Samba, futebol e jogo do bicho
A região de Bangu, Padre Miguel e adjacências, destaca-se, além do poder de seus termômetros, que frequentemente ultrapassam a marca dos 40º, por uma conhecida história de articulação entre alguns dos mais importantes e arquetípicos símbolos da cultura popular carioca: o samba, o futebol e o jogo do bicho. Duas das mais perenes instituições da região, a escola de samba Mocidade Independente de Padre de Miguel e o time de futebol do Bangu Atlético Clube, compartilham elementos comuns em suas histórias, entre os quais, o fato de terem se ligado a um dos mais famosos proprietários de bancas de jogo do bicho de sua época: Castor de Andrade.
![Castor Andrade, em desfile da Mocidade, na Marquês de Sapucaí (reprodução)](/userfiles/_d_improd_/carnaval-castor_f_improf_500x268.jpg)
Filho de Eusébio Gonçalves de Andrade, mais conhecido como “Seu” Zizinho, Castor de Andrade herdou do pai bancas de jogo do bicho, que soube transformar depois, com empenho e dedicação, num poderoso império da contravenção. Castor de Andrade tornou-se um dos mais conhecidos “bicheiros” de sua época, não apenas pelo poder econômico acumulado, mas também pelas lendárias histórias que lhe cercavam, sempre no limite entre o mito e a realidade. Segundo declarara certa vez a Revista Placar: “Eu não compro juiz. Ligo pra ele e digo: você não pode errar. Nada de coação. Só um jeitinho especial”.
Episódios envolvendo o nome de Castor, como até hoje é intimamente lembrado por muitos moradores da região, fazem mesmo parte do amplo repertório de mitos, lendas e folclores do futebol brasileiro. Castor era uma espécie de Eurico Miranda dos anos 60, 70 e 80. Sob o seu comando, que durou mais de 20 anos, o time do Bangu foi campeão carioca em 1966 e vice campeão brasileiro em 1985. Castor assistia aos jogos do time de dentro do campo – sempre armado, claro, para qualquer eventualidade. Certa vez, Castor presenteou o jogador Marcelinho com um fusca. O jogador faltava aos treinos frequentemente alegando que morava longe. Ao oferecer-lhe o presente, Castor teria feito questão de compartilhar com o atleta suas novas expectativas com relação ao seu comportamento: “Agora não quero mais ver você faltar aos treinos. Se faltar, te dou um tiro”.
Graças em larga medida a sempre generosa disponibilidade financeira de Castor, parte da equipe de futebol do Bangu formou o que ficaria conhecido nessa época como “o esquadrão da malandragem”. Eram jogadores de futebol mais experientes, acima dos 30 anos, que gozavam de regalias e amplo clima de liberdade no clube. Ganhavam carros, apartamentos ou dinheiro extra de presente, além de poderem interferir na organização tática do time e ainda ter autorização para fazer churrasco ou beber chope depois dos treinos. Tudo isso, na opinião de Marco Antônio, lateral-esquerdo da seleção brasileira de 70 e membro deste esquadrão, fazia do time do Bangu o “paraíso do futebol brasileiro”. Segundo dissera, “o Castor é a Serra Pelada da minha vida”.
![Castor de Andrade, na capa da Revista Placar (2 ago. 1985, n. 793)](/userfiles/_d_improd_/capa-placar-castor_f_improf_260x339.jpg)
Na opinião de Castor, todavia, não se tratavam de malandros propriamente ditos, mas sim de jogadores de futebol que mesclavam equilibradamente sabedoria e picardia, “uma forma mais refinada de malandragem”, de acordo com palavras da peculiar filosofia do “bicheiro”. O jogador Carlos Roberto também via a liberdade praticada na organização do time do Bangu sob outra perspectiva. Para ele, não se tratava de um ambiente desordenado, mas sim de uma democracia, “uma democracia à moda Bangu”.
No mundo do samba, como patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, Castor viu a escola vencer os campeonatos de 1979 e 1985, além dos vice-campeonatos de 1980 e 1987. Foi a era de ouro da agremiação. Não sem razão, o nome da família Andrade já fora mais de uma vez imortalizado em verso e prosa em sambas da região.
Quero agradecer ao Sr. Zizinho
O nosso presidente de verdade
Também não posso deixar de falar
No grande Castro de Andrade…
Em 1981, ao lado do brasão desenhado por José Vilas Boas em 1904, a camisa da equipe banguense passaria a ostentar o novo mascote do time: um castor, que simbolizava, de maneira bastante óbvia, uma homenagem ao grande benemérito e futuro patrono da equipe, que inaugurara, de fato, nova era para o time conhecido outrora como o dos “mulatinhos rosados”, mas com um futebol insistentemente classificado pela imprensa esportiva carioca como “crioulo”, “malandro” e “aguerrido”.