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Ser campeão numa pandemia: a privação do estádio e a rua como casa

Mariana Mandelli 17 de agosto de 2020

Data: 8 de agosto de 2020. No dia em que o Brasil ultrapassou as 100 mil mortes oficiais por Covid-19,[1] a Sociedade Esportiva Palmeiras sagrou-se campeã paulista pela 23ª vez, em jogo disputado nas penalidades contra o arquirrival Sport Club Corinthians Paulista. O pênalti que culminou no título, batido pelo garoto Patrick de Paula, integrado definitivamente ao elenco profissional com a chegada do técnico Vanderlei Luxemburgo, foi visto apenas pelas delegações de ambos os times, jornalistas que trabalharam na transmissão do certame e funcionários do Allianz Parque, arena palmeirense onde a final se deu, sem público.

Como se viu por aqui nos torneios estaduais e com o início do Campeonato Brasileiro, a volta do futebol em meio a uma crise sanitária sem precedentes resultou em torcedores de papelão nas arquibancadas vazias de gente, gravações antigas de cânticos ecoando para preencher o silêncio sepulcral e DJs contratados para “sonorizar” as partidas. A festa torcedora, comumente criminalizada e agora impedida de acontecer por uma questão de saúde pública, passou a ser simulada de modos completamente artificiais por tempo indeterminado.

No caso do Palmeiras, muito antes do veto do poder público às aglomerações por conta da pandemia do coronavírus, já era proibido agrupar-se no entorno do Allianz Parque. Desde outubro de 2016, um cerco [2] à arena impede, em dia de jogo, o livre acesso ao cruzamento entre as ruas Palestra Itália [3] e Caraibas, conhecida como a esquina [4] mais popular entre a torcida palmeirense, onde há a maior concentração de lojas e bares identificados com as cores do clube. Tal interdição, que teve início como uma ação conjunta entre o Ministério Público, a Prefeitura de São Paulo, a Polícia Militar e o próprio Palmeiras, afeta moradores, trabalhadores e, claro, torcedores, que vêm encontrando, nos últimos anos, meios diversos de burlar o impedimento para se aproximarem da arena, uma vez que o acesso é permitido apenas a quem porta ingressos para a partida do dia.

Foto: Mariana Mandelli

O cercamento das ruas e o impedimento da festa palmeirense é uma narrativa que teve início um ano depois da inauguração do Allianz Parque, que (re)abriu os portões em 2014 após quatro anos de uma reforma que transformou o Estádio Palestra Itália em uma arena multiuso dentro dos padrões exigidos pelo “caderno de encargos” da Federação Internacional de Futebol (FIFA) (HOLLANDA, 2014, p.233).[5] A final da Copa do Brasil de 2015,[6] disputada entre o Palmeiras e o Santos Futebol Clube, na qual o alviverde se sagrou tricampeão, motivou a ida de milhares de palmeirenses sem ingresso para a região de Perdizes, zona oeste de São Paulo, onde se localizam o campo e a sede do clube, transformando o bairro numa festa que durou praticamente toda a madrugada. Isto porque, quando o jogo acabou, os 39.660 torcedores que viram a partida in loco se somaram a eles nas ruas e bares do entorno.[7]

Os efeitos da comemoração do tricampeonato palmeirense reverberaram para além da esfera esportiva, abrindo uma discussão sobre torcida, bairro e cidade. Em suma: sobre territorialidade (PERLONGER, 1987), termo indispensável a quem tenta entender as dinâmicas torcedoras palmeirenses na atualidade[8]. Os eventos daquele 2 de dezembro de 2015 são importantes justamente porque inauguraram, além de uma nova fase na história do Palmeiras [9] e da sua casa,[10] uma reflexão profícua sobre as formas de torcer[11] (TOLEDO, 1996, 2000, 2010, 2013) em tempos de “arenização” para a torcida do clube,[12] que não podem ser compreendidas se forem desassociadas do elemento territorial.[13]

Tal percepção ficou mais uma vez evidente no título do Campeonato Paulista de 2020. Mesmo com a pandemia, torcedores recepcionaram o ônibus dos jogadores na saída do Centro de Treinamento, que fica próximo ao Allianz Parque,[14] e comemoraram a conquista nos arredores do campo. Mesmo em menor número, era possível encontrar palmeirenses em alguns bares abertos na Rua Caraibas durante e depois da decisão, como narra Érico,[15] um palmeirense que esteve presente na região e com que mantenho contato desde o início da pesquisa do mestrado, em 2015. Contou-me ele:

“Não estava lotado, daquele jeito que não dá para a gente andar, mas também não estava vazio. Tinha uma quantidade considerável de pessoas, pelo menos nesse pedaço.[16] Das mais ou menos três horas que passei por lá, manteve mais ou menos o mesmo número de pessoas, com aquela coisa, né? Foguetório, sinalizador… passava carro, gente sem camisa e o pessoal gritando “Chupa, gambá”. Da época em que a gente vivia num mundo normal, onde podia se aglomerar na rua, se o Palmeiras tivesse sido campeão, você não andaria na Caraibas. Então dessa vez a quantidade de gente era compatível com classificação fodida, de quartas de final para uma semi, de uma maneira sofrida. A galera estava muito fervorosa”.

A gradação de aglomerações palmeirenses, por assim dizer, presente na fala de Érico, é um ponto importante porque dá indicativos da dinâmica de ocupação dos arredores da arena em dias de jogos decisivos, como a própria final da Copa do Brasil de 2015 mostrou. É também reveladora das maneiras com que os torcedores se relacionam com esse entorno: mesmo em um jogo “fora de casa”, ou seja, que não está acontecendo no Allianz Parque, é possível ver agrupamentos nas ruas e nas lanchonetes, bebendo e acompanhando a partida pela televisão. Em outros termos, os indivíduos estão vivenciando a experiência do jogo com regras, códigos e performances semelhantes às observadas dentro da arena, criando relações que podem ser definidas como um tipo de sociabilidade “estabelecida pela contiguidade ao universo competitivo do futebol”, que “circunscreve padrões de convivência homólogos e imbricados à dinâmica social do meio urbano mais abrangente” (TOLEDO, 2000, p.276).

Foto: Mariana Mandelli

São essas redes de vínculos movidos e alimentados pelo clubismo que unem torcedores como Guilherme,[17] outro palmeirense que entrevistei durante a pesquisa para a dissertação em 2016 e que também esteve na Rua Caraibas no último 8 de agosto. Segundo ele, ir até o Allianz Parque sem poder adentrar a arena, mesmo sob o risco da pandemia, era inevitável porque o clássico Palmeiras x Corinthians “mexe com a cabeça”:

“Na verdade, eu fui porque eu não aguentei, né. O Palmeiras estava na final logo com o Corinthians. Eu não ia aguentar assistir de casa, não. Eu tinha que estar ali na proximidade do Palestra. Mas por conta da pandemia eu me protegi ao máximo. Com máscara, álcool gel. E fiquei o máximo distante para cumprimentar as pessoas e tal… me protegendo o máximo que pude ali. […] O futebol tem essa coisa meio louca, né? Eu não estava tão empolgado, mas a final entre Palmeiras e Corinthians me fez remeter ao passado, ao que a gente fazia antes da pandemia, e deu vontade de reviver tudo isso, já que nem sabemos quando tudo vai voltar”.

Guilherme tem a mesma percepção de Érico sobre a quantidade de torcedores que se agruparam perto do Allianz Parque durante a final do torneio estadual:

“Não poder entrar no estádio é uma sensação horrível. O futebol para mim sempre teve a torcida como protagonista e vendo que a gente não existe, que a torcida não está presente, perde um pouco da emoção do jogo. Mas como foi contra o Corinthians e a gente já tinha aquelas coisas entaladas de 2018,[18] claro que eu fiquei muito feliz, mas com certeza teria sido muito melhor se tivesse sido dentro do estádio lotado com todos os palmeirenses juntos. Acho que teria uma comemoração mais emocionante… mesmo assim, foi um momento de extrema felicidade quando o Patrick marcou o último gol. Começaram a estourar fogos, foi aquele momento uma catarse coletiva, todo mundo gritando, comemorando… teve um clima característico da Caraibas sim, mas numa proporção muito menor. Até as ruas estavam cheias, mas nem comparado com o que foi 2015 ou 2016 ou mesmo 2018″.

Ele também ressaltou que, além dos cuidados possíveis para não se contaminar com o coronavírus, como não adentrar os bares, também procurou não ficar por horas na região após o fim do jogo.

“Foi diferente do que sempre foi. Marca gol e você abraça todo mundo, entra na muvuca. Eu comemorei comigo mesmo, mas estando ali do lado, estando perto e tendo a mística das ruas do entorno do Palestra. Se ganhasse ou perdesse e eu estivesse longe dali, eu não me perdoaria. […] Em outros tempos, se a gente fosse campeão em cima do Corinthians, era para virar a madrugada comemorando. Foi mais aquela coisa de ficar ali perto, de sentir o clima do jogo, de não ficar a coisa fria da televisão com a aquela coisa fria de um estádio sem torcida. Foi diferente, claro, e a gente não consegue simular o que é um Palestra lotado na rua, mas chega perto, né? A gente faz um simulacro como dá”.

A “mistica das ruas do entorno do Palestra” presente na fala de Guilherme reforça a ideia de que as relações de afeto do palmeirense com o seu estádio perpassam o entorno, reconhecido pela torcida como um espraiamento da própria arena e, de modo contraditório, como um locus onde o torcer pode ser manifestado mais livremente do que dentro dela, uma vez que a configuração do Allianz Parque é reconhecida por muitos como um espaço de controle e constrangimento da performance torcedora. O próprio cerco à arena pode ser entendido dentro dessa chave argumentativa, uma vez que coíbe a festa “cobrando” ingressos para que se frequente as ruas, arenizando-as.

Assim, a conexão do Allianz Parque com os seus arredores mostra como a dimensão urbana é fundamental para entender as práticas torcedoras palmeirenses: os trajetos (MAGNANI, 1992, p.197) dos torcedores até a arena, bem como a presença de outras locações na zona oeste de São Paulo e espaços identificados com o clube para além da própria arena (como bares e sedes de torcidas organizadas) definem, por assim dizer, uma territorialidade alviverde, em que o pertencimento clubístico (DAMO, 1998) representa uma espécie de código moral, atraindo torcedores nas mais diversas situações – incluindo, como se viu, uma pandemia.  

Foto: Mariana Mandelli

Estádio, arena, casa, rua, cerco, formas de torcer, agrupamentos, torcidas organizadas, programa de sócio-torcedor etc., são alguns dos elementos que compuseram minha pesquisa e que abordarei ao longo de uma série de textos quinzenais publicados na Arquibancada do Ludopédio. Esta série, “Práticas torcedoras em territórios palmeirenses”, é baseada em minha dissertação de mestrado “Allianz Parque e Rua Palestra Itália: práticas torcedoras em uma arena multiuso”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS-USP), cuja pesquisa de campo foi realizada entre 2015 e 2017 nos arredores do Allianz Parque com o objetivo de investigar os efeitos da modernização do estádio da Sociedade Esportiva Palmeiras.

 

Notas

[1] Ver em Brasil passa dos 100 mil mortos por covid-19. UOL Notícias, 8 de agosto de 2020. Acesso em 14 de agosto de 2020.

[2] A prática de cercar o Allianz Parque será abordada em um artigo específico desta série.

[3] O trecho da Rua Turiassu onde se localiza o Allianz Parque e a sede social do Palmeiras, mais precisamente entre as ruas Cayowaá e Carlos Vicari, foi rebatizado em abril de 2015 a pedido da SEP como uma homenagem às origens do Palmeiras.

[4] A sede do Palmeiras localiza-se na Rua Palestra Itália, 214, ao lado do Allianz Parque. Sua entrada fica em frente à Rua Caraibas, perpendicular à Palestra Itália, de modo que a maior aglomeração de torcedores antes dos jogos aconteça rotineiramente ali.

[5] Tal expressão se refere às demandas exigidas pela entidade para a construção e remodelagem de estádios.

[6] Tal evento será abordado em artigo desta série.

[7] À época, esse foi o recorde de público da arena. Entre 2014 e 2018, ano em que defendi o mestrado, o maior público registrado havia sido o de 41.227 torcedores em 8 de abril de 2018, na final do Campeonato Paulista contra o Corinthians. Esse número foi superado no mesmo ano, em 2 de dezembro, quando 41.256 torcedores assistiram à entrega da taça do Campeonato Brasileiro ao Palmeiras, após partida contra o Esporte Clube Vitória. Tal marca também é maior de toda a história do Parque Antarctica/Palestra Itália, cujo recorde anterior era de 40.283 na final do Campeonato Paulista de 1976 entre Palmeiras e Esporte Clube XV de Novembro, conhecido como XV de Piracicaba.

[8] Refiro-me aqui aos torcedores que conseguem frequentar os jogos e a região onde se localiza o Allianz Parque. Como qualquer torcida, a palmeirense é diversa e conta com torcedores em todo o País.

[9] Desde a inauguração do Allianz Parque, em 14 de novembro de 2014, o Palmeiras conquistou a Copa do Brasil de 2015, o Campeonato Brasileiro de 2016 e 2018, e o Campeonato Paulista de 2020. O alviverde vinha de uma fase de desempenho pífio e resultados vergonhosos, considerando o rebaixamento de 2012 para a Série B e a 16ª posição no Campeonato Brasileiro de 2014.

[10]  Segundo Hollanda, o emprego do termo “casa” nesse sentido “revela o universo de metáforas familiares na linguagem do futebol e designa a maneira pela qual os torcedores concebem o seu próprio estádio, dando origem às expressões: ‘jogar em casa’ e ‘jogar fora de casa’” (2012, p. 104).

[11] As formas ou práticas torcedoras são um tema bastante estudado nas Ciências Sociais nas últimas décadas. Elas compõem um campo explorado especialmente na Antropologia, em trabalhos etnográficos que as associam aos megaeventos esportivos.

[12] Entendo por arenização a remodelação dos estádios brasileiros para a Copa de 2014, que motivou reformas de campos que não foram utilizados para o mundial, caso dos campos do Palmeiras e também do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Um termo melhor do que esse seria atualização, usado por Damo e Oliven (2012).

[13] As nuances específicas do que chamo de territorialidade palmeirense também serão tema de um artigo desta série.

[14] A chamada Academia de Futebol do Palmeiras localiza-se na Av. Marquês de São Vicente, bairro da Água Branca, a menos de dois quilômetros do Allianz Parque e do clube social.

[15] O nome de todos os torcedores que entrevistei durante a etnografia foram modificados para proteger a identidade dos mesmos. Ressalto que o Érico que aparece nessa série de artigos é o mesmo torcedor presente em vários trechos da minha dissertação.

[16] O pedaço é uma categoria da antropologia urbana cunhada por Magnani (1998) e que será explorada no âmbito da territorialidade palmeirense nos próximos artigos dessa série.

[17] Idem nota de rodapé 15.

[18] Guilherme refere-se a uma polêmica com a arbitragem durante a final do Campeonato Paulista de 2018, quando o Corinthians venceu o Palmeiras no Allianz Parque. Houve uma grande discussão sobre interferência externa em um pênalti no atacante Dudu, marcado e posteriormente desmarcado, gerando revolta entre os torcedores palmeirenses. À época, o VAR não era utilizado no torneio. Ver mais em Diretor de arbitragem nega interferência externa na final do Paulista. Folha de S. Paulo, 18 de abril de 2018. Acesso em 15 de agosto de 2020.

Referências bibliográficas

DAMO, A. S. Para o que der e vier: o pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Futebol Porto Alegrense e seus torcedores. 1998. 257 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.

DAMO, A. S.; OLIVEN, R. G. Megaeventos esportivos no Brasil: um olhar antropológico. Campinas: Armazém do Ipê, 2014.

HOLLANDA, B. B. B. “O fim do Estádio-Nação? Notas sobre a construção e a remodelagem do Maracanã para a Copa de 2014”. In: Futebol objeto das ciências humanas. CAMPOS, F. de; ALFONSI, D. (Orgs.). São Paulo: Leya, 2014, p. 321-346.

MAGNANI, J. G. “O campo da Antropologia”. In: PASSOS, M. L. P. (Org.). Os campos do conhecimento e o conhecimento da cidade. São Paulo: Museu Paulista da USP, 1992. p. 45-56. (Cadernos de História de São Paulo, 1).

____. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.

PERLONGHER, N. O negócio do michê. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987.

TOLEDO, L. H. de. Torcidas organizadas de futebol. Campinas: Autores Associados/Anpocs, 1996.

______. Lógicas no Futebol: Dimensões Simbólicas de um Esporte Nacional. 2000. 341 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.

______. “A Cidade das Torcidas: representações do espaço urbano entre os torcedores e torcidas de futebol na cidade de São Paulo”. In: Na Metrópole: textos de Antropologia Urbana. José Guilherme C. Magnani: Lilian de Lucca Torres (Orgs.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2000.

_____. “Torcer: metafísica do homem comum“. Revista de História (USP), v. 1, 2010, p. 175- 190.

______. “Quase lá: a Copa do Mundo no Itaquerão e os impactos de um megaevento na socialidade torcedora“. Horizontes antropológicos, v.19, n.40, Porto Alegre, 2013.


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Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

Como citar

MANDELLI, Mariana. Ser campeão numa pandemia: a privação do estádio e a rua como casa. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 39, 2020.
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