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Racismos e códigos disciplinares: uma breve análise dos atos raciais nas legislações das confederações internacionais de futebol

Notas Introdutórias

A crescente escalada do racismo nos estádios de futebol é evidenciada pelos casos recentes de ataques ao jogador Vinícius Júnior do Real Madrid, da Espanha, inclusive, em partidas em que o jogador não irá entrar em campo, como no caso da torcida do Barcelona.[1] Observamos que nos últimos anos confederações internacionais adotam discursos antirracistas, entretanto, as manifestações racistas continuam acontecendo. Desta forma, uma pergunta nos inquieta para este trabalho: como as confederações internacionais estão legislando sobre o assunto?

Fizemos um levantamento dos códigos disciplinares das seguintes confederações: CAF – Confederação Africana de Futebol, CONMEBOL – Confederação Sul-Americana de Futebol, UEFA – União das Associações Europeias de Futebol, AFC – Confederação Asiática de Futebol e OFC – Confederação de Futebol da Oceania. Salientamos que não encontramos o código disciplinar da CONCACAF – Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe.[2] Utilizamos como metodologia o acesso aos sites oficiais de cada confederação e ferramentas específicas de pesquisa para localizar os documentos mencionados, recorrendo aos menus disponíveis quando necessário. Após a organização dos arquivos, realizamos buscas em cada um utilizando os descritores traduzidos para o inglês e o espanhol, já que essas são línguas presentes em parte dos documentos citados, como “racismoˮ e “cor da peleˮ. Com isso, conseguimos localizar especificamente os artigos que tratavam do assunto.

Nesse sentido, acreditamos que este texto pode contribuir com uma visão panorâmica inicial sobre esse assunto que, infelizmente, continua em pauta no cotidiano do mundo do futebol. Salientamos que a discussão sobre o racismo nas legislações do futebol é recente, bastando verificar que os códigos aqui analisados e estudados foram publicados há menos de 7 anos. Vejam a tabela que organizamos.

Tabela 1 – Dados com anos de publicação dos códigos analisados

Confederação

Tipo

Ano de publicação

AFC

Código de Ética[3]

2019

CAF

Código Disciplinar

2018

CONMEBOL

Código Disciplinar

2023

OFC

Código Disciplinar

2019

UEFA

Código Disciplinar

2022

Fonte: Elaboração dos autores

Com as notas introdutórias inseridas, vamos à discussão.

Não é futebol, é racismo
Movimentos Sociais realizaram um protesto em solidariedade ao atacante Vinicius Junior, do Real Madrid e contra o Racismo, em frente ao Consulado espanhol na Zona Sul de SP. Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75

A abordagem das federações internacionais sobre atos racistas em seus códigos disciplinares

Existe uma variação entre a utilização dos termos ‘racismo’ e ‘cor da pele’ nestas legislações. Em todos os códigos disciplinares, são citadas punições para outras discriminações que venham a ocorrer, todavia, a presente escrita foca, exclusivamente, na discriminação racial. É importante destacar que não há exemplos precisos do que são os atos racistas nas legislações analisadas. Em todas elas, encontramos uma generalização que apenas menciona a punição para atos discriminatórios relacionados à raça.

Cientes de que os atos racistas podem partir de diversos segmentos ligados a uma partida, como jogadores/as, comissão técnica, torcedores/as, dirigentes e afins, as confederações especificam as punições para cada um. No caso da CONMEBOL, temos essa divisão em seus artigos, sendo em termos de legislação, a confederação que impôs a maior multa em casos de atos racistas, variando entre “cem mil dólares americanos (USD 100.000)” e em caso de reincidência, o infrator poderá ser punido com uma multa de “quatrocentos mil dólares americanos (USD 400.000)” (CONMEBOL, 2023).

Além disso, a CONMEBOL e a UEFA são as confederações que aplicam as maiores penas aos jogadores em casos de atos racistas, com no mínimo 10 jogos de suspensão. Ambas aumentam a suspensão do futebol por um período de 5 meses.

Em relação aos atos racistas provenientes dos/as torcedores/as, existem variações no que concerne à punição que cada entidade aplica. CAF, CONMEBOL e UEFA preveem que as partidas podem ser suspensas e declaradas como perdidas pelas equipes onde ocorram as ofensas racistas. No caso da CAF, há uma gradação até que tal fato ocorra, começando pela perda de pontos e podendo chegar à desclassificação de uma equipe da competição. A OFC e a CAF são taxativas ao indicar multas específicas para torcedores/as que pratiquem atos racistas por meio de faixas e cartazes.

Como forma de sintetizar alguns dados, trazemos uma tabela com questões gerais que podem ser comparadas entre os códigos.

Tabela 2 – Dados com possibilidades de punições para atos racistas

Confederação

Multa

Diferencia ente no julgamento

Prevê cancelamento das partidas devido a atos racistas

Proíbe infrator de frequentar estádios

Decreta jogos com portões fechados

AFC

Sim

Não

Não

Não

Não

CAF

Sim

Jogador, Oficial, Qualquer Membro de Associação e torcedores

Não

Sim

Não

CONMEBOL

Sim

Jogador, Oficial, Qualquer Membro de Associação e torcedores

Sim

Sim

Sim

OFC

Sim

Jogador, Oficial e torcedores

Não

Sim

Não

UEFA

Sim

Jogador, Oficial, Qualquer Membro de Associação e torcedores

Sim

Não

Sim

Fonte: Elaboração dos autores

A tabulação dos dados acima nos dá pistas sobre o avanço da discussão sobre a luta contra o racismo nas legislações das confederações. Notem que todas elas já preveem multas para atos de discriminação racial. A CONMEBOL e a UEFA preveem ainda punição para que os mandantes dos jogos fiquem com portões fechados devido ao racismo cometido durante suas partidas, além de terem na legislação algo que ainda não ocorre na prática: a suspensão das partidas em caso de ato racista, decisão que fica a cargo da arbitragem.

É necessário destacar o pioneirismo da CONMEBOL na busca pela identificação dos culpados, ao prever a diminuição da pena quando o infrator auxilia no caso e na busca de outros culpados, quando dado ato de racismo é realizado coletivamente.

Sobre os dados

É importante destacar que o racismo é um fenômeno social que também tem reflexo no futebol, em todos os âmbitos. Micharlen Sampaio e Guilherme Mota (2024) promovem uma discussão sobre o racismo na legislação do futebol no Brasil e demonstram, a partir de uma construção histórica, como o tema foi inserido em lei apenas no século XXI, mesmo sendo um sintoma existente desde a chegada do futebol no país.

Por sua vez, Fábio Silva e Paula Ângela (2020) demonstram os impactos na saúde mental dos jogadores negros devido ao racismo sofrido. Seus dados evidenciam a maneira pela qual a raça dos atletas pode influenciar seu desempenho esportivo e suas vidas. Esse estudo evidencia a necessidade de combater o racismo no âmbito do futebol, visando proporcionar formas igualitárias de desenvolvimento e atuação para os atletas negros.

Na mesma linha de raciocínio, Gustavo Bandeira e Fernando Seffner (2021) trazem uma reflexão sobre o caso do racismo sofrido pelo goleiro Aranha, quando jogava pelo Santos Futebol Clube, durante uma partida contra o Grêmio de Foot-Ball Porto Alegrense na capital gaúcha, onde parte dos torcedores e torcedoras gremistas entoaram cânticos racistas contra o atleta. Os autores apresentam a existência de uma flutuação entre as formas de punição que vão do indivíduo ao coletivo, bem como as dificuldades encontradas na legislação a esse respeito. Nas legislações das entidades analisadas, já existe uma tentativa de diferenciar as punições de atos coletivos ou individuais no intuito de determinar punições específicas a cada tipo de ato. Como apontam os autores no artigo indicado, é importante pensar que a legislação não deve permanecer descolada das pautas sociais existentes, bem como das que são mais urgentes no futebol, tais como as diferenças de punição entre indivíduos e coletividade.

A discussão acima realizada pode auxiliar em nossas análises, uma vez que identificamos elementos que merecem atenção para elaboração de novas legislações e de táticas de enfrentamento do racismo no futebol. Embora a inclusão de punições para atos racistas nos códigos disciplinares represente um avanço na luta contra o racismo, é fundamental que as federações também desenvolvam medidas eficazes por meio da criação de grupos de trabalho dedicados a esse tema. A Federação Internacional de Futebol – FIFA pode liderar a construção de estratégias globais para combater o racismo, indo além das campanhas antirracistas, de modo a convidar outras entidades agentes para o debate, como os clubes, a sociedade civil e as universidades, com a finalidade de buscar soluções que se mostrem mais efetivas no que diz respeito ao combate ao racismo de maneira global, e não apenas pautada em contextos específicos, como as partidas de futebol.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, não encontramos estudos comparativos relevantes sobre essa temática de importância ímpar para o futebol mundial. Nosso trabalho indica a necessidade de uma ampla investigação sobre o tema em nível internacional, considerando as especificidades regionais, mas também reconhecendo que o racismo tem impacto em escala global e requer ações igualmente abrangentes. Nesse sentido, como entidade máxima que regulamenta o Futebol, é fundamental que a FIFA não só orquestre o diálogo entre as diversas entidades no debate sobre o tema, como também adote uma legislação abrangente que contribua para o combate ao racismo e a outros atos discriminatórios em âmbito mundial.

 

Este texto foi financiado com recusos da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Demanda Social.

Notas

[1] Ver notícia em https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/liga-dos-campeoes/noticia/2024/04/16/torcedores-do-barcelona-ofendem-vini-jr-antes-de-jogo-da-champions.ghtml

[2] A partir deste ponto do texto, iremos nos referir às federações apenas pelas suas respectivas siglas, na tentativa de deixar a leitura mais fluida.

[3] Apesar de o documento encontrado para a AFC ser o código de ética, decidimos trazê-lo para a discussão como forma de incluir a entidade no debate, ao passo que estamos cientes das diferenças que essa escolha fará nas comparações.

Referências Bibliográficas

BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. O caso Aranha entre o legítimo e o ilegítimo de ser cantado nos estádios de futebol. Revista de Estudos Antropológicos do Lazer., n. 26 (10), p. 1-15, set. 2015.

SAMPAIO, Micharlen Braga; MOTA, Guilherme Gustavo Vasques. Discriminação racial no esporte: o racismo e a legislação do futebol brasileiro. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação. São Paulo, v.10, n. 3, p. 2653-2673, mar. 2024. Acesso em: 09 maio 2024.

SILVA, Fábio Henrique Alves da; PAULA, Paula Ângela de Figueiredo e. Os Impactos do Racismo na Subjetividade do Jogador de Futebol Negro. Psicologia: Ciência e Profissão. Brasília, DF, v. 40, n. spe, e230122, p. 1-12, 2020. Acesso em: 09 maio 2024.

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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer / PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional / EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais / UFMG desde 2017. Doutorando e bolsista CAPES - Demanda Social. Mestre em Estudos do Lazer pelo PPGIEL. Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT),Grupo de Pesquisa em História do Lazer (HISLA), atualmente é vice-líder do grupo.

Fábio Henrique França Rezende

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte e do Lazer (GESPEL/UFMG). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas (GEFUT/UFMG).

Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva; REZENDE, Fábio Henrique França; CORNELSEN, Elcio Loureiro. Racismos e códigos disciplinares: uma breve análise dos atos raciais nas legislações das confederações internacionais de futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 179, n. 16, 2024.
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