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A surfista Tita Tavares e uma estrutura comprometida: o Outro do Outro

Fidel Machado 15 de julho de 2020

Maria das Graças Tavares Brito Filha, a Tita Tavares é, sem dúvida, uma das grandes surfistas brasileiras e um nome incontornável do surf feminino pelos mares do mundo. A cearense foi a primeira mulher a tirar uma nota dez unânime no Circuito Mundial de Surfe em 1996. Além disso, ao longo de sua carreira como surfista, foi tetracampeã Brasileira de Surf Profissional entre outros títulos. Por mais que seu tempo de atleta tenha passado, Tita ainda continua remando nas praias do Ceará e segue a vida com fortes braçadas e muitos drops.

Tita Tavares atualmente vive em uma casa com a estrutura comprometida, condenada pela defesa civil e não possui dinheiro suficiente para a realização da reforma. As inúmeras rachaduras põem em risco não só a casa, mas a própria surfista. Essa situação e, sobretudo, o contexto são muito simbólicos e servirão de mote para as linhas futuras. Feito esse preambulo, o objetivo aqui proposto possui duas intenções. A primeira é refletir sobre a estrutura comprometida e, em linhas muito breves, debater esse comprometimento e, por fim, fazer uma divulgação. Uma espécie de convite-pedido.

A instituição esportiva de alto rendimento é um ambiente muito impiedoso. Vários atletas de diversas modalidades caem em um ostracismo violento. Em alguns casos, nem mesmo os títulos conquistados são suficientes para abrandar esse oblívio. O esquecimento, assim como a lembrança, é estratégico e seletivo. Se tal acontecimento ocorre com o futebol e as demais modalidades que constituem o main stream, com o surf, e a sua condição não hegemônica, o peso parece ser ainda maior.

Aqui no Ludopédio já escrevi alguns textos sobre o surf em diferentes conjunturas. Contudo, uma tônica ainda parece permanecer vigente e insiste em alimentar algumas das minhas hipóteses e inquietações. No interior estrutural de algumas instituições alguns marcadores sociais ditam os lugares que determinados corpos devem ocupar. Cor, gênero, orientação sexual e classe social são critérios basilares dessa dinâmica eficiente, vigente e velada. Ademais, há uma espécie de tolerância para alguns corpos desde que eles desempenhem a performance esperada. Caso contrário, as ofensas são por conta da casa.

Tita Tavares é mulher, negra, periférica e homossexual. Um combo social que a coloca na condição de Outro do Outro. Segundo Grada Kilomba, a mulher negra ocupa um local de difícil reciprocidade, pois por ser mulher adquire um lugar de inferioridade em relação ao homem e, por ser negra, sofre uma hierarquização diante da mulher branca.

Surfistas Negras CE.

Como já fora supracitado, a estrutura comprometida da casa da Tita versa muito sobre outros comprometimentos. Afinal, estruturas, como agências, confederações, conselhos, federações, comitês e secretarias deveriam, de alguma forma, se comprometerem em valorizar, fortalecer seus atletas atuais e seus grandes nomes. Todavia, há um comprometimento endógeno, uma preocupação com as cadeiras de poder. Uma agenda com ações isoladas, condutas recorrentes e permanência de uma certa lógica e ordem que mantém estruturalmente a estrutura vigente. Afinal, representatividade sem modificação no alicerce soa como uma solução cosmética e utilitária. Dissonante disso, há raras exceções. Caso não haja um comprometimento sério, organizado e sistemático a estrutura está, seriamente, comprometida. Os indícios estão cada vez mais evidentes e a tendência é que as colunas embora ainda firmes, fiquem insustentáveis.

Quando me refiro a uma ausência de agenda verdadeiramente comprometida das estruturas responsáveis, falo sobre uma inércia de apenas manter o que havia sendo feito e isso é remar sem esforço. A surfista cearense ainda recebe um salário mínimo fruto de seu trabalho em um projeto municipal, mas quando me refiro à estrutura não posso me restringir a Tita. Apesar dessa remuneração há uma série de elementos problemáticos e passíveis de questionamentos quanto ao modo estrutural de operacionalização do sistema. Ter acesso ao básico não é para ter o caráter de caridade, auxílio ou privilégio. É direito fundamental, portanto, é dever do Estado.

Diante desse contexto, histórias tecidas na teia da desigualdade são facilmente utilizadas para querer enaltecer a falácia da meritocracia. Mais uma artimanha da estrutura para se isentar de responsabilidades e se manter no poder. Mais uma armadilha liberal para culpabilizar o sujeito nas derrotas e se apropriar das suas conquistas. Uma estrutura comprometida apenas consigo é muito problemática.

Por fim, aqui farei a divulgação com o convite-pedido. Em uma ação solidária, o grupo Surfistas Negras CE recém comemorou o seu primeiro mês de vida e lançou uma rifa em que o montante arrecadado será destinado, integralmente, para a reforma da casa da Tita.

Caso queira ajudar, clique aqui!. No instagram do grupo tem todas as informações necessárias para a participação. Em tempos de pandemia, autoritarismo e um narcisismo gritante, ações comprometidas com os outros firmam laços e, nesse caso específico, literalmente podem fortalecer estruturas.


 Conversas com:

Lia Lauriano

@surfistasnegrasce

Tita Tavares

Silvio Almeida

Grada Kilomba

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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. A surfista Tita Tavares e uma estrutura comprometida: o Outro do Outro. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 36, 2020.
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