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A ampliação da visibilidade do surf e a invisibilidade de alguns corpos: o outside é democrático?

Fidel Machado 4 de dezembro de 2020

As linhas vindouras são um pequeno recorte do capítulo: Tá dando onda? Uma suspeita sobre o imaginário good vibes do surf. Um texto com mais elementos com propósito de questionar uma identidade democrática e harmoniosa do surf. Ressalto que o ensaio supracitado fará parte da obra intitulada: Psicologia do Esporte e Surfe: aspectos socioculturais e psicológicos.

O impulso para a escrita se materializa a partir de um caldo de inquietações. Por sua vez, o caldeirão de interrogações possui como ingredientes as conversas dentro e fora da água, como os questionamentos de amigos e amigas que não surfam; a recorrência de um padrão de corpo nos campeonatos; as falas de presidentes de instituições oficiais que reforçam a sexualização, a objetificação e resultam na manutenção de uma lógica e na valorização de um modelo de corpo. Como desdobramento disso, incorremos fatalmente em uma pressão estética que incide de forma mais intensa e vigorosa no corpo das mulheres. Ademais, percebo uma invisibilização e o silêncio das pessoas LGBTQIA+, dos negros e o predomínio de uma masculinidade hegemônica. Não seria leviano em desconsiderar os avanços e as modificações já existentes nos mares por aí afora. Todavia, não posso negar a relação conflituosa e os embates estabelecidos por grupos que reivindicam espaços na água. Dito isso, deixo a indagação: em um contexto em que muitas atitudes são naturalizadas, muito vistas e pouco faladas: tá dando onda?

No interior estrutural de algumas instituições, alguns marcadores sociais ditam os lugares que determinados corpos devem ocupar. O entrecruzamento de raça, gênero e classe social são critérios basilares dessa dinâmica eficiente, vigente e velada (DAVIS, 2016). No interior de todo esse debate, o surf se apresenta como um profícuo e frutífero contexto social que pode reforçar determinados padrões e, dessa forma, perpetuar uma atmosfera excludente e sexista (NEPOMUCENO; MONTEIRO, 2019; BOOTH, 2001).

A população LGBTQIA+ tem a sua presença silenciada ou invisibilizada no outside. As ondas e as marés podem não estabelecer crivos ou juízos de valores, mas muitos surfistas o fazem. Nesse intuito, o mundo do surf, em algumas questões, ainda carrega fortes traços reacionários e retrógrados. Todo esse imaginário construído e alicerçado sob a égide do pensamento progressista se consolida nas ações de fato ou são somente maquiagens para mascarar e esconder uma versão retrógrada do surf? Além disso, seria esse ideário mais uma faceta de manutenção da estrutura que beneficia e a mantém vigente?

Certamente há surfistas gays pelos mares por aí afora. Haja vista que a prática dessa modalidade esportiva não é em absolutamente nada comprometida por conta da identidade de gênero e orientação sexual. Todavia, onde estão esses surfistas? Como esses corpos são tratados no outside? Seja por medo de represálias, insultos ou por um grande desconforto, essas pessoas não se sentem bem em ser como são e preferem, por questões diversas, continuar no interior do armário.

Percebo que quando se trata de orientação sexual no mundo do surf o debate, simplesmente, não é falado de forma aberta. Há uma homofobia enraizada nas gírias e em muitos insultos. Historicamente, a baixa presença e, principalmente, o silenciamento de corpos que fogem da régua da heteronormatividade em competições de elite, nas reportagens, nas revistas e nos diversos filmes de surf permitem a perpetuação de uma estrutura pouca afeita e acolhedora para esses grupos. Assim, a homofobia permanece naturalizada e, muitas vezes, adquire o tom de engraçada. Onde rema o ideário de mente aberta e progressista? A cultura do surf pode parecer fluída, mas ainda guarda comportamentos rígidos, sufocantes e regressivos. Como elemento ilustrativo, convido os leitores e as leituras para observarem os comentários nos sites de surf ou postagens em redes sociais.

Alguns atletas se apresentam publicamente como membros da comunidade LGBTQIA+. Todavia, muitos esperam o fim da carreira profissional para fazer o anúncio. O tal do armário ainda segue presente no surf, porém está entreaberto. O documentário de 2014, produzido por Thomas Castets, com direção e roteiro de Ian Thomson, denominado “Out in the Line-Up” apresenta brilhantemente o movimento e deu à comunidade de surf LGBTQIA + uma significativa visibilidade. Outras iniciativas também despontam mundo afora, como GaySurfers.net, Queer Surf Club entre outras. Ainda que haja muita correnteza, já se percebe alterações frutíferas.

Outro elemento caro para a discussão aqui exposta é com relação ao ideal de beleza do surf forjado em uma importação irrefletida do estilo californiano que, por sua vez, segue os moldes do padrão de beleza branco, loiro e heterossexual. Invariavelmente, esse modelo constitui o nosso imaginário e faz com que alguns corpos sejam vistos como estranhos, inadequados ou até mesmo incompatíveis com a prática do surf. A indústria e a mídia corroboram com a manutenção dessa lógica e estimula não só a divulgação, mas a venda de uma imagem extremamente elitista no mundo do surf. Raras são as exceções e excessivos são os comentários ofensivos quando se pensa em algo que fuja desse main stream. Dessa forma, o cenário está inteiramente construído para que corpos que divirjam sejam excluídos e marginalizados. Talvez, se as grandes marcas de surf decidissem comercializar para mais do que apenas homens jovens, brancos e heterossexuais, isso levasse não apenas a uma cultura mais diversificada, mas a uma indústria financeiramente mais robusta.

A insistência em manter comportamentos tradicionais e não se sensibilizar às demandas contemporâneas não parece ser somente ignorância ou descontextualização com a realidade. Não podemos esgotar a discussão com respostas rápidas e simplistas. A perpetuação dessa estrutura significa a continuidade de regalias e privilégios para aqueles e aquelas que já detém os postos de chefia e poder. Insistir nesse comportamento é um investimento, uma reserva de mercado para aqueles que, historicamente, já são abastados.

Como reflexo e efeito desse modelo de beleza, a temática de raça surge como outro lugar de violência, rejeição e insultos. A operacionalização do racismo como racionalidade estruturante da nossa sociedade molda comportamentos que estruturam as nossas formas de sentir, de pensar e de agir a ponto de normalizarmos algumas atitudes no nosso entorno. Para Almeida (2019) o racismo pode ser entendido como uma forma sistemática e muito bem organizada de discriminação em que a raça é o elemento central. A cor passa a ser atributo balizador de uma série de ações conscientes e inconscientes que privilegiam e impõem desvantagens a determinados sujeitos de acordo com o grupo racial que pertencem.

A discussão sobre o racismo, por mais emergencial que seja, ainda gera uma série de animosidades, pois, se levada a cabo, balança toda a pirâmide social. A racialização, de maneira muito perversa, dita a ocupação dos cargos. Percebemos nas instituições que regulam o surf uma manutenção, estrategicamente, tácita na ausência de pessoas pretas em postos de destaque nas diretorias. Dentro de toda essa estrutura que nos constitui enquanto sujeitos, o protagonismo e o privilégio parecem ser direitos da branquitude. Quantos atletas negros estamparam as capas de revistas de surf?

A produção audiovisual, como já dito, corroborou para a construção de um estereótipo do surfista e da surfista pela régua californiana.

Conteúdos e meios de expressão mobilizados por imagens são sempre constituídos por processos sociais mais amplos. Estamos então diante de manifestações produzidas historicamente, construídas socialmente e definidas culturalmente. Isto quer dizer que são também materializações conscientes ou inconscientes de interesses e necessidades dos atores que os produzem. Assim, direta ou indiretamente, expressam e refletem cosmologias, ao mesmo tempo em que criam aspectos da realidade, na medida em que tentam representá-los (DIAS, 2010, p. 76).

A branquitude, ao se apropriar desse estilo mais despojado e irreverente é vista como descolada. Já um negro pode, rapidamente, ser taxado de marginal. Além de toda a questão já apresentada o corpo negro, por não representar o ideal de beleza californiano, tem mais dificuldade de receber patrocínio, principalmente se for uma mulher.

A parca presença de atletas negros e negras na elite dos campeonatos é sintomática. Esportes tidos como populares são, aparentemente, democráticos. Percebo uma reprodução clássica da lógica social no mundo do surf. Temos que na base da pirâmide o número de negros é razoável. Todavia, no topo, observamos poucas exceções. Além disso, temos outra associação bastante comum e sintomática no cenário nacional. Algumas praias mais próximas a regiões periféricas ainda são estigmatizadas e estereotipadas. Noto uma redução desse comportamento devido ao que aqui denominarei de espetacularização e gourmetização do surf. Uma certa alteração do perfil do praticante produziu uma modificação substancial em algumas praias que passaram a ser ressignificadas e ocupadas com a configuração de uma cultura de classe média. Contudo, não podemos esquecer nem tampouco negligenciar os corpos que frequentam há tempos esses locais. Enxergar algumas praias somente pelo viés da utilidade e da comodidade pode culminar na desumanização ou invisibilização daqueles corpos nativos. Para algumas populações, o surf não se trata de uma filosofia ou estilo de vida alternativo, mas uma possibilidade de sobrevivência. Uma maneira de sair da pobreza ou abrandar os seus efeitos.

Foto: Reprodução Facebook
Imagem: Reprodução Facebook

Ainda sobre esse tema, temos uma naturalização recorrente. O corpo do negro, como em uma relação causal e linear, automaticamente é associado à pobreza, ao tráfico, à favela, à droga, ao crime e aos assassinatos. Sabemos que essa articulação é precipitada e atende aos projetos políticos que resultam no genocídio do jovem negro periférico.

O silêncio da pauta racial na elite do surf, ao meu ver, e para os fins aqui pretendidos não é algo a ser comemorado. Em uma sociedade alicerçada e operacionalizada estruturalmente pelo racismo, o surf não se apresenta como um oásis em que o mito da democracia racial se concretiza e a questão da cor se dissipa pela premissa da igualdade de todos perante todos. Sob a minha ótica, tal silêncio é ensurdecedor e rapidamente refutável quando observamos a quantidade de atletas negros no ranking. Sem muito esforço, enxergo a predominância de meninos e meninas negras sem patrocínio. Em uma busca rápida, sem nenhum desgaste, noto uma produção acadêmica e científica inexpressiva, quiçá, inexistente sobre a questão racial no mundo do surf. 

Não é a mudança que torna o surf chato como alguns surfistas enfatizam. Talvez a chatice resida na insistência em manter os mesmos comportamentos de outrora frente ao dinamismo das mudanças do devir com justificativas simplistas e explicações estanques. Nessa conjuntura, a chatice impera quando alicerçada sobre uma ótica em que determinados corpos insistem em manter prerrogativas ilusórias de uma suposta supremacia que os colocam em patamares elevados para assim desfrutarem dos seus privilégios.

Para aqueles e aquelas que permanecem céticos com os apontamentos aqui abordados, convido para que passeiem pelo site da WSL (World Surf League), da ABRASP (Associação Brasileira de Surfistas Profissionais) ou procurem por textos acadêmicos com essas temáticas.

A mudança, a variação e o constante movimento das ondas muito tem a nos ensinar. O surf, em alguns setores, me parece temer o encontro, o contato, a diferença e o conflito imanente à vida. Uma incongruência com a própria dinâmica da natureza. Caso insistamos nesse comportamento, só me resta a pergunta: tá dando onda?

 

Conversas com:

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

BOOTH, D. “From bikinis to boardshorts: wahines and the paradoxes of surfing culture“. Journal of Sports History, Los Angeles, v. 28, n. 1, 2001.

DAVIS, Angela Yvone. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DIAS, C. “O surfe e a moderna tradição brasileira“. Movimento, Porto Alegre, v. 15, n. 4, p. 257-286, 2009.

NEPOMUCENO, L. B.; MONTEIRO, Nathália da Silva. “Desigualdades de gênero no esporte: narrativas sobre o lugar da mulher no surfe“. Revista Brasileira de Psicologia do Esporte, Brasília, v. 9, n. 2, jul. 2019.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. A ampliação da visibilidade do surf e a invisibilidade de alguns corpos: o outside é democrático?. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 10, 2020.
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