148.7

Quando o preconceito vem disfarçado de opinião e o papel de responsabilidade social do jornalista esportivo

Na última semana uma situação chamou bastante atenção na cobertura do noticiário esportivo no que tange ao recorte de raça e etnia. Na estreia do programa F90, na segunda-feira (27), do canal esportivo ESPN Brasil, os comentaristas Pedro Ivo e Zé Elias discutiram ao vivo durante a transmissão do novo programa do canal. A discordância iniciou após Fábio Sormani afirmar que alguns jovens jogadores do Palmeiras “se deslumbram” e que o baixo rendimento desses atletas era em decorrência do cabelo rastafari, da chuteira colorida, tatuagens, etc. 

Zé Elias concordou com a fala de Sormani e adicionou a discussão o fato de que aquilo – cabelo rastafari, tatuagens – se tornaram uma divisão de foco. O jornalista Pedro Ivo, que também estava participando da conversa, se opôs a essa argumentação e disse que achava “perigoso quando se condiciona certos símbolos, como uma tatuagem, que pode ter um significado, um penteado, que às vezes é algo cultural”. 

Foto: Cesar Greco/Palmeiras

A intensa discussão consumiu cerca de 14 minutos da estreia do F90 e ela é muito rica para complexificar as expressões do racismo no cotidiano, mas que também estão presentes na mídia e no jornalismo. Muitas delas, disfarçadas de uma opinião que explicitamente, como neste caso, se afirma não ser preconceituosa. Minha intenção é dialogar entre o fato concreto, a discussão, e estudos que abordam a questão do racismo no Brasil. O movimento é fazer o olhar a partir de uma situação micro para abordagens macro.

Antes de tudo, vale pontuar que o preconceito racial pode ser interpretado nessa abordagem de análise como  um conjunto de estereótipos impostos a grupos racializados e que pode resultar ou não em práticas discriminatórias (ALMEIDA , 2019). É considerado necessariamente uma atitude negativa a um outro grupo, ou a uma pessoa pertencente ao grupo, que se baseia num processo de comparação social em que o grupo ao qual o indivíduo pertence é visto como o ponto de referência positivo (JONES, 1973). Por exemplo, o cabelo afro e suas diversas e plurais manifestações. Me pergunto se o cabelo do Danilo fosse liso o mesmo questionamento teria sido feito?

Abaixo separei alguns trechos que podem ser úteis para pensarmos de que forma os discursos e comportamentos vistos no “senso comum” podem ser reproduzidos e manifestados no jornalismo, mais precisamente através do seu gênero opinativo.

Sormani: “A impressão que me dá é que alguns jogadores do Palmeiras, essa molecada, se deslumbraram. Aí você vê o Danilo com um cabelo rastafári… Os caras estão deslumbrados. O Patrick de Paula mesmo foi pego numa quebrada à noite e foi afastado. Precisa ver como é que esse molecada está se comportando. O meu meio-campo [do Palmeiras] é Danilo e Patrick de Paula, mas esses caras não estão entregando. Por que não estão entregando? É chuteira colorida, é rastafári, é fitinha…”

Esse trecho revela um aspecto importante em que o comentarista iguala o penteado do Danilo a uma furada de quarentena do outro volante do Palmeiras, Patrick de Paula, enquanto elementos importantes para a queda de rendimento técnico no clube. Primeiro, a segunda situação exemplificada por ele configura uma quebra de protocolo do jogador com o clube no que se refere ao combate a Covid-19. Em junho de 2021, Patrick foi pego numa festa clandestina o que gerou uma multa para o atleta e – direta ou indiretamente – o meio campista passou a frequentar mais o banco de reservas por escolha do técnico durante esse período. 

Mas, de que forma o cabelo rastafari pode influenciar diretamente na performance do Danilo ou de qualquer outro atleta? É importante frisar que o ideário estético que se configurou no Brasil teve seu centro a partir das noções da branquitude. A supervalorização dos cabelos lisos, da negação ou subalternização dos traços negróides – tal qual o cabelo crespo e os penteados afro brasileiros – são elementos que também podem ser inseridos nesta reflexão (SANTOS, 1984).

O cabelo e suas plurais manifestações – black, tranças, rastafari –  são componentes de identidade e autoafirmação da população negra. Colocá-lo numa caixinha ao qual o torna um fator que corrobora para a queda do rendimento do jogador revela na verdade um contexto de preconceito racial bastante comum do brasileiro, só que este foi gravado e transmitido em rede nacional por um veículo que tecnicamente por seu papel social enquanto uma mídia jornalística deveria combater este tipo de discurso e não retroalimenta-lo. 

Sormani: Exatamente. Ao invés de passar o tempo estudando o adversário, você passa seu tempo na frente do espelho olhando rastafári. Pode parecer careta e preconceituoso, mas não é. O Zé pode falar melhor sobre isso.

[…]

Zé Elias: Acho que você não entendeu… Você tá levando para um lado de preconceito. Não usei esse tipo de exemplo, como preconceito. Preste atenção, não tem nada de símbolo, você está levando para um lado que eu não levei. Não estou dizendo nada contra cultura, contra cabelo… Preste atenção, não fuja do contexto…

Esse trecho, dito pelos comentaristas, novamente condiciona uma situação em que o jogador não se esforça para estudar o adversário porque está perdendo tempo “na frente do espelho olhando o rastafári”, a frase seguinte é ainda mais simbólica quando ele mesmo descarta qualquer tipo de noção preconceituosa nesta fala.

O historiador Joel Rufino dos Santos (1984) coloca esse tipo de pensamento como uma das características do racismo brasileiro: a negação do próprio racismo.

Se afirmar enquanto uma pessoa não-racista, não-preconceituosa, mas ainda assim produzir discursos e comportamentos discriminatórios são comuns na sociedade brasileira, sendo este um mecanismo de poder. O trecho seguinte é um componente normalmente complementar a este tipo de posicionamento. Vejamos. 

Zé Elias: Você [Pedro] está levando para um lado diferente. Eu não falei nada de cultura, de símbolo, não falei nada disso… A forma como você coloca dá a entender que eu estou sendo preconceituoso, de cultura. Eu tenho amigos negros, tenho meu irmão que tem tatuagem, tenho amigos que têm cabelo rastafári, eu não estou dizendo isso, Pedro. Preste atenção… o que eu quis dizer é na formação dos nossos atletas, na divisão de foco (…) Eu não estou aqui para julgar a pessoa que tem tatuagem, não fiz julgamento da pessoa. Só dei exemplos do que é feito. Estou falando em foco.

Ronaldo Laurentino de Sales Júnior em seu livro “Raça e justiça: o mito da democracia racial e o racismo institucional no fluxo de justiça” (2009) discute em um momento do texto exatamente sobre a cartada utilizada por pessoas brancas no Brasil de afirmar que “até tenho amigos negros” para se imunizar de qualquer responsabilização ou apontamento em falas problemáticas de cunho étnico-racial. Segundo ele, “no Brasil, ninguém aparece como racista declarado, e, todos parecem reprovar o racismo e o racista. Todos se declaram simpatizantes, amigos ou parentes de pessoas negras, ou, até mesmo, assumem-se como pessoas negras, porém isso não parece impedir a exclusão cultural, política e econômica dos afrodescendentes”. 

Novamente faz necessário recorrer a Joel Rufino dos Santos para pensar a origem da culpabilização de Danilo e Patrick de Paula por seus próprios baixos rendimentos. Segundo o intelectual, “Nosso preconceito racial, zelosamente guardado, vem à tona, quase sempre, num momento de competição. (o futebol é um caso mais que típico de ‘momento de competição’)” (1984). Quando o time perde, procura um culpado para justificar a derrota, e esse culpado normalmente tem cor.” Esses são apenas alguns trechos selecionados deste específico episódio que precisam ser problematizados e responsabilizados, até porque a mídia e o jornalismo são um espaço de desconstrução, mas também pode vir a ser uma instituição de construção deles. 

Danilo Palmeiras
Danilo e seu rastafári na partida contra o Cuiabá pelo Campeonato Brasileiro de 2021. Foto: Cesar Greco/Palmeiras.

O ocorrido no programa F90 foi apenas o gancho da vez de uma situação que está longe de ser isolada. Em julho de 2021, por exemplo, o narrador Romes Xavier e o comentarista Vinícius Lima, da Rádio Bandeirantes Goiânia, fizeram comentários de cunho racista sobre o cabelo do meia Celsinho, que atua pelo Tubarão/PR. 

“Celsinho sentiu, tomou uma pancada no tornozelo esquerdo, está levantando mas o cabelo dele deve pesar demais, né Vinícius”? – disse o narrador.

“Exatamente, rapaz, parece mais um bandeira de feijão, né Romes, a cabeça dele do que um verdadeiro cabelo. Não é porque eu já estou perdendo os cabelos que eu vou achar um negócio imundo desses bonito. Parece mesmo uma bandeira de feijão” – concluiu o comentarista. 

O uso de adjetivos por parte de analistas, narradores, comentaristas, enfim, por agentes do campo esportivo, que resumem atletas negros ao seu porte e potencia física, como “Monstro”, “animal”, ‘trator’, “máquina”, “tanque”, são alguns exemplos desse tipo de uso racista discursivo sutil, onde ocorre a valoração dos atributos físicos em detrimento das propriedades intelectuais, da inteligência e da capacidade cognitiva dos atletas. E como vimos no caso detalhado no texto, no campo da estética também. 

Complexificar a função social do jornalismo, e especificamente no campo do esporte, é fundamental. O jornalismo esportivo deve e precisa desempenhar uma ação combativa ativa contra o preconceito racial – como também preconceitos de outras naturezas. Na prática, no dia-a-dia, desafios importantes se colocam para avançarmos neste trajeto, um deles passa por não aceitar discursos preconceituosos e não naturalizá-los como “opiniões”, precisamos responsabilizar os autores, os veículos e confrontá-los nesses casos. 

Afinal de contas, a comunicação “Age diretamente na memória e na atenção das pessoas, seja pelos jornais impressos, televisão, rádio, internet e outras mídias. Ao criar possíveis mundos esportivos emergem desejos de satisfação, propiciando ao indivíduo participar, incorporar e reproduzir pensamentos e condutas” (MALULY, 2010, p.2).

Referências utilizadas

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo : Pólen, 2019.

JONES, J. M. Racismo e preconceito. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1973.

JUNIOR, R. L. D. S. Raça e justiça: O mito da democracia racial e o racismo institucional no fluxo de justiça. Recife: Massangana, 2008.

MALULY, L. V. B. Pequeno manual da reportagem esportiva. In: Jornalismo esportivo: os craques da emoção. Cadernos da Comunicação, série Estudos, v.11, p. 85-109. Rio de Janeiro: Secretaria Especial de Comunicação Social; Prefeitura do Rio de Janeiro, 2004.

SANTOS, R. Joel. O que é racismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

ESTEVES, Emerson. Quando o preconceito vem disfarçado de opinião e o papel de responsabilidade social do jornalista esportivo. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 7, 2021.
Leia também:
  • 181.22

    De Jesse Owens a Lamine Yamal: el problema no es el origen ni el color, sino la ideología

    David Moscoso Sánchez
  • 181.9

    O racismo não é um problema

    Izadora Silva Pimenta
  • 180.10

    As denúncias de episódios de racismo: em foco, os dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol

    Bruno Otávio de Lacerda Abrahão