A prisão de Ronaldinho no Paraguai por cerca de 40 dias (inclusive por ser em uma época com tantos jogadores envolvidos em diversos inquéritos e até prisões) é mais uma oportunidade de uma pequena revisão diante de algumas reflexões mais avançadas sobre o tema da relação do jogador com seu entorno social.
Após uma breve análise sobre o conceito valor de troca da mercadoria [1], Martins (2016) é um útil estudo para o tema do jogador de futebol através de outras categorias marxistas. Sobretudo diante de uma desigualdade intrínseca que separa uma maioria de ‘operários’ da bola de uma minoria de ‘celebridades’ da bola.
O que Marx talvez pudesse chamar de lumpesinato, de um lado; e pequeno-burgueses, de outro. Como ele dissera, não seria necessário ciência caso a aparência coincidisse a essência. O desencontro entre a consciência (subjetivo) e a condição (objetivo) de classe é causado pela construção de narrativas heroicas sobre essa minoria:
“A publicidade convoca todos a gozar de um mundo de privilégios, quando, na realidade, para que existam tais privilégios, é necessário que nem todos tenham acesso a eles, e isso a publicidade oculta, a lógica da exclusão que é a realidade da maior parte de seu público.”(Martins, 2016, p 81)
Ronaldinho e o irmão Assis são presos no Paraguai. Foto: MP Paraguai.
Para entender um pouco a participação política dos jogadores ontem e hoje, Martins (2016) relata várias entrevistas que aqui seleciono duas. Primeiro Wladimir, nos anos 1980, relata como obstáculo a competitividade intrínseca na profissão, pois cada resultado separa vencedores e perdedores. Embora o passe estivesse no centro das disputas, ele tinha consciência que a rápida abolição deixaria a massa de jogadores entregues à própria sorte sem um fortalecimento da categoria justo na época do auge da sindicalização.
Depois Alex, nos anos 2010, também relata o resultado como obstáculo, pois um time que protestou se perder na partida seguinte fica sem moral. Pior ainda, ele recorda que para grande parte da sociedade ainda é tolerável que jogadores fiquem com salários atrasados se já ganham bem.
O tema do resultado reaparece outra vez ainda na pesquisa de Rogério (2018), pela qual a disciplina permanente aos principais jogadores faz com que os excessos na noite sejam tolerados quando se está vencendo, mas se tornam um intensificador de crises se está perdendo. Acrescento que, se hoje a elite dos jogadores não desfruta mais da boemia com privacidade, ainda assim ela tem um conforto e uma proteção sobrenaturais a um cidadão comum e “pode” ficar totalmente alheio a seu entorno social.
“A maioria dos atletas vive um mundo à parte, deixa seus negócios para empresários, o que faz com que não tenha uma opinião mais elaborada sobre questões cruciais do mercado de trabalho no futebol, como é o fim do passe, por exemplo”(RODRIGUES, 2007, p 256)
Retomando Martins (2016), há um paradoxo que os jogadores com a melhor condição material são os que mais se omitem de defender os demais da categoria por receio de desvalorizar sua imagem. Enquanto uma maioria de condição mais precária, muitas vezes excluídos da escola e do trabalho, ainda sonha no futebol como a última chance de uma pequena vingança, ainda que somente dentro de campo, contra as mazelas e injustiças da vida.
Para os autores selecionados há uma percepção de incapacidade que dirigentes e cronistas têm de que jogadores não conseguem se cuidar em seu tempo livre. Vide os vários obstáculos que os líderes da recente auto-organização do Bom Senso FC (2013/14) por tentarem contornar a inércia de sindicatos burocráticos que falam pelos jogadores mas fecham seus canais de participação. Vide que tais sindicatos tentaram embaralhar as cartas da consciência e condição de classe da seguinte forma: incitar a base dos jogadores a se manifestar pela pauta de salários em dia para tentar esvaziar o novo movimento com sua pauta (mas não única) de redução de partidas no calendário pela elite dos jogadores tidos como ‘privilegiados’.
Isso que nesse breve texto fiquei apenas em alguns estudos dos últimos anos sobre processos das últimas décadas. Sendo possível até mencionar estudos mais preliminares e ensaísticos da questão como “Subterrâneos do futebol”, de João Saldanha, no longínquo ano de 1963. Além de “Grandezas e misérias do futebol brasileiro”, de Floriano Peixoto Correa, no mais longínquo ainda ano de 1933.
Sobre a profissionalização do futebol dos anos 1930, vários estudos de várias épocas já trataram que a conquista dos jogadores foi compensada por novas formas de dominação como o passe pelos dirigentes e o moralismo pelos cronistas ao serem bem menos tolerantes com os desvios dos jogadores do que de outras pessoas.
Até aqui se vê que o conhecimento popular não encontra muitos obstáculos no conhecimento acadêmico para justificar a percepção que tem da atual omissão dos principais jogadores ao seu entorno social: seja por motivos mais subjetivos como o próprio comportamento, seja mais objetivos como a estrutura de poder do futebol e seu mercado de transferências.
Mas para embaralhar um pouco essas cartas há outra hipótese levantada por Damo (2008) para além dessa mais recorrente que eles seriam incapazes de lidar com o próprio dinheiro. O pesquisador desenvolve uma argumentação do paradoxo entre a troca entre jogadores e clubes através do dinheiro e a ‘troca’ entre jogadores e torcedores ser mais emocional. Pois há uma crença muito enraizada entre os jogadores que o capital econômico obtido pelo capital futebolístico (o dom de jogar bola) deve ser posto logo em circulação novamente através de gastos exagerados como uma forma mística de retribuição!
Quando parecia que o ‘bruxo’ Ronaldinho Gaúcho estava escondido até aqui nessa crônica, trago essa ironia do destino que relata Damo (2008) como seu principal estudo de caso para relacionar sua argumentação: a transferência conturbada de Ronaldinho pela porta dos fundos do Grêmio ao PSG, em 2001.
Inclusive com o requinte da torcida gremista lhe atirando moedas para simbolizar que a tal ‘troca’ com eles falhara e o dinheiro que ganharia no novo contrato não lhes importaria. Mas como os deuses do futebol escrevem certo por linhas tortas, o mercenário e o clube que o viu nascer se reencontraram justamente uma década depois.
Vitória do Grêmio sobre o Flamengo no estádio Olímpico após um famoso ‘leilão’ meses antes com a ajuda de seu irmão Assis para inflacionar valores da transferência. E claro, novo protesto da torcida tricolor que não esqueceu da traição.
Uma pena que Marx não testemunhou o futebol, pois diante desse retorno poderia questionar com seu célebre: primeiro como tragédia, depois como farsa? Mas esse enredo ainda guardaria um terceiro ato mais uma década depois. Ronaldinho chegou ao topo no futebol em 2004/05, mas logo se cansou e preferiu mesmo a badalação. Muita gente já viu sinais dessa troca na “farra de Weggis” como responsável pela bola murcha do “quadrado mágico” em 2006.
No início dessa crônica eu levantei três vezes a questão do resultado e não foi a toa: o ‘bruxo’ se convenceu, infelizmente como tantos outros famosos ou anônimos, que quem já foi vencedor está acima do bem e do mal. A decadência esportiva ia coincidindo com a decadência da pessoa pública. Pois a uma carreira artística tão ‘aleatória’ (segundo os memes) foi sendo seguida a uma carreira criminosa em que atuou em várias posições da contravenção.
Passaportes paraguaios de Ronaldinho e Assis. Foto: Fiscália Paraguay.
Como critica o blogueiro Menon, nem mesmo durante sua prisão deixou de ser coerente com sua trajetória em tantos anos de estar preso a uma bolha, apenas sorrindo sem se importar com o que ocorre ao seu redor. O que não surpreende diante de uma omissão generalizada na atual geração da boleiragem que não se posiciona em questões sociais e políticas nem sequer nas próprias condições de trabalho sendo prejudicadas diante da quarentena. Um fracasso para o futebol brasileiro tanto quanto o 7 a 1 ou as duas décadas sem ganhar a Copa.
Como o craque Casagrande recentemente declarou, eles estão parecendo ovelhinhas. É certamente um cenário desolador, do tipo que o último que sair apague a luz. Mas justamente durante a quarentena, no início de maio, os jogadores Maicon e Paulo André ganharam na justiça comum o direito de receber adicional noturno de ex-clubes. O que levanta a questão para o debate é de que esse e vários outros direitos básicos (como a aposentadoria) de qualquer trabalhador registrado, não estão contemplados até mesmo na elite do futebol.
Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.
Como citar
PERINA, Fabio. Condição e consciência de classe da boleiragem: a prisão de Ronaldinho. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 5, 2020.
40 anos de democracia à deriva na Argentina: futebol e política (parte 1)
Fabio Perina
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