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“Quem é do mar não enjoa, não enjoa”

Fidel Machado 20 de dezembro de 2018

Segunda-feira, dia 17 de dezembro, certamente, ficará marcada para fãs e admiradores do surf mundial. Gabriel Medina orquestrou com maestria a tempestade brasileira (nome atribuído ao conjunto de surfistas brasileiros da elite mundial, também conhecido como Brazilian Storm) e obteve feitos inéditos na sua carreira: o bicampeonato mundial e a incontestável vitória em Pipeline. Etapa icônica no circuito.

Movido por esses feitos do brasileiro e pela bagunça que a tal tempestade brasileira vem causando no cenário mundial, algumas questões mobilizaram inquietações e, como método de expurgo, resolvi transformá-las em letras. A primeira e mais sutil problemática, advém de uma frase recorrente entre surfistas amadores, profissionais e entusiastas: EM BUSCA DA ONDA PERFEITA. Tal afirmação, como já anunciado, é bastante recorrente e possui elementos profícuos para uma reflexão. O primeiro reside na adjetivação perfeita, o segundo encontra-se no vocábulo onda e, por fim, na palavra busca. É inquestionável que somos constantemente marcados e atravessados por pressupostos da filosofia platônica. A busca por idealizações e perfeições é só um dos diversos exemplos no nosso dia a dia da influência do filósofo grego. Todavia, tendo a achar que o foco da famigerada frase do surf não está na onda perfeita, mas sim na busca. No buscar, no viajar, no experienciar, no desbravar picos, no surfar ondas desconhecidas, enfim, naquele gostinho de um conhecimento encarnado, de vivências incorporadas.

Como exercício do pensamento, façamos o contra exemplo e suponhamos que exista a onda perfeita. Cabe-me, imediatamente, a pergunta: perfeita para quem? Seguindo no raciocínio, temos que caso a onda seja encontrada, o tesouro seria descoberto e a brincadeira acabaria. Todavia, a própria característica dinâmica do constante devir da onda e a necessidade encarnada da experiência do surf só permitirá a adjetivação perfeita no instante que está sendo surfada. Tal frase, se concretizada, acabaria com essa sede inexplicável de surfistas viajarem pelo mundo movidos pela busca. Esgotaria a alegria de atletas que já surfaram ondas alucinantes e ainda assim afirmam que permanecem ávidos por mais ondas, por mais surf. Com esse deslocamento da frase, saímos de Platão e entramos em Sócrates que já anunciava: “uma vida sem busca não vale a pena ser vivida”. É esse o grande lance do buscar e esse circuito mundial, mais precisamente o desempenho do Medina, expressa, ao meu ver, essa dimensão. A busca demanda uma espécie de presentificação. Uma afirmação do momento presente, do instante. Uma intensidade elevada em cada ação realizada. Um contato profundo com o movimento do agora.

Gabriel Medina surfa em Pipeline. Foto WSL/Damien Poullenot.

Ao longo das onze etapas, Medina sagrou-se campeão de três fases do circuito e com isso apresenta uma versatilidade em diversos tipos de ondas, inclusive, na pasteurizada piscina do Surf Ranch. Sobre essa etapa, continuo a valorizar a sua genialidade, mas permaneço defensor da adrenalina, da ansiedade dos momentos de espera, aparentemente, passiva em mar aberto. Acho incrível a estratégia sempre reconfigurada do posicionamento no mar, na escolha da onda, no jogo com a prioridade, na disputa, na remada, no calor da praia, nos insultos extraoficiais entre os adversários dentro da água. Sou um militante da experiência da presença presente do oponente. Na pressão e na tensão causada por esse encontro, por esse conflito. Na imprevisibilidade das ações do mar, do oponente, do oponente com o mar e, sobretudo, sua com o mar. Sou um admirador das modificações inesperadas dentro de uma mesma bateria, da dimensão escorregadia do tempo e na sua profícua relatividade. Na dinâmica do encontro que culmina no conflito e na batalha. Na relação dialógica entre o surfista e a natureza sem graus de hierarquia. Na beleza que só se concretiza nessa comunhão e, sobretudo, na inconstância constante do mar. No pulsar da vida em movimento.

Gabriel Medina esteve presente na última etapa do WCT em todos os rounds e heats. A cada entrevista dada, repetia como uma espécie de mantra: “Preciso chegar à final”. No seu instituto, em Maresias, após um sonho da mãe, a família reservou um local na sala de troféus com os seguintes dizeres: “Espaço reservado para o troféu do bicampeonato mundial”. Retomo o argumento anunciado no início do texto: o foco não é a perfeição da onda, mas a busca, a sede e a vontade. Em que pese o contexto que subjaz a lógica que alicerça o esporte de alto rendimento, para os fins aqui pretendidos, não me debruçarei sobre essa temática.

Após uma das baterias, em entrevista, Gabriel comentou sobre a onda que culminou em um 10 unânime entre os jurados e proferiu: “no último tubo, minha prancha tremeu, mas escapei”. Uma simples afirmação demonstra com clareza o grau do imponderável, de um controle negociado, de uma afirmação do instante e do acaso. Da presentificação e do ajuste fino entre surfista e natureza. Não há tempo para relutâncias. A presença tem de ser intensamente presente. Um desleixo pode acarretar em um comprometimento irreversível na oportunidade de ser campeão.

As etapas ocorrem durante todo o ano. Ao todo, somam 11 praias distintas espalhadas por todo o mundo com mares diversos e formatos de ondas variados. Não há espaço para uma adequação estanque aos moldes de determinada fase do circuito, haja vista que tal pressuposto demandaria uma recorrência de um mesmo formato de onda. Ainda que exista uma regularidade em um determinado local, seria ingenuidade minha afirmar que as ondas são iguais e incorreria em um erro que refutaria a argumento aqui proposto. Se há uma adequação ela está no âmbito de perceber que não há formatação e sim um constante processo de criação, de inovação e porque não dizer de risco em cada remada e drop realizado. O surf e o circuito mundial possuem essa característica diferente das demais modalidades que possuem invariantes. Ainda que tenhamos o implemento e o adversário como dimensões dessas invariáveis, temos que o objetivo se altera de acordo com o mar que, de acordo com a etapa, propicia condições mais favoráveis para tubos, manobras de linha ou aéreos. Além disso, o Surf Ranch adentrou ao circuito este ano com a ilusória promessa da “onda perfeita”, porém a água é doce, o espaço é circunscrito e não há praia. Ainda no que tange às invariantes, temos que o elemento imprescindível no surf é o fator mais variante: o mar. Vale a ressalva que aqui enfatizo o mar e não uma piscina de ondas. Ratifico que nesse quesito Medina apresentou perícia, pois dominou com inteligência e agudeza de adaptação diversos estilos e formatos de ondas, inclusive logrando-se campeão na etapa do Ranch.

Gabriel Medina do Brasil ganhou o Heat 2 da Rodada 2 do Quiksilver Pro, Gold Coast, 2018. Foto: WSL/Ed Sloane.

Nesse contexto, não há mais dúvidas da qualidade adaptativa da tempestade brasileira. De 11 etapas, 9 foram vencidas por brasucas e a tríplice coroa havaiana, dada ao surfista com melhores índices nas etapas de Pipeline validada pelo WCT, Sunset Beach e Haleiwa validadas pelo WQS, divisão de acesso do surf, foi concedida ao também brasileiro Jessé Mendes. Ademais, percebe-se a partir dos discursos de muitos surfistas estrangeiros que a tempestade tem causado efeitos significativos e imprimido uma nova maneira de surfar no cenário mundial além de impor um estilo mais agressivo alimentado por uma capacidade inventiva, supostamente, atribuída ao brasileiro.

Há certo tempo o surf vem ganhando notoriedade e popularidade no contexto nacional, contudo, resta sempre a dúvida: será que todo esse sucesso é efêmero e resultado do momento do Brasil na elite mundial? Seria o surf só mais uma prática a ser consumida e valorizada enquanto possuímos campeões, assim como foi o UFC? Por hora não me cabe responder a essas questões, mas é necessário que elas sigam como suspeita e objeto de análise.

Após um 2018 verde e amarelo no cenário mundial, espero que o apreço pelo surf perdure para seguirmos embalados pelo verso de Martinho da Vila que intitula este texto, e outros seres que não sejam do mar possam apreciar e não enjoar dessa instigante modalidade esportiva.

Sigamos nesse desafiador convite de viver de tal maneira a afirmar todo momento vivido. Permaneçamos nessa relação conflituosa e prazerosa com o movimento da vida e das ondas. Em tempos de experiências mediadas por toques automatizados em telas pretas, adentremos na busca de incorporar experiências encarnadas mediadas pela presença do encontro presente.

Vai, Medina. Cadê o motorista? Voa, moleque.

Parabéns pelo bi mundial.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. “Quem é do mar não enjoa, não enjoa”. Ludopédio, São Paulo, v. 114, n. 21, 2018.
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