-automoveis-do-brasil-foi-em-sao-goncalo/

O percurso da corrida foi ousado. Totalizando 72 km, o trajeto vencido por Gastão de Almeida se iniciou no bairro industrial de Neves, mas percorreu quase toda a cidade, tendo seus competidores passado pelas regiões do Alcântara, Pacheco, Sacramento, Monjolos, Laranjal, entre outras. Percorreram, inclusive, a Estrado do Engenho Novo, passando pela famosa “Fazenda do Engenho Novo”. (1)

“Mesmo sendo realizada em local distante, a corrida contou com bom público e teve grande repercussão, graças à ampla cobertura da imprensa. Foi uma expressão de como o automóvel vivia um primeiro momento de popularidade na cidade, já assumindo uma função simbólica notável. As competições exponenciavam essa representação, deixando ainda mais claras as noções de desafio, aventura e velocidade” (MELO; PERES, 2016, p. 107).(2)

O imaginário identitário acerca da memória dessa corrida, permanece no município até os dias atuais. Uma constatação do mantimento de tal memória, foi a inauguração de um monumento em 2009, no próprio bairro de Neves, que faz menção ao centenário da referida corrida, tendo sido essa a principal forma de reviver esse evento tão marcante na história da cidade, que ficou conhecida como o “berço do automobilismo fluminense”.

PS: A base deste texto foi publicada originalmente em 24/11/2018, nas páginas do projeto “História Fluminense: Patrimônio, Memória e Educação” (conferir aqui e aqui).


Notas

(1) “O antigo Engenho do Novo Retiro pertenceu a diversos donos até 1830, quando foi adquirido por Belarmino Ricardo de Siqueira – Barão de São Gonçalo. A Fazenda possui um conjunto arquitetônico em estilo neoclássico. Foi um dos principais trajetos da 2ª corrida automobilística do Brasil em 1909 e também serviu de cenário para as gravações da minissérie “Memorial de Maria Moura”, produzida pela Rede Globo. Há lendas de que a fazenda foi palco de uma visita da Família Imperial, por volta de 1870, devido à amizade do Barão com o Imperador D. Pedro II.  O conjunto abandonado à própria sorte, não resistiu ao descaso e ruiu no início dos anos 2000.” Maiores informações. Acesso em 15 de março de 2020.

(2) É interessante perceber a mobilização social que a corrida provocou, tendo aglomerado grande público, inclusive de mulheres, que nesse contexto ainda não se inseriam nas práticas esportivas como participantes, mas faziam parte dos eventos e das formas de sociabilidade provocadas por esses, na posição de espectadoras.


Referências bibliográficas

MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. Primórdios do esporte no Brasil. Rio de Janeiro. Manaus: Reggo, 2016.

REZNIK, Luís. Qual o lugar da História Local? In: V Taller Internacinal de Historia Regional y Local. Havana – Cuba, 2002.

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Edu Gomes

Historiador, professor e pesquisador do esporte. Doutor e mestre em História Comparada, com ênfase em História do Esporte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período sanduíche na Universidad de Antioquia (UdeA), Colômbia. Graduando em Educação Física (Claretiano). Atua como pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ). Professor na Educação Superior e Básica. Editor e colunista de esportes do Jornal Toda Palavra (Niterói/RJ), além de atuar como repórter e comentarista da Rádio Esporte Metropolitano. Autor dos livros intitulados "A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954)" (Ed. Appris, 2019) e "El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)" (Ed. Multifoco, 2014). Organizador da obra "Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais" (Ed. Multifoco, 2015), além de outros trabalhos relacionados à História do Esporte na América Latina.

Como citar

GOMES, Eduardo de Souza. Os primórdios do automobilismo fluminense: o caso da Corrida de São Gonçalo. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 51, 2020.
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