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São Paulo FC: a Invenção do Cotidiano e a Desconstrução dos M1TOS Tricolores

Ary José Rocco Júnior 29 de fevereiro de 2016

O historiador e erudito francês Michel de Certeau (1925-1986) escreveu, em 1980, uma de suas obras principais, A Invenção do Cotidiano. Nessa obra importante, o intelectual francês examina as formas como as pessoas individualizam a cultura de massa, alterando coisas desde objetos utilitários até planejamentos urbanos e rituais, leis e linguagem, de forma a apropriá-los.

Neste estudo fundamental para entendermos o cotidiano, o chamado “dia-a-dia”, Certeau define dois tipos de comportamento: o estratégico e o tático. As instituições são descritas pelo autor, em geral, como “estratégicas”. As pessoas comuns são apresentadas pelo intelectual como “táticas”.

Uma estratégia, ainda segundo o pensador francês, é uma entidade que é reconhecida como uma autoridade e pode ter o status de ordem dominante. Para Certeau, não podemos esperar de uma estratégia a capacidade de se desestruturar e se reagrupar com facilidade. Em outras palavras, uma estratégia é relativamente inflexível. A estratégia é capaz de definir a si própria como uma produtora/fabricante, ao invés de usuária, e só tem contato indireto com o seu público-alvo. O objetivo de uma estratégia é se perpetuar através das coisas que ela produz.

As ideias de Certeau permitem retratar aquilo que, em meu entendimento, acontece no universo da gestão do São Paulo Futebol Clube, uma das mais importantes associações esportivas do país.

Ancorada na década de ouro da agremiação, os anos 1990, quando conquistou por duas vezes a “antiga” Copa Intercontinental, o então Mundial de Clubes, o São Paulo foi transformado rapidamente, por seus dirigentes, torcedores e a imprensa em geral, em sinônimo de gestão diferenciada, uma entidade a frente de seu tempo. Fundou-se aí o primeiro grande M1TO Tricolor, o da excelência na gestão do futebol. As conquistas do período deram ao clube autoridade para propagar tal ideia.

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José Eduardo Mesquita Pimenta foi presidente do São Paulo FC de 1990 a 1994. Foto: Youtube (reprodução).

O Conselho Deliberativo do Tricolor, composto historicamente por figuras importantes da elite paulistana, os chamados “Cardeais”, dava à agremiação a aura de entidade séria, ética, com credibilidade e diferenciada em relação aos demais clubes brasileiros, com conselhos deliberativos compostos por simples “mortais”. Surgiu aí o segundo grande M1TO Tricolor, o da excelência de seus conselheiros (“Cardeais”), capazes de conduzir os processos de sucessão presidencial sem traumas e/ou brigas pelo poder e levar o clube sempre a triunfos e conquistas.

Na parte esportiva, a década de 1990 viu surgir no São Paulo uma das figuras mais importantes de toda a história do clube, Telê Santana. Telê chegou ao Tricolor no início dos anos 1990 e, em função dos títulos que conquistou, permaneceu até 1996. Em função de sua personalidade forte e crítica e da qualidade de seu trabalho, o treinador adquiriu, no São Paulo, o status informal de manager.

Tudo, absolutamente tudo, relativo ao futebol do clube passava pela avaliação do treinador. As eventuais falhas da gestão da agremiação eram “mascaradas”, então, pela excelência do trabalho de Telê Santana, também ele um personagem a frente de seu tempo. Santana investiu em diversos outros aspectos da preparação de uma equipe esportiva, como a fisiologia, a nutrição, a preparação física, as condições das instalações, etc. Telê, e a equipe de profissionais que com ele trabalharam, contribuiu de forma absurda para a construção do M1TO Tricolor da excelência na gestão do futebol.

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Telê Santana na caricatura de Baptistão.

Os anos 2000 trouxeram mais títulos ao Tricolor, como o Mundial de Clubes de 2005 e o Tricampeonato Brasileiro nos anos de 2006/07/08. Foi nesse período que nasceu o terceiro grande M1TO Tricolor, o do Soberano. Soberano, em qualquer dicionário, é entendido como aquele que exerce o poder e a autoridade supremos; que detém o domínio, dominador, influente. Os dirigentes tricolores, embasbacados e incrédulos com o próprio sucesso, passaram a se enxergar assim. Inventaram um cotidiano que não existia.

Com isso, junto com as conquistas, a agremiação passou a conviver com personagens em sua vida política vaidosos, com pouca ou nenhuma capacidade na gestão de organizações e entidades esportivas. A alcunha de Soberano escancarou, em sua totalidade, toda a vaidade da cúpula dirigente Tricolor durante toda a década de 2000.

Diretor de futebol entre 2003 e 2006 e presidente do clube de 2006 a 2014, Juvenal Juvêncio (JJ) foi a personificação do Soberano. Exímio conhecedor de futebol e competente na formação de times vencedores, JJ era um personagem extremamente vaidoso, arrogante e péssimo gestor dos assuntos não relacionados ao futebol.

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Juvenal Juvêncio quando era presidente do São Paulo Futebol Clube. Foto: Divulgação VIPCOMM.

Seu sucessor, por ele “colocado” na presidência do clube em 2014, Carlos Miguel Aidar, padeceu dos mesmos defeitos de Juvêncio. Vaidade, prepotência, arrogância e incompetência administrativa. Para agravar, Aidar, ao contrário de JJ, pouco ou nada entendia de futebol e da formação de equipes competitivas.

Quando a Era Juvenal-Aidar iniciou, em 2006, o São Paulo FC acabará de ser Tricampeão Mundial, era dono do melhor estádio da capital paulista e vivia dias de estabilidade política e administrativa. Ao final do mandato de Aidar, em outubro de 2015, o Tricolor experimentava um jejum de vitórias. De 2008, quando conquistou seu sexto título brasileiro, até hoje, a equipe do Morumbi só comemorou o título da Copa Sul-americana, um torneio menor de menor importância, em 2012.

Mais do que o fracasso esportivo, o período 2006-2015 marcou também a decadência administrativa e financeira do clube. O Morumbi, outrora “o local” do futebol em São Paulo, é hoje o terceiro melhor estádio da cidade. Pior do que isso. Construído em outro momento do futebol brasileiro, nas décadas de 1960-70, a instalação é obsoleta e desconfortável para o cada vez mais exigente torcedor de futebol e não fornece ao clube, ao contrário da Arena Corinthians e do Allianz Parque, grandes possibilidades de exploração comercial do espaço.

A arrogância de JJ jogou, ainda, a Copa do Mundo de 2014 na cidade de São Paulo no colo do arquirrival Corinthians, com sérios prejuízos financeiros e de imagem ao clube do Morumbi. Acostumado a ganhar todas fora do campo, a Soberana gestão Tricolor começou a viver dias de infortúnios e derrotas nos bastidores do futebol brasileiro. O São Paulo de JJ e Aidar não “dava mais as cartas” no cenário político do principal esporte do país.

O M1TO dos “Cardeais” também “caiu por terra” na Era Juvenal-Aidar. Por duas vezes, Juvêncio provocou mudanças nos estatutos do clube, alterando, por exemplo, o mandato do presidente de dois para três anos e garantindo sua “eterna” presença no cargo por doze anos, tempo não permitido pelo estatuto do clube antes de 2006. Os nobres “Cardeais” assistiram a tudo impassíveis, impávidos, em um completo descaso com os rumos políticos, administrativos e esportivos do Tricolor.

O M1TO do Soberano também foi nocivo à dupla Juvenal-Aidar. O desentendimento com o Corinthians representou a perda da Copa do Mundo de 2014 no Morumbi. Mais do que isso, deu ao rival munição para construir o seu próprio estádio. Com o Palmeiras, a dupla, acreditando no M1TO do Soberano, “roubou” os atletas Alan Kardec e Wesley. Em uma atitude tipicamente pueril e apenas para “dar um chapéu” no rival e reafirmar sua soberania, o São Paulo contratou os dois jogadores, vinculados ao Alviverde. Contratação motivada apenas por vaidade e não pela qualidade técnica dos dois atletas, reconhecidamente pífia.

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Alan Kardec foi um dos jogadores que trocou o Palmeiras (branco) pelo São Paulo. Foto: Hedeson Alves / VIPCOMM.

O M1TO da excelência da gestão Tricolor também ruiu com as diversas negociações levadas a cabo por Carlos Miguel Aidar. Em material fartamente noticiado pela imprensa, uma das marcas da administração do dirigente foi a de levar em reuniões importantes – com fornecedores de material esportivo e instituições financeiras – sua namorada, que nada tinha a ver com a gestão do clube. A atitude, nada soberana, não é exatamente um procedimento universal de boa gestão. Piada pronta.

Com a queda de Aidar, em outubro de 2015, Leco, Carlos Augusto de Barros e Silva, assumiu a presidência do clube. O dirigente tomou algumas medidas interessantes, em especial com relação às categorias de base do Tricolor, outra área nebulosa na Era Juvenal-Aidar. Hoje, todos os atletas da base Tricolor pertencem, em pelo menos 80%, ao clube. Uma boa medida.

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Leco, presidente do São Paulo Futebol Clube. Foto: Urielpunk/Wikipédia.

Porém, Leco demonstra não ter a energia e a liderança necessárias para o atual momento Tricolor. A situação do clube demanda profissionais modernos, com visão empresarial e foco no resultado.

Por duas vezes, nos últimos três anos, o São Paulo teve a oportunidade de (re)inventar o seu cotidiano e voltar a ser referência na gestão esportiva. A primeira foi quando contratou o CEO Alex Bourgeois, profissional de mercado, altamente qualificado, conectado com as mais modernas técnicas de gestão empresarial e que possuía, de forma concreta, um projeto arrojado para a profissionalização da gestão do clube, em curto período de tempo. Uma ruptura necessária com o cotidiano inventado nas décadas de 1990-2000. Leco amarelou e abriu mão do Bourgeois.

Depois, mais recentemente, na negociação dos direitos de transmissão para televisão dos jogos do clube, Leco cedeu à Rede Globo, em detrimento do emergente Esporte Interativo, empresa pertencente ao Turner Broadcasting System. O São Paulo, outrora exemplo de inovação e gestão, perdeu, com a opção realizada, a possibilidade de trazer para o futebol brasileiro e para a agremiação uma nova forma de relacionamento entre as emissoras de TV e os clubes de futebol. A proposta do Esporte Interativo permitia e abria caminho para isso.

O conservadorismo na gestão de Leco é acompanhado pela condescendência do presidente Tricolor com profissionais da administração do clube, por ele escolhidos, que criticam abertamente os atletas em redes sociais, contribuindo para piorar o já conturbado ambiente da agremiação. Leco assiste a tudo de forma covarde e passiva. Também é responsabilidade do atual presidente a escolha de um treinador, Edgardo Bauza, com pouca aderência aos valores e a identidade no jogar do São Paulo FC e que quase nada conhece do futebol brasileiro.

Esse cotidiano inventado em torno de falsos M1TOS construídos nas décadas de 1990-2000, e encarado com naturalidade pelos gestores do clube desde aquela época, faz com que todos nós estejamos assistindo, ano após ano, o processo de “apequenamento” do Tricolor. A fraqueza da diretoria do clube, e de sua gestão, alicerçada em torno de falsos M1TOS, se reflete em campo, em uma equipe sem alma. O Tricolor, hoje, apresenta imensas dificuldades para vencer seus jogos mais importantes, como os clássicos contra os rivais paulistas, e se contenta, a cada temporada, em ser coadjuvante das competições das quais participa.

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As conquistas do São Paulo indicadas por meio das estrelas em sua camisa. Foto: Tales Ebner.

Para esse estado de coisas ser alterado é necessário que o clube (re)invente o seu cotidiano e derrube, de uma vez por todas, todos os seus M1TOS ligados à Soberania. Em tempos de altíssima competitividade no mercado, a arrogância e a prepotência são os primeiros passos para o fracasso e para a derrocada total de uma organização, seja ela esportiva ou não.

Como já escreveu Sun Tzu, no seu clássico A Arte da Guerra, obra do século IV a.C., “se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas”.

Já passou da hora do São Paulo conhecer a si próprio. Não o Tricolor Soberano das décadas de 1990-2000, dono do maior estádio da cidade e do elenco mais vitorioso do país. Esse clube não existe mais. O São Paulo de hoje é uma equipe modesta, com elenco fraco e estádio obsoleto. O passo número 1 para mudar o rumo desta história é reconhecer isso. Caso contrário, o outrora Soberano viverá dias piores do que os atuais. Já passou da hora do Tricolor reinventar o seu cotidiano e construir novos M1TOS.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ary José Rocco Júnior

Professor e pesquisador da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Comunicação e Marketing no Esporte (GEPECOM).

Como citar

ROCCO JúNIOR, Ary José. São Paulo FC: a Invenção do Cotidiano e a Desconstrução dos M1TOS Tricolores. Ludopédio, São Paulo, v. 80, n. 13, 2016.
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