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Santa Marina e a mancha futebolística da zona oeste paulistana

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.


Este texto dá continuidade aos resultados da pesquisa etnográfica realizada no Santa Marina Atlético Clube (SMAC) e que integra o estudo “Mapeamento do Futebol de Várzea em São Paulo”, com foco na mancha futebolística que integra e envolve o SMAC na zona oeste paulistana.

Mancha futebolística

Falar de futebol amador com os varzeanos – sejam esses jogadores, torcedores, dirigentes ou entusiastas do esporte – é uma viagem pelo tempo e pelo espaço a partir das suas memórias em narrativas que exploram e atravessam campos de futebol e bairros de uma cidade que passou por um longo processo de urbanização. No caso do Santa Marina, a relação futebol e cidade é mediada pelas memórias de uma tradição industrial, ligado ao trabalho nas fábricas, espaços que foram fundamentais durante as primeiras décadas do processo de popularização do futebol no Brasil ao longo do século XX (ANTUNES, 1992; FONTES, 2014). 

Clubes fabris foram criados por operários e vinculados a empresas, muitos deles com apoio dos patrões e adotando o nome das indústrias. Com diferentes significados, seja como passatempo no tempo livre dos operários, seja por interesses disciplinares ou publicitários dos próprios patrões, o futebol de fábrica entrelaçava lazer e trabalho, amadorismo e profissionalismo, inclusive com o surgimento da figura do jogador-operário, muitas vezes contratado para trabalhar nas fábricas ou recebendo certos benefícios em relação aos demais operários, por causa de seu desempenho dentro dos campos.

Muitos destes clubes amadores de origem fabril ganharam autonomia frente às empresas e indústrias, constituindo assim uma identidade própria ao longo dos anos ligada aos princípios tradicionais de um ethos amador (ELIAS; DUNNING, 1985). É o caso do Santa Marina, onde o futebol de várzea é uma modalidade em contínua transformação, como revelam não só suas memórias, mas suas dinâmicas atuais.

O futebol é um dos principais elementos de memória acionados pelos frequentadores assíduos do Santa Marina para construir a imagem do clube, contar sua história, descrever suas práticas e projetar um futuro. Contudo, a conservação e valorização destas memórias passa pela contemporaneidade de um futebol que continua a ser praticado nos tempos e espaços da vida cotidiana. Sempre atrelado à sua constituição pretérita, o futebol é uma prática vivida de forma absorvente no Santa Marina, à margem do modelo profissional que o cerca, ainda que com alguns pontos de contato.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

O Santa Marina está em uma região assinalada pela presença de clubes profissionais, grandes e pequenos. Na av. Marquês de São Vicente, muito próximo ao Santa Marina, estão localizados os centros de treinamentos do São Paulo FC e da Sociedade Esportiva Palmeiras, ambos em frente ao conjunto esportivo do Nacional Atlético Clube – sede e estádio Nicolau Alayon. Um pouco mais distante, atravessando a linha do trem, fica o clube e o estádio do Palmeiras. Já na esfera amadora e de lazer, há uma grande oferta de escolinhas de futebol e locação de espaços para a prática da modalidade, como o Arena Nacional Fut7, Arena Mundo Soccer, Arena World Sports, Arena limão, Barça Academy Pro, Arena Lapa, Quadra Futshow, Sport Gaúcho Futebol Society (unidades Pompeia e Limão), Academia de Futebol DTA Sports e o Playball, o mais antigo e conhecido dentre todos, que reúne 15 campos de futebol society com grama sintética, sauna, lanchonete e churrasqueiras. Em meio a estes espaços, outro clube varzeano conhecido na região, o S.E.R 7 de Setembro FC, montou uma “arena” esportiva, utilizando e dividindo o campo de futebol varzeano em quatro quadras de futebol society para locação. 

A região reúne também entidades esportivas, como a sede da Federação Paulista de Futebol,  responsável pelos torneios oficiais profissionais e pelas competições de base relacionadas ao futebol de homens e mulheres no estado de São Paulo, e as sedes de três entidades que organizam torneios de futebol com clubes amadores, categorias de base e equipes sem vínculo com federações: a Liga Paulistana de Futebol Amador, Liga de Futebol Paulista e Associação CUEBLA (Associação Cidade Unida pelo Esporte de Bases e Ligas Amadoras).

Em meio a tantos espaços que se caracterizam, em sua grande maioria, pelo domínio de uma sociabilidade masculina e heteronormativa, vale destacar o Nossa Arena, um complexo esportivo de 8.500 metros quadrados inaugurado em março de 2021 no bairro da Barra Funda, com quadras de futebol society e de areia, além de uma grande infraestrutura (iluminação, vestiários, bar, churrasqueiras, salão para festas e eventos), reservado somente para mulheres praticarem esportes (futebol, futevôlei, beach tennis, vôlei de praia) e atividades físicas (funcional, pilates, ioga, ginástica natural). O projeto foi idealizado pelas organizadoras do Pelado Real FC, um projeto de escola privada de futebol para mulheres.

Configura-se, assim, uma espécie de mancha, ou seja, “uma área contígua do espaço urbano dotada de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou complementando – uma atividade ou prática predominante” (MAGNANI, 1992, p. 196). O Santa Marina integra, portanto, uma mancha futebolística, marcada por forte componente espacial (identificado no mapa 16, abaixo). Um polígono – circunscrito pelos bairros da Água Branca, Barra Funda, Freguesia do Ó, Lapa, Limão e Pompeia – que envolve diversos pontos de referência para um conjunto heterogêneo de frequentadores, de diferentes origens na cidade, que circulam por lugares, equipamentos e espaços, seguindo diferentes trajetos (MAGNANI, 1992), mas a partir de objetivos e interesses em comum, no caso, a prática do futebol.  

Mas, afinal, qual é o lugar que o Santa Marina ocupa nessa mancha futebolística, em meio a tantos empreendimentos que conseguiram se valer da oferta de grandes áreas antigamente ocupadas por parques industriais para construir campos e quadras e assim oferecer e “vender” práticas esportivas e de lazer? Diferente destes, que se aproveitaram de uma região em desindustrialização, em um longo processo de apagamento de um passo fabril, o Santa Marina consolidou-se como um clube social que continua a dialogar com essa tradição industrial e a memória social operária, preservando os modos de vida dos trabalhadores urbanos e as práticas de uma cultura popular.

Santa Marina
MAPA 16: Mancha futebolística em que o SMAC está inserido no município de São Paulo. Fontes: Geosampa (2021); MyMaps (Google); Informações cedidas pelos clubes.

Embora não apresente as mesmas condições estruturais e recursos financeiros das entidades, clubes e empresas que compõem essa mancha, o Santa Marina apresenta, em termos socioespaciais, uma configuração clubística diferenciada frente à da maioria das agremiações varzeanas e populares em São Paulo. Embora tenha perdido mais da metade da sua área original após sucessivas remodelações impostas pela empresa Saint-Gobain, que é proprietária de 232 mil metros quadrados na região, o clube ainda ocupa cerca de 9.600 metros quadrados de uma região em contínuo processo de valorização urbana. Apesar de contar com uma fechada construída especialmente para o ingresso dos frequentadores, a entrada do clube é pelo portão do estacionamento, com capacidade para cerca de 50 carros, utilizado pelos diretores e frequentadores do clube. Nos dias de semana, as vagas do estacionamento são alugadas a funcionários e estudantes da Universidade Paulista (UNIP). Aos finais de semana, jogadores e visitantes ocupam as vagas pagando o valor de R$5,00. Logo na entrada fica um pequeno canil com dois cachorros de guarda que no período noturno ficam soltos para circularem pelas dependências do clube.

O campo do Santa Marina é de grama e terra batida, cercado por alambrados e pelo muro da propriedade. Não há jogos no período noturno, pois não há postes de iluminação. Próximo ao campo ficam os sete vestiários e uma pequena sala utilizada pelos professores da escolinha, onde ficam guardados os fardamentos das equipes do Santa Marina e da escolinha, equipamentos para os cuidados com o campo e outros materiais esportivos. 

Além do campo, o clube tem uma quadra poliesportiva utilizada pelas equipes de futsal e pela escolinha do Santa Marina. Ao lado da quadra, há uma área construída que abriga a lanchonete, a lavanderia, o pequeno escritório dos diretores do clube. É neste espaço que são registradas as memórias do clube. Há um salão com mesa de sinuca e dezenas de quadros com fotografias de pessoas, times, eventos e festas realizadas em diferentes períodos do clube. É neste espaço que fica a sala de troféus, que reúne um grande acervo (cerca de 600 itens) de troféus e medalhas. Na área descoberta há mesas, uma churrasqueira e uma pequena capela com imagens de Santa Marina, Nossa Senhora de Aparecida e Santa Rita, além de uma grande cruz com Jesus Cristo, usada em romarias na vila. 

Portanto, as práticas esportivas do Santa Marina podem ser assim divididas entre aquelas realizadas na quadra e no campo. Ambos os espaços são decisivos para o fortalecimento de vínculos antigos e construção de novas relações dentro do clube, alimentando as demais dinâmicas e atividades ali vivenciadas.

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O próximo texto também abordará as dinâmicas futebolísticas do SMAC, com foco nas práticas esportivas realizadas em seus dois principais espaços: a quadra e o campo de futebol.

Referências

ANTUNES, Fatima. M. Futebol de fábrica em São Paulo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1985.

FONTES, Paulo. Futebol de várzea and the working class – amateur football clubs in São Paulo, 1940s – 1960s. In: FONTES, Paulo; HOLLANDA, Bernardo Buarque de (Org.). The Country of Football: Politics, Popular Culture, and the Beautiful Game in Brazil. Londres: Hurst Publishers, 2014, p. 87-101.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da periferia ao centro: pedaços & trajetos. Revista De Antropologia, 35, 191-203, 1992.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP. Fundador e editor do Ludopédio.

Mariana Hangai

Mariana Hangai é cientista social formada pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora associada ao Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP (LabNAU). Também é fundadora da Argonautas Pesquisa Etnográfica, na qual desenvolve consultorias para projetos e iniciativas de interesse social. Nos últimos anos dedicou-se, em especil, à pesquisas no campo da cultura e patrimônio, com foco nas relações entre museus e outros equipamentos culturais com seus territórios.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico; CHIQUETTO, Rodrigo Valentim; HANGAI, Mariana. Santa Marina e a mancha futebolística da zona oeste paulistana. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 7, 2024.
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