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Cinco teses sobre a rivalidade Argentina-Brasil a partir da Final da Libertadores 2023

Argentina e Brasil estão fadados a rivalizar entre si. Como toda vizinhança forçada: o que une, também separa. Porque a proximidade geográfica às vezes cristaliza as distâncias sociais. Nada exemplifica melhor isso do que o futebol. Por tradição e atualidade, o jogo de espelhos é inevitável. Muito já foi escrito sobre isso. No entanto, Pablo Alabarces ainda o resume melhor: “Os brasileiros adoram odiar os argentinos e os argentinos odeiam amar os brasileiros”. Um amor-ódio recíproco.

No entanto, nos últimos anos, o ódio parece estar vencendo o amor. Há três meses, publiquei um tópico no Twitter (Today “X”) alertando sobre uma preocupante escalada de violência entre torcedores argentinos e brasileiros. Principalmente quando os times dos dois países se enfrentam na Copa Sul-Americana e na Copa Libertadores. De lá até hoje, só piorou. 

A final da Libertadores entre Fluminense e Boca foi o ápice de uma violência tão cumulativa quanto previsível. Houve emboscadas, roubos, ferimentos, hospitalizações, prisões, repressão, racismo, xenofobia, sanções, ameaças de morte, armas, risco de suspensão e a lista poderia continuar. Por sorte não tiveram mortos. 

A seguir, 5 teses sobre a rivalidade Argentina-Brasil com base no que aconteceu na final entre Fluminense e Boca pela Copa Libertadores 2023. Escrevo como pesquisador do assunto, amante do futebol e argentino radicado no Brasil. 

Torcedores do Fluminense
Torcedores do Fluminense confrontam policiais militares e guardas municipais em acesso bloqueado ao Maracanã, na Rua São Francisco Xavier, antes da final da Copa Libertadores contra o Boca Juniors. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Tese 1: O racismo flagrante da Argentina gera um ódio visceral no Brasil

O racismo argentino contra o Brasil não é novidade. Muito menos no futebol. Alguns veículos da imprensa local já chamavam seus vizinhos de “macacos” no início do século XX. Quase um século depois, nada mudou. Em 1996, durante as Olimpíadas de Atlanta, o jornal Olé manteve a tradição racista diante de um possível confronto com o Brasil. Na primeira página, publicou “Que venham os macacos”. 

Em todos – mas em TODOS – os jogos entre times argentinos e brasileiros, um torcedor argentino que imita um macaco, grita “macaco” ou publica comentários racistas se torna viral no Brasil. Ou pior. Há alguns dias, um torcedor do Boca, durante o hasteamento da bandeira em Copacabana, começou a insultar os brasileiros pela emboscada. Ele se despediu da câmera gritando: “esclavos… monos de mierda” (escravos… macacos de merda).

A Argentina mudou pouco ou nada em sua consciência racial. O Brasil mudou. Em um país onde metade da população é negra; onde um jovem negro é morto a cada 23 minutos; onde a herança escravocrata determina as profundas desigualdades de hoje; chamar alguém de “macaco” ou “escravo” não é apenas incorrer em um crime que pode levar até cinco anos de prisão; é também colocar o dedo em uma ferida histórica não cicatrizada.

O racismo é ignorado ou minimizado na Argentina. Ou é legitimado em nome do “folclore”. Isso é um grande erro. Devemos estar cientes da sensibilidade que machuca. A zombaria racista é uma das piores ofensas contra o povo brasileiro – apesar do fato de que internamente o Brasil ainda é um país profundamente racista. Vou exemplificar isso de forma dramática. O único equivalente que me vem à mente seria os torcedores brasileiros zombando abertamente e impunemente de nossos companheiros caídos nas Malvinas. Se isso acontecesse, como reagiríamos?

Torcedores do Boca
Torcedores do Boca Juniors se reúnem na Praia de Copacabana. Amanhã o time do Boca enfrenta o Fluminense na partida final da Copa Libertadores da América. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

Tese 2: O antirracismo brasileiro é confundido com xenofobia e aporofobia

Os brasileiros reagem. Principalmente as populações negras. Há uma rejeição tão generalizada que une as rivalidades mais intensas e os atores mais díspares. A ofensa se torna uma questão nacional. Isso não significa que o racismo interno desapareça. Mas significa que os “forasteiros” são proibidos. Sob o slogan nascido dos movimentos negros “fogo nos racistas” – fire on the racists – são legitimadas represálias de diferentes graus e naturezas. 

Para começar, há pedidos de prisão de racistas. Mas também há respostas não institucionais. A reação mais comum dos brasileiros dentro dos estádios de futebol é queimar cédulas argentinas. Uma zombaria com a situação socioeconômica desastrosa do país e a desvalorização progressiva da moeda nacional. Aqui eu interpreto duas coisas: por um lado, o literalismo do “fogo nos racistas“. As pessoas não são queimadas, mas seus símbolos sim. Há algo de aporofobia nisso, ou seja, uma certa rejeição ou aversão à pobreza. 

Mas o “fogo nos racistas” também é um apelo à ação direta. Ou seja, à violência física. Todos os ataques dos torcedores do Fluminense aos torcedores do Boca foram legitimados em nome do antirracismo. A torcida organizada do Fluminense Sobranada, dias antes do jogo, postou um panfleto em sua conta que dizia “Para racista es una trompada en la Boca” (Para racista é um soco na boca). “Racista” trazia as cores da Argentina e “Boca” as cores do clube. A emboscada que ocorreu dias depois em Copacabana foi percebida como uma cruzada racial. É um tanto paradoxal que ela tenha vindo do Fluminense, um dos clubes com um dos registros mais racistas do Brasil.

Embora nem todos os brasileiros aprovem a violência como reação ao racismo argentino, é fácil perceber que a maioria deles acha que todos os argentinos são racistas. Existe até uma piada para isso. Toda vez que veem um argentino sendo racista, eles dizem “nem todos os argentinos são… mas é sempre um argentino”.  

Há alguma verdade nisso. Mas há dois problemas sérios que surgem aqui: primeiro, fazer justiça com as próprias mãos só aumenta a violência incontrolável. Segundo, é muito perigoso estigmatizar uma nação inteira sem distinção. Por causa desse tipo de raciocínio, as “barras del fluminense”, a polícia carioca ou os formadores de opinião das mídias sociais acabam confundindo santos com pecadores. E o legítimo antirracismo brasileiro resvala para uma xenofobia repudiável contra os argentinos. 

Final Libertadores 2023
Policiamento reforçado para a final da Copa Libertadores entre Fluminense e Boca Juniors, no estádio do Maracanã. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Tese 3: A mídia e as forças de segurança apenas colocam lenha na fogueira

Entre tantas diferenças, há algo em comum. Eu diria que é idêntico. Tanto na Argentina quanto no Brasil, a mídia tradicional e as contas de redes sociais especializadas nessas questões produzem e reproduzem uma visão totalmente tendenciosa, chauvinista e demagógica. Dizem o que seu público quer ouvir. 

A imprensa brasileira só mostra argentinos racistas. A imprensa argentina só expõe a violência brasileira. Nenhuma delas é falsa, mas ambas são incompletas. O que leva a uma interpretação que é tão tendenciosa quanto reconfortante para aqueles que a consomem. 

Outro elemento comum são as reclamações contra a polícia. Em ambos os lados, eles dizem a mesma coisa: “aqui eles cuidam deles e lá eles nos matam”. Ambos os torcedores percebem a condição de “visitante” como uma experiência hostil em relação às forças de segurança. 

Por trabalho e paixão, tento ir ao maior número possível de jogos. Em ambos os países. Há repressão e bom atendimento em ambos os casos. O estado do Rio de Janeiro criou uma força policial especial e não repressiva para eventos de futebol. É o chamado BEPE (Batalhão Especializado em Policiamento em Estádios). Ele tem uma boa reputação. Coincidentemente, na entrada da torcida do Boca no Maracanã havia apenas a Polícia Militar e a infantaria montada.  Foi um desastre. Gás lacrimogêneo generalizado, espancamentos sem distinção, contenção da multidão em excesso e vários feridos. Pessoas com ingressos comprados legitimamente não entraram no estádio. 

Qualquer protocolo de segurança era letra morta. Esse tipo de prática só alimenta o ressentimento acumulado. 

Final Libertadores 2023
Torcedores do Fluminense confrontam policiais militares e guardas municipais em acesso bloqueado ao Maracanã, na Rua São Francisco Xavier, antes da final da Copa Libertadores contra o Boca Juniors. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Tese 4: A relação entre o Barras argentino e as Torcidas Organizadas brasileiras parece entrar em outro nível de agressão

O que na Argentina conhecemos como “barras bravas” no Brasil é chamado de “Torcidas Organizadas”. Cada clube tem uma ou várias. Entre as equipes argentinas e brasileiras, há barras e torcidas amigas e inimigas.  Alguns exemplos de amizade são: Fluminense com o Vélez; Boca com o Vasco da Gama; São Paulo com o Chacarita; Grêmio com o Almagro; Inter com o Independiente; Cruzeiro com o San Lorenzo. Isso, por sua vez, gera inimizades contra os rivais clássicos de cada um desses polos de amizade. É um código de barras que professa: o “amigo do amigo é amigo” e o “inimigo do amigo é inimigo”.

Parece-me que ultimamente há uma tendência de enfatizar as inimizades em detrimento das amizades. De duas maneiras. Em primeiro lugar, porque muitas das amizades entre barras e torcidas organizadas estão sendo questionadas. Tanto por alguns membros desses grupos quanto pelos torcedores em geral. Do Brasil, aqueles que “fecham com os racistas“, ou seja, aqueles que fazem amizade com racistas, são criticados. Lembremos que, para a maioria deles, todo argentino é racista. Consequentemente, os torcedores do Fluminense que apoiam a hostilidade contra os torcedores do Boca, julgam a amizade com o Vélez como hipócrita. 

Mas também porque a ideia de que o “visitante” deve ser recebido de forma hostil está se tornando cada vez mais comum. Quando os torcedores argentinos são maltratados no Brasil, e vice-versa, eles juram pagar em espécie. E assim entramos na espiral de violência que encontra sua expressão mais clara na vingança. Depois que a mídia argentina multiplicou ad infinitum que os torcedores brasileiros agrediram mulheres, crianças e idosos em Copacabana, como você acha que eles serão recebidos na próxima vez que viajarem para o país vizinho? 

Seja porque um é racista ou porque o outro embosca pessoas comuns, ambos os delitos correm o risco de serem generalizados para todas as torcidas organizadas e desonestos em todos os países. 

Torcida Boca Juniors
Torcedores do Fluminense confrontam policiais militares e guardas municipais em acesso bloqueado ao Maracanã, na Rua São Francisco Xavier, antes da final da Copa Libertadores contra o Boca Juniors. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil.

Tese 5: A Conmebol é a principal culpada

Não sei se é negligência, incompetência ou corrupção. Ou tudo junto. O que é certo é que a CONMEBOL faz tudo errado. Nunca encarou a violência em geral e a progressão da agressão entre argentinos e brasileiros em particular com a seriedade que ela merece. Uma impunidade que alimentou uma escalada; uma escalada que levou a uma final que, em termos de segurança, foi uma bagunça. 

Certamente foi um sucesso em termos econômicos. Para eles, não para os clubes. Metade dos ingressos – 40.000 – foi gasta com protocolo, patrocinadores e amigos. Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol, ao que parece, tem muitos amigos. 

A preeminência da dimensão econômica sobre qualquer outra é a única razão que pode explicar a insistência obstinada em manter o “final único”. Um formato que, desde sua implementação, só tem trazido problemas. Vamos nos lembrar. Sua primeira versão foi em 2019.  A final entre Flamengo e River seria disputada em Santiago do Chile, mas teve que ser transferida de última hora para o Peru devido aos protestos chilenos. Um ano depois, aconteceu a mesma coisa: o local foi transferido de última hora do Brasil para o Uruguai. Estamos falando da mesma Confederação que levou a final entre Boca e River para… Madri, na Espanha. E depois manteve o Maracanã, no Rio de Janeiro, como “local neutro”. Estádio e cidade do Fluminense.

O foco é exclusivamente o marketing gerado por um megaevento que tem a Liga dos Campeões da UEFA como modelo de negócios. Só que estamos na América Latina. Introduzir esse formato em nossa realidade é o mesmo que tentar colocar um quadrado dentro de um círculo. Simplesmente não funciona. 

Enquanto a situação descrita acima não for encarada com a responsabilidade que merece, continuaremos a lamentar infortúnios que são tão indesejáveis quanto esperados. E ninguém poderá se fazer de desentendido. Porque tudo o que é previsível é evitável. 

Final única Libertadores
Final única Libertadores. Foto: thenews2.com/Depositphoto.
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Nicolas Cabrera

Nicolás Cabrera é doutor em Ciências Antropológicas pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC) e bacharel em Sociologia pela Universidade Nacional de Villa Maria (UNVM). Atualmente é bolsista pós-doutorado da FAPERJ/CNPq no Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sob a orientação do Ronaldo Helal. Pesquisa temáticas ligadas à violência, segurança e esporte na América Latina.Tem publicado os livros “Que la cuenten como quieran: pelear, viajar y alentar en una barra del fútbol argentino” (Prometeo, 2021); “Uno hace lo que puede, ¿no? Visualidades en tiempos de pandemia” (2021); “No me olvides II: Historias de vida de inmigrantes” (2011). Também colaborou em diversos capítulos de livros e artigos científicos nacionais e internacionais. Além das suas atividades acadêmicas, trabalha com o jornalismo, a crônica e a fotografia.

Como citar

CABRERA, Nicolas. Cinco teses sobre a rivalidade Argentina-Brasil a partir da Final da Libertadores 2023. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 7, 2023.
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