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Soft Power Futebol Clube: as estratégias de Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos

Introdução

No decorrer dos últimos anos, o cenário desportivo internacional se notabilizou pela sua crescente introdução a dinâmica dos eventos de entretenimento, comprovado pelo aumento considerável das quantias dispendidas para a realização dos jogos olímpicos, que saltou de 6,6 Bilhões de Dólares na edição de 2000 realizada em Sydney (CRAIG, 2000), para 15,4 Bilhões de Dólares na edição de 2020 realizada em Tóquio (SAYURI, 2021). Devido a tal tendência econômica, tornou-se comum o protagonismo de países pouco tradicionais desportivamente nos bastidores da organização, por intermédio de patrocínios, colaborações e a própria realização dos eventos.

Muitas destas nações observam nos investimentos esportivos um meio de expansão econômica, e consigo da relevância do país no âmbito internacional. Tendo isto em mente, o tema da utilização política do esporte (Sportswashing) ressurgiu após a compra do Newcastle pelo Fundo de Investimento Soberano da Arábia Saudita, que é presidido pelo príncipe Mohammed bin Salman[1] e conta com um com patrimônio avaliado em US$ 435 bilhões (R$ 2,4 trilhões).

Há de se observar que a utilização política do esporte não é algo novo, perpassando diversas edições de Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo, porém, a inclusão destes atos em políticas internacionais, emerge como uma novidade no cenário desportivo. Deste modo, este texto busca explicar a relação existente do Sportswashing com o conceito de Soft Power, além de demonstrar como que o futebol é influenciado.

Mohammed bin Salman
Mohammed bin Salman na cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 2018. Foto: Wikipédia

Soft Power e Sportswashing no desporto

O uso do esporte como ferramenta política não é novidade. Já no século XX, diversas foram as ocasiões em que o esporte foi usufruído por interesses políticos, seja para a promoção da imagem do regime ao exterior, ou para o próprio âmbito doméstico (RONAY, 2019). Dois casos emblemáticos resumem bem o “sportswashing” do passado: os jogos olímpicos de 1936 em Berlim e o uso do futebol pela ditadura militar no Brasil.

Em 1936, o governo de Hitler usou os jogos numa tentativa de resgate da autoestima do povo alemão, além de usar o esporte para disciplinar e preparar a juventude para a guerra, exaltando o regime então vigente, onde havia uma associação entre o sacrifício do atleta e o sacrifício humano dentro de uma guerra (MOSTARO, 2012).

No que se refere ao caso brasileiro, o futebol foi apropriado pelo regime militar e utilizado como estandarte aos seus valores bradados (ALMEIDA, 2017). Deste modo, o grande resultado futebolístico obtido na Copa do Mundo de 1970, foi utilizado para a promoção nacional do milagre econômico brasileiro, ao passo que o auge dos exílios políticos, juntamente ao aumento da repressão, era silenciado.

Com tais crimes sendo cometidos pelo governo brasileiro, esperava-se que houvesse pequena aprovação do regime, todavia, tal entendimento não se confirmava (MAGALHÃES, 2012). O sucesso dentro de campo logo foi apropriado pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici, evocando uma unicidade entre a seleção campeã e a ditadura.

Além deste episódio em específico, a ditadura militar teve papel decisivo em diversas oportunidades quando o assunto era futebol. A própria criação do campeonato brasileiro em 1971, foi utilizada como propaganda do Projeto Brasil Grande Potência (ALMEIDA, 2017). Já a edição de 1979 do campeonato nacional, foi marcada pelas suas 94 equipes participantes, evidenciando a influência do regime no futebol, uma vez que muitos dos participantes do certame disputavam a competição por meio de indicações políticas. Era o futebol visto como um forte capital político, principalmente na década de 1970 (CARA e STRINI, 2014).

Tais usufrutos do esporte, ocorreram devido ao fato de que o cenário desportivo compõe um dos maiores fenômenos socioculturais do mundo, não estando a margem da constante estrutural da sociedade que se baseia (TUBINO, 2006; MURAD, 2005). Dito isto, a primordial diferença entre o uso feito do esporte nestes casos citados, e do uso feito no momento atual, é a sua integração a políticas nacionais de Soft Power, que se utilizam dos eventos esportivos como um meio de manusear a percepção internacional de um certo país perante os demais (NYE, 2004).

Logo, tornou-se comum nas últimas duas décadas observar países como Arábia Saudita, Azerbaijão, Catar, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, demonstrando interesse na realização de grandes eventos desportivos, no intuito de associar suas imagens nacionais aos valores carregados por essas competições, amenizando a hostilidade da opinião internacional para com estes países.[2] É sob esta situação vigente, que o termo “sportswashing” foi cunhado, com o objetivo de salientar a utilização do esporte por grupos, empresas ou um próprio estado-nação, na melhoria de sua reputação. Nesse sentido, a finalidade da técnica adotada é a de fazer uma lavagem, como o nome sugere, da sua imagem se utilizando do esporte como fator determinante para essa limpeza.

Roman Abramovich
Roman Abramovich no estádio Stamford Bridge durante a vitória do Chelsea sobre o Portsmouth por 4 a 0, em agosto de 2008. Foto: Wikipédia

Cenário Futebolístico

No que se refere ao futebol, é possível observar uma grande profusão destes investimentos em agremiações europeias, uma vez que os principais certames globais encontram-se neste continente, propiciando uma vultuosa movimentação econômica a estes clubes. Logo, não é de se estranhar que o cenário futebolístico europeu concentre os casos mais notórios, como o do Chelsea que, ao ser comprado em 2003 pelo magnata russo Roman Abramovich, consolidou-se como uma das maiores forças do futebol inglês e conquistou a Liga dos Campeões da Europa em duas oportunidades (2011-2012 e 2020-2021). Porém, Abramovich possui um passado nebuloso. Ex-governador da região de Chukotka, na Rússia, Roman já foi investigado por lavagem de dinheiro e ações ilegais, mas sua imunidade por conta do histórico político o ajudaram a se salvar de qualquer condenação.

O Manchester City e o Paris Saint-Germain são mais dois casos em que o esporte se apresenta como uma ferramenta para ajudar na imagem de determinados agentes. Mansour Bin Zayed Al Nahyan é dono do Manchester City, além de ser membro da família real e vice-primeiro ministro dos Emirados Árabes Unidos, país que vive sob um regime monárquico desde a sua independência na década de 1970.

O dono do PSG é Nasser Al-Khelaifi, CEO da Qatar Sports Investments, fundo ligado ao governo do Catar. Porém, o grande investidor do clube é o presidente do país, Tamin Bin Hamad Al-Thani, onde também se vive num regime monarca. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar são países que passam por regimes com credibilidade manchada perante os olhos do mundo, marcados pelo desrespeito a cartilha dos direitos humanos[3], pelas extensivas barreiras as liberdades individuais, e pelos recorrentes financiamentos de grupos religiosos extremistas.

Nasser Al-Khelaifi Neymar Paris Saint-Germain
Nasser Al-Khelaifi durante a apresentação oficial de Neymar no Paris Saint-Germain. Foto: C.Gavelle /PSG/Fotos Públicas

Tendência dos investimentos

Nota-se que há uma lógica nos exemplos citados, caracterizada pela busca de agremiações com resultados pouco expressivos, mas que dispõem de localização nobre para o desenvolvimento do clube, o que assegura maior visibilidade aos investimentos dispendidos. Paris, capital da França, é um dos centros mais importantes da Europa e do mundo, mas que não possuía um time competitivo. Já a cidade de Manchester possui um clube estabelecido, todavia, há espaço para o crescimento de mais um nesta cidade, uma vez que a badalada Premier League mobiliza grandes quantias de capitais, comprovado pelo fato de que dos cinco clubes mais valiosos do mundo, quatro são ingleses. Dentre os 15 primeiros no quesito, sete jogam na Inglaterra (TRANSFERMARKT, 2021).

Além dessa visibilidade, é observável uma lógica de ampliação de espaços para atuação, onde o Grupo City se apresenta como o exemplo mais palpável. Hoje, o grupo encabeçado pelo Manchester City atua em diversos países e continentes, contando com o Girona (Espanha), o Lommel (Bélgica), o Troyes (França), o Montevideo City (Uruguai), o New York City (Estados Unidos), o Mumbai City (Índia), o Yokohama Marinos (Japão), o Sichuan Jiuniu (China) e o Melbourne City (Austrália).

Após a compra do Newcastle, diversas páginas[4] de notícias apontaram um suposto objetivo do fundo árabe em comprar mais três clubes, sendo um desses alvos um clube brasileiro, além da Internazionale de Milão e o Olympique de Marseille da França. O conceito de “sportswashing” é aplicado há anos no esporte, todavia podemos presenciar o auge de uma ação coordenada em escala mundial por agentes dessa ação. Estaria o Fundo de Investimentos Públicos saudita com a intenção de atuar em diversos países e continentes como o estado emiradense? Essa pergunta só poderá ser respondida no futuro, porém é mais uma amostra da estreita ligação entre o esporte e a geopolítica em nossa sociedade.

Notas

[1] Protagonista de polêmica diplomática, o príncipe saudita é acusado de ser o responsável pelo assassinato do jornalista turco Jamal Kashoggi. Mais informações em: As chocantes gravações que retratam os últimos momentos de Jamal Khashoggi, morto em consulado saudita na Turquia – BBC News Brasil

[2] A participação destes países no calendário esportivo em 2021 é considerável, uma vez que a Arábia Saudita será sede de um grande prêmio da Fórmula 1 e da Fórmula E, além da compra do clube inglês Newcastle. Já o Catar sediou a Copa do Mundo de Ginástica, uma etapa da turnê mundial da ATP, e ainda será sede de um grade prêmio de Fórmula 1. No que tange a participação dos Emirados Árabes Unidos, este país sediará a Copa do Mundo de Clubes da FIFA e a etapa final da temporada de Fórmula 1.

[3] Tanto o Catar, quanto os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita, figuram como profusos violadores de direitos humanos, no relatório da Anistia Internacional para os anos de 2017 e 2018.

[4] Como noticiou o Lance, uma das principais páginas esportivas do país: https://www.lance.com.br/futebol-internacional/fundo-que-adquiriu-newcastle-deseja-comprar-mais-dois-clubes-europeus-brasileiro.html

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Rodrigo Accioli. Canários e condores: as relações políticas durante a Ditadura Militar (1964-1985) e a configuração territorial do futebol no Brasil. 2017. 93f. Monografia (Bacharelado em Geografia) – Departamento de Geografia, Faculdade de Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2017/2018: o estado dos direitos humanos no mundo. Londres: Amnesty International Ltd, 2018.

CARA, Thiago; STRINI, Antônio. Há 50 anos, militares tomaram o poder também no esporte. ESPN. 2014. Acesso em: 23 Nov. 2021.

CORBIN, JANE. As chocantes gravações que retratam os últimos momentos de Jamal Khashoggi, morto em consulado saudita na Turquia. BBC, 2019. Acesso em: 17 nov. 2021.

CRAIG, David. Squandered: How Gordon Brown is wasting over one trillion pounds of our money. Hachette UK, 2009.

LANCE. Fundo que adquiriu o Newcastle deseja comprar mais dois clubes europeus e um brasileiro. 2021. Acesso em: 08 nov. 2021.

MAGALHÃES, Lígia Gonçalves. Ditadura e futebol: O Brasil e a Copa do Mundo de 1970. Polhis, ano, v. 5, 2012.

MOSTARO, Filipe Fernandes Ribeiro. Jogos Olímpicos de Berlim 1936: o uso do esporte para fins nada esportivos. Logos, v. 19, n. 1, 2012.

MOTA, CAHÊ. Império de Roman’: os mistérios do homem que transformou o chelsea. os mistérios do homem que transformou o Chelsea. Globo Esporte, 2012. Acesso em: 08 nov. 2021.

MURAD, Maurício. Jogos Olímpicos e política um dia de setembro. In: Victor Andrade de Melo e Fabio de Faria Peres (org.) O esporte vai ao cinema. São Paulo: SENAC SP, 2005

NYE JR, Joseph S. Soft power: The means to success in world politics. Public affairs, 2004.

RONAY, BARNEY. Era o futebol visto como um forte capital político, principalmente na década de 1970 (CARA e STRINI, 2014). The Guardian, 2019. Acesso em: 23 nov. 2021.

SAYURI, JULIANA. Japão apostou alto e perdeu: tóquio-2020 é a olimpíada mais cara da história. Uol Esporte, 2021. Acesso em: 17 nov. 2021.

TUBINO, Manoel José Gomes. O que é esporte. São Paulo: Brasiliense, 2006

TRANSFERMARKT. As 100 equipas mais valiosas do mundo. 2021. Acesso em: 08 nov. 2021.

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Rafael Freitas Bezerra

Licenciado em Geografia pelo Instituto Federal Fluminense (IFF) e Mestrando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do Grupo de Estudos: Mundo Dentro e Fora das 4 Linhas, que abarca pesquisadores de diversas universidades, onde são realizadas reuniões e produções que discutem a relação geografia e futebol.

Leandro Luís Lino dos Santos

Bacharel e Licenciado em Geografia pela na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho - Câmpus de Rio Claro. Atualmente desenvolve pesquisa no nível de Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGG) da mesma universidade. Desde 2019 investiga o futebol a partir de um prisma geográfico de interpretação, tendo desenvolvido a monografia sob esta relação. É componente do Grupo de Estudos: Mundo Dentro e Fora das 4 Linhas que, no ano de 2020 migrou suas reuniões para o modelo remoto, abarcando discentes de universidades como USP, UFMG, UFTM, e UNESP – Câmpus de Presidente Prudente, em suas reuniões. Na metade do ano de 2020, iniciou a atividade divulgador científico, por intermédio do perfil do grupo de estudos nas mídias sociais, com recente publicação no periódico Le Monde Diplomatique Brasil.

Como citar

BEZERRA, Rafael Freitas; SANTOS, Leandro Luís Lino dos. Soft Power Futebol Clube: as estratégias de Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos. Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 20, 2021.
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