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Quatro a zero: Um só olho

Marcos Alvito 14 de agosto de 2015

O nome dele eu não posso dizer, por motivos que logo ficarão óbvios. O que posso dizer é que o conheci durante o trabalho de campo junto a uma das mais conhecidas e temidas torcidas organizadas do Rio de Janeiro. E que ele tinha um olho só. Porque o outro havia perdido, segundo ele, numa briga com a polícia. Não valia a pena entrar com processo, disse ele. Afinal ele continuava se encontrando com a polícia toda semana. Ia regularmente aos jogos com a torcida, mesmo que estivesse se arriscando a ficar cego e ele sabia disso muito bem. Não era um Hércules, nem mesmo um sujeito encorpado, era franzino e ossudo, lembrando o Tarzã de alfaiate do Noel. Mas todos me asseguraram que brigava como ninguém. Conversando, parecia o sujeito mais pacato e tranquilo do mundo.

Até aqui, tudo que eu disse parece corresponder, ponto a ponto, ao estereótipo das torcidas organizadas: violência, desregramento e irracionalidade. Será? Primeiramente, temos que atentar para a grandeza do fenômeno. As estimativas variam, mas podemos dizer que há pelo menos 500 torcidas organizadas pelo Brasil afora. E como algumas delas têm dezenas de milhares de adeptos, o universo destes agrupamentos corresponde a milhões de jovens. Ao lado de grupos religiosos jovens em igrejas de várias denominações, o “movimento das torcidas organizadas” como eles gostam de dizer, é sem dúvida o maior ponto de reunião da juventude brasileira. Mas não é visto nem tratado como tal.

MZ0112 - LONDRINA, PARANÁ, BRASIL: Flamengo VS Corinthians - Editorial - Vippcomm - CT Estádio do Café, Londrina - 15/01/2012 - FT: MARCOS ZANUTTO.
Torcida do Flamengo. Foto: Marcos Zanutto – VIPCOMM.

As organizadas surgiram como “torcidas jovens”, como nos ensina o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda em seu magnífico O Clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: 7Letras, 2009). Elas são filhas do processo de contestação e de revolta da juventude no mundo todo, a partir de maio de 1968. Tanto que uma delas se chamava, originalmente “Poder Jovem”. Desafiavam os poderes constituídos, lutando pelos direitos dos torcedores e fazendo oposição a cartolas eternamente no poder. Já em setembro de 1968, as organizadas adaptaram um famoso grito de protesto das passeatas estudantis contra a ditadura, cantando contra os dirigentes esportivos: “A torcida organizada / Derruba a cachorrada.”

Hoje é quadro é bastante diferente. Pesa sobre as organizadas o estigma da violência. Mesmo as autoridades policiais encarregadas de vigiá-las reconhecem, todavia, que a grande maioria dos torcedores destes grupos são pacíficos. O coronel Fiorentini, quando comandava o GEPE, grupamento especial da PM do Rio voltado somente para o policiamento dos estádios afirmou que 70% dos torcedores das organizadas são “pacíficos”. Para o sociólogo Maurício Murad, talvez o maior especialista no tema da violência no futebol brasileiro, 90% vestem a camisa, xingam bastante mas não se envolvem em conflito.

A violência de alguns membros das organizadas, uma minoria atuante e por vezes patologicamente viciada na adrenalina da briga, é um fato incontestável. Nos últimos anos morreram em média quatro seres humanos por ano em conflitos de organizadas pelo Brasil afora. O nosso país é campeão mundial de mortes causadas pela violência entre as torcidas, que antes era só nos estádios e só em dias de jogos e agora pode ser praticamente em qualquer lugar, a qualquer dia ou hora. Mas associá-las somente à violência, além de errado, é injusto. As organizadas fazem parte da cultura do nosso futebol, elas, se é que se podem dizer organizadas em alguma hora, é na hora de fazer a festa. Conversando com torcedores destes grupamentos, havia uma reclamação generalizada diante do tratamento esquizofrênico que lhes é dispensado pela televisão: vive criticando as organizadas, mas na hora da transmissão adora filmar um bandeirão, adora abrir o microfone para captar um canto animado entoado por milhares de vozes. Sem nunca elogiar as organizadas, muito menos pagar direito de imagem…

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Bandeirão da Torcida Independente do São Paulo. Foto: Wander Roberto – VIPCOMM.

Enxergar as organizadas isoladamente e unicamente sob o prisma da violência, equivale a olhar com um só olho. Elas fazem parte de um sistema que envolve políticos, dirigentes, clubes, televisão, CBF, mídia, polícia e cambistas. Elas são apenas a pontinha de um iceberg de corrupção, ganância e escusos interesses de uma política com “p” minúsculo. Há líderes de organizadas que vivem há décadas da revenda de ingressos que são dados a eles pelos dirigentes do seu clube. E para ser líder, em muitas organizadas, é preciso comprovar o seu valor pela força do braço. Vocês me entendem. Muitos dos ingressos que estão nas mãos de cambistas chegaram a eles por essa via. É por interesse político que isso ocorre. Às vezes o presidente do clube é candidato a vereador ou deputado. Ou está ligado a um vereador ou deputado. Por isso a “Bancada da Bola” é tão influente quanto a “Bancada da Bala” (que defende a posse de armas de fogo) ou a “Bancada da Bíblia” (que defende os interesses de algumas igrejas evangélicas”. E eles se unem, formando uma frente, com todo o respeito, chamada de BBB (Bíblia, Bola e Bala).

Enquanto o governo desconhece o potencial das organizadas para difundir campanhas junto à juventude, os políticos não dormem no ponto. As organizadas, com milhões de jovens, entre uma minoria de brigões e uma enorme massa de bobões (como eles mesmos chamam os componentes que não brigam), representam um eficiente cabo eleitoral. Há candidatos que dão um apoio subterrâneo às organizadas, inclusive de outros times, o que demonstra que o esquema não tem nada a ver com o amor ao clube.

A mesma rede de televisão que vive condenando a violência, marca os jogos durante a semana para depois da novela. Como não é show de rock, não há sistema especial de transporte e os torcedores ficam esperando horas por seus ônibus. O cenário ideal para brigas e emboscadas. As federações e a CBF, por sua vez, às vezes ignoram da polícia para a não marcação de certos jogos em determinadas datas. A polícia que se vire.

A polícia, por sua vez, também tem culpa no cartório. Ao contrário do que recomendam as teorias  de policiamento atuais, cria-se um aparato de guerra no entorno dos estádios. Isto gera o tipo de ambiente cheio de emoção perversa que a minoria violenta está buscando. Durante minha pesquisa com as organizadas as cicatrizes provenientes de confrontos com a polícia eram exibidas como se fossem troféus. A polícia busca amedrontar ao invés de proteger. Não investiga e retira de circulação a minoria de torcedores violentos, prefere confrontá-los semana após semana. E assim, realimenta um triste ciclo de brutalidade …

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Em 2013 acontece o 1º Seminário Sul/Sudeste de Torcidas Organizadas e contou com a participação do então ministro do Esporte Aldo Rebelo. Foto: Marcelo Camargo – Agência Brasil.

Mas há esperança. Se o governo nada faz além de anunciar um plano mirabolante de tempos em tempos. Se a televisão e os cambistas fazem seu dinheirinho. Se os políticos usam as organizadas. Se os presidentes de clubes tomam parte no esquema. Se a sociedade inteira condena as organizadas generalizando as atitudes de uma minoria. Aonde estaria a luz no fim do túnel,  como se gostava de dizer à época da Ditadura Militar. Na própria articulação das torcidas organizadas. Eles mesmos criaram a ANATORG, Associação Nacional das Torcidas Organizadas, visando ” Contribuir com projetos e ações que promovam o diálogo entre Torcidas Organizadas do Brasil, bem como uni-las em busca do seus direitos e deveres”. É por aí, no dia em que as organizadas se organizarem e se unirem, entendendo que os inimigos são outros, aí será finalmente verdade o canto de setembro de 68:

“A torcida organizada,

derruba a cachorrada”

Quatro a zero Alemanha. Semana que vem: Os cartolas

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. Quatro a zero: Um só olho. Ludopédio, São Paulo, v. 74, n. 6, 2015.
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