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Espaço, tempo e sociedade no futebol de São Paulo: tradição, modernidade e inovação como produtos da globalização

Setor popular na Rua Javari. Imagem: João Paulo Rosalin
Setor popular na Rua Javari. Imagem: João Paulo Rosalin

Este é um pequeno ensaio sobre o conceito de tempo. Explicamos: Trata-se de um curto texto que busca discutir a estrutura do futebol contemporâneo e seus espectros. No dia 27/08/2023, o mais frio da cidade de São Paulo no ano, duas partidas ocorriam no intervalo de algumas horas. À 10 horas, Juventus e Oeste se enfrentavam  pela Copa Paulista, na Rua Javari, tradicional estádio do bairro da Mooca; do outro lado da cidade, às 18h30, o Palmeiras recebia o Vasco da Gama, pelo Campeonato Brasileiro, no multifuncional Allianz Parque. Em comum: os dois mandantes são agremiações com apelo à identidade ítalo-brasileira. Um dos times se orgulha por ser proprietário do estádio mais moderno do país, ter uma vasta galeria de títulos e as finanças no verde.  O outro, vê como principal força de sua existência justamente a situação contrária: sua permanência na condição “raiz”: um estádio pequeno, de bairro, com arquibancadas de concreto e que mantém suas tradições intocáveis. 

A sobreposição temporal demonstra como a atuação do novo e do velho se cruzam num par de dialeticidade da transformação espacial. A justificativa do progresso caracteriza o ato de modernização enquanto condução para a reformulação e aceitação das novas lógicas dos tempos modernos. A sucessão dos tempos sociais permitem observar como os objetos assumem diferentes conteúdos ao longo da história capitalista. Esse movimento afeta as relações sociais, o espaço geográfico e suas práticas cotidianas, assim, não seria diferente com o futebol e a sua forma de materialização popular. O clássico tradicional se combina com o ideal de moderno e global, formatando uma justaposição de diferentes tempos sociais na constituição do que a popularização futebolística. 

No senso comum, as amostras aparecem como duas formas opostas de futebol: uma clássica e uma moderna. Dois componentes distintos de um mesmo esporte, mas que aparecem como divergentes, incompatíveis e desconexos. Ora, o próprio futebol nos serve como amostra de nossa hipótese:  Na globalização, o éthos do período é o consumo e tudo se converte em mercadoria.  O Espaço geográfico, munido de artifícios, se adapta às condições favoráveis ao consumo. Assim, nos perguntamos: Seriam a modernidade e a tradição produtos de um mesmo momento? Seria essa a essência da temporalidade, expressa no espaço geográfico, a grande chave de sobrevivência desses agentes diante das oportunidades econômicas que a conjuntura os oferece?

Estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari. Imagem: João Paulo Rosalin
Estádio Conde Rodolfo Crespi, na Rua Javari. Imagem: João Paulo Rosalin

O período da Globalização e a discussão de modernidade

A capacidade do sistema capitalista de gerar mercadorias, retirando dos objetos e das ações a importância de seu valor de uso, restituindo-a ao seu valor de troca (incluindo aqui os bens simbólicos) permite o entendimento de que não tardaria ao esporte ganhar a característica de vetor de divulgação de produtos. No período da globalização, o futebol ganha enormes dimensões no âmbito econômico e midiático. A indissociabilidade entre as produções culturais e a dinâmica econômica atingiu o futebol que adota estratégias de publicidade e  marketing, incrementando seu negócio. Agora, toda a psicosfera (SANTOS, 2002) que envolve o esporte (e aqui se acrescenta o torcer) está absorvida pela ótica consumista. 

Nesse meio termo, aparece a financeirização junto aos agentes do capital financeiro, que encontram nas entrelinhas dos campos de futebol a oportunidade para aquisição de negócios e investimentos. O conceito de financeirização do capital traz em sua essência um destaque de valorização do valor direcionado aos processos de desdobramentos fictícios nas transações econômicas e sua busca pela lucratividade. As finanças alcançam, no atual contexto histórico, condições de centralidade nas relações sociais e econômicas de produção, dando um novo sentido para a organização do espaço geográfico e seus objetos (CHESNAIS, 1998). O futebol, enquanto fenômeno das relações sociais, está incluso nessas circunstâncias e formas de substancialização do capital financeiro. 

Toda essa estrutura de formação de novos padrões geográficos, que se combinam com os agentes da mundialização do capital, traz em sua essência um circuito de modernização das ações e dos objetos sociais. A substancialidade do conceito de moderno apresenta os princípios de ruptura com o tradicional, estabelecendo uma outra ordem cultural que está inserida nos sentidos do mercado financeiro e seus agentes globais. A resistência dos lugares adapta-se às diferentes circunstâncias que são propagadas nesses movimentos de materialização espacial, assim os objetos construídos tornam-se receptáculos particulares da globalização. Nesse sentido, a lógica do futebol transforma-se em produto do global e de seus movimentos de socialização de relações modernas. 

A localidade futebolística adquire novos contornos da valorização espacial, uma vez que a associação entre o novo e o velho, o local e o global, formulam lógicas de construção territorial ligadas a um novo significado das ações e dos objetos. Os diferentes formatos do consumo e da reformulação espacial caracterizam a reestruturação mercadológica dentro dos fenômenos do futebol moderno. 

Entrada principal do Allianz Parque, na Rua Palestra Itália. Imagem: João Paulo Rosalin
Entrada principal do Allianz Parque, na Rua Palestra Itália. Imagem: João Paulo Rosalin

O lugar: tradição e modernidade como produtos

O Geógrafo Milton Santos define em seu livro “Espaço e Método” (2014, originalmente publicado em 1989) que o espaço é uma categoria a ser analisada em sua essência social e no componente de sua totalidade. Fator de sua evolução, a dimensão espacial é uma instância da sociedade que compreende e é compreendida pelas demais instâncias: ideologias, cultura, economia, produção, política, dentre outros.

Assim, o princípio ativo do território é levado em consideração ao buscar compreender a significação dos lugares a partir de sua dialética forma-conteúdo e dos processos que incidem sobre eles.  Para Santos (1989, p. 6-7):

cada localização é (…) um momento do imenso movimento do mundo, contido em um ponto geográfico, um lugar. E é por causa desse movimento social que cada lugar muda sem cessar de significação: a cada instante as frações da sociedade que o concernem, não são as mesmas. Localização e lugar são, portanto, duas coisas distintas. O lugar pode permanecer o mesmo enquanto que as localizações mudam. O lugar é um objeto ou um conjunto de objetos. A localização é um feixe de forças sociais convergentes em um lugar. SANTOS, 2014, pp. 6-7.

A localização, portanto, dará sentido à incidência das ações do presente sobre os lugares. E essas ações darão o sentido de uso e a valorização dos lugares dentro do espaço geográfico. Conforme Santos e Silveira (2001, p. 302), “(…) o neoliberalismo conduz a uma seletividade maior na distribuição geográfica dos provedores de bens e de serviços, levados pelo império da competitividade”. Essa constante seleção/valorização do espaço determina os lugares privilegiados da cidade e onde se realizarão as intencionalidades e investimentos do poder público, dos gestores e dos investidores.

O caso do Juventus nos ajuda a compreender essa dinâmica através do esporte. Apesar de ser um futebol de baixo investimento e um estádio de dimensões reduzidas, a própria condição do espaço induz à uma experiência. O cannoli, a lojinha, as fotos oficiais, são todos produtos contemporâneos. Por mais que o “jeito antigo” seja manifestado como patrimônio/preservação, suas dinâmicas foram absorvidas pela modernidade.

O tradicional Cannoli do Antonio, na Rua Javari. Imagem: João Paulo Rosalin
O tradicional Cannoli do Antonio, na Rua Javari. Imagem: João Paulo Rosalin

 

O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é, as diferenças de significação. SANTOS, 2002, p. 21.

O espaço geográfico, portanto, é compreendido como uma junção do passado e do presente, pois as formas estabelecidas no passado ganham novos significados e interesses no tempo presente. 

Na realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de nossas mãos, já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que são também representativos de técnicas. SANTOS, 2002, p. 21.

O que se percebe, ao acompanharmos a partida do clube da Mooca, é que a atmosfera envolta na ideia do “futebol anti-moderno”. A materialidade do antigo, do arcaico e até do ultrapassado é incorporado pela estratégia mercadológica do clube. A psicosfera de se permanecer o mais próximo possível de uma estrutura original fomenta ao torcedor juventino e aos visitantes a sensação de pertencimento ao clube, à Rua Javari e ao bairro como um todo. Essa realização se dá dentro de um contexto maior, o do bairro, que se solidifica na sustentação de seus tempos áureos da industrialização. Vender o velho, aqui, se torna um meio de sobrevivência. 

Juventus x Oeste, pela Copa Paulista 2023. Imagem: João Paulo Rosalin
Juventus x Oeste, pela Copa Paulista 2023. Imagem: João Paulo Rosalin

No estádio do Palmeiras, por outro lado, a presença de tecnologias modernas traz a ideia de um futebol ultra-avançado, associado a um grande elenco e a conquista de títulos, a mercadoria não fica invisível e a origem, a entrega e o torcer são incorporados à nova lógica, uma lógica consumista. A todo o momento, no Allianz Parque, o torcedor é incentivado a consumir. O Palmeiras e toda a sua simbologia se tornam mercadorias no sentido mais explícito do termo.

Se considerarmos a história do espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram justapostos, isto é, em que cada sociedade que criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização. SANTOS, 2002, p. 22.

Palmeiras x Vasco da Gama, pelo Campeonato Brasileiro de 2023. Imagem: João Paulo Rosalin
Palmeiras x Vasco da Gama, pelo Campeonato Brasileiro de 2023. Imagem: João Paulo Rosalin

 A casa alviverde se manifesta como o fixo ideal para a concretização moderna do capital. Nela o consumidor mais que perfeito tem toda uma arena para a realização de sua persona.  A percepção é que o jogo, a realização da partida, se torna apenas mais um evento dentre tantos outros que ocorrem no espaço, perdendo a centralidade que outrora possuía. Características da cidade como produto de modernidade, onde atividades e temporalidades coabitam o mesmo momento histórico e as materialidades componentes do espaço geográfico se constituem em organizadoras do tempo.

Considerações finais

Pensar a cidade e o espaço geográfico pelo recorte do futebol não esgota as discussões sobre a modernização e seus eventos. No entanto, nos traz uma amostra de como o espaço geográfico contém materializações do tempo e da ação humana e de que forma essas estruturas ganham características e funcionalidades de acordo com a intenção das relações sociais presentes. Analisar os componentes da cidade nos faz perceber como o tempo se manifesta de maneira distinta, como existem tempos dentro de tempos e como essa temporalidade está associada de maneira dialética ao espaço, sobre o qual a intencionalidade é materializada no processo de produção dos objetos e das ações imateriais. 

As amostras dos estádios analisados nos servem para entender que o uso do espaço está carregado de intenção e essa intenção é o que trará os valores simbólicos, de uso e de troca às localidades.  É o espaço geográfico que qualifica o tempo, que impede ou determina que ele se perca no processo de modernização e o atribui a intencionalidade.

Referências Bibliográficas

CHESNAIS, F. Mundialização do capital, regime de acumulação predominantemente financeira e programa de ruptura com o neoliberalismo. REDES, Santa Cruz do Sul, v. 3 n. 1, p. 185-212, jul., 1998.

SANTOS, M. A natureza do espaço. Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002. 

SANTOS, M. Espaço e método. São Paulo: EDUSP, 2014. 

SANTOS, Milton. O tempo nas cidades. Ciência e Cultura,  São Paulo ,  v. 54, n. 2, p. 21-22,  Oct.  2002 .   Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252002000200020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em  12  Set.  2023.

SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 10 ed. São Paulo: Record, 2001.

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João Paulo Rosalin

É professor substituto bolsista no Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental e doutorando do Programa de Pós Graduação em Geografia da UNESP (Rio Claro), onde desenvolve sua tese intitulada "Usos do território, solidariedades institucionais e especificidades produtivas: as indicações geográficas para produtos agropecuários no estado de São Paulo". Graduado em Geografia (Bacharelado e Licenciatura) em 2016 pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", campus de Rio Claro e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da mesma instituição (2019). É integrante da Red Latinoamericana de Investigadores sobre Teoría Urbana (RELATEUR), do Laboratório de Investigações Geográficas sobre os Usos do Território (LUTe) e do Grupo de Estudos: O Mundo Dentro e Fora das 4 Linhas (GEMDF4L).

Leandro Di Genova Barberio

Mestrando no Programa de Programa de Pós-Graduação em Geografia, na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (unesp) - Campus - Rio Claro. Graduado em licenciatura em Geografia na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (unesp). Participou como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa Educação Tutorial (PET). Foi pesquisador de Iniciação Científica pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), trabalhando com planejamento urbano e financeirização do território.

Como citar

ROSALIN, João Paulo; BARBERIO, Leandro Di Genova. Espaço, tempo e sociedade no futebol de São Paulo: tradição, modernidade e inovação como produtos da globalização. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 6, 2023.
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