111.19

Tinga, Fla-Flu e Grupo Corpo: reflexões contra o VAR

Amigos, já tive o prazer de esbarrar com Tinga, ex-atacante do Internacional de Porto Alegre, Campeão Brasileiro de 2005, algumas vezes aqui em Belo Horizonte. Três vezes para sermos exatos. Ele sempre a pé, eu de carro, ônibus ou chinelo. Por um desencontro de velocidades, portanto, apenas em uma dessas ocasiões pude apertar suas mãos, olhar em seus olhos e dizer-lhe a insofismável verdade: “Foi pênalti em você, Tinga”. Quando motorizado, o procedimento foi basicamente o mesmo: projetar moderadamente o tronco para fora da janela, inclinar o pescoço, levantar a cabeça até sentir as dobras de pele formarem-se na nuca e berrar – “Foi pênalti em você, Tinga!”. Confesso que aguardo ansiosamente pelo reencontro.

Imagino que eu não seja o único a lembrar-lhe obstinadamente da honrosa atuação do árbitro Márcio Rezende de Freitas naquele Corinthians e Inter, em 2005. Também desconheço – e prefiro que assim seja – se Tinga gosta ou deixa de gostar que lhe tragam esse fato à consciência. Possível que já tenha superado o trauma e que deseje esquecer o ocorrido. Felizmente, nem tudo na vida é questão de querer. Algumas coisas se impõem independentemente de nossas vontades. Para isso, fiquemos com a milenar sabedoria cristã: “Deus nunca nos dá um fardo maior do que possamos carregar” e vida que segue.

Bom, mas cheguemos ao ponto. Caso ali estivesse o “Video Assistant Referee”, o VAR ou árbitro de vídeo, em tradução livre, provável que corrigisse a marcação do juiz principal, dando o penal, expulsando o goleiro corinthiano Fábio Costa, possibilitando o gol da vitória e encaminhando o Colorado para o título, não apenas moral, mas de fato do Brasileirão. Porém, com o Inter em primeiro, seus adversários na Libertadores do ano seguinte seriam outros, o que poderia levar à uma precoce derrota no torneio, como aconteceu com o Corinthians, e ao “não-ser” o gol de Gabiru contra o Barcelona, na final do Mundial. Com os corações apaziguados, nem eu nem o Brasil teríamos a devida falta de apreço por Márcio Rezende ou a obsessão por Tinga, deixando sua fama restrita às terras gaúchas.

Leitores, nada melhor que o exercício da história contra-factual para percebemos as ambivalências da vida. Eis a maravilha do “se”! Mas quero deixar de lado essas questões para apresentar o argumento da minha oposição ao uso do juiz eletrônico. Antes que as almas pequenas concluam que por ser contra o VAR, deveria, por consequência, ser contra a camisa pra fora do short, dos cartões ou até mesmo do aportuguesamento de palavras do jogo, é necessário dizer que sua aplicação tem sido um sucesso. Foi assim na final do Campeonato Paulista desse ano e na Copa do Mundo da Rússia. Por ora, mais acertos que erros e nada que um pouco mais prática não resolva. Também o medo da demora excessiva no reinício das partidas após a interferência dos juízes de gabinete foi se dissipando.

Evidentemente, o VAR alterou a dinâmica do jogo, mas menos do que alardeado por alguns arautos do apocalipse futebolístico. Entretanto, se tomarmos como verdade que as obras humanas estão sempre em movimento, logo perceberemos que assim que um inconveniente é suprimido, outro surge em seu lugar. Para os que desejarem conhecer esses novos inconvenientes e ampliar o repertório de crítica ao VAR, sugiro fortemente os textos de Sérgio Settani Giglio (https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/o-var-faz-bem-para-o-futebol/) e Marcos Alvito (https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/geni-sou-eu-contra-o-arbitro-eletronico/ e https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/geni-tinha-razao-o-juiz-de-video-tambem-e-ladrao/).

Voadora de Fábio Costa que gerou a expulsão de Tinga por simulação
Voadora de Fábio Costa que gerou a expulsão de Tinga por simulação.

Adianto que as minhas observações serão de outra ordem. Pessoalmente, apesar da antipatia, não tenho problemas com a aplicação da tecnologia. Defenderei que há uma incompatibilidade, ou antes, uma incomensurabilidade ontológica entre o VAR e a civilização brasileira. Ou seja, elas são substancialmente diferentes e não podem se combinar. Está determinantemente excluída a possibilidade de síntese entre nós e o VAR, numa espécie de “se o Brasil permanece Brasil não aceita o VAR, se se aceita o VAR deixa de ser Brasil”.

Enquanto o árbitro metia a mão no Internacional, bailarinos e bailarinas do Grupo Corpo atiravam-se no palco do Palácio das Artes, em Beagá, na comemoração de 30 anos da companhia. A trilha sonora do espetáculo “Onqotô”, composta por Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, “estabelece uma sucessão de diálogos rítmicos, melódicos e poéticos em torno […] do sentimento de desamparo inerente à condição humana”. A dança, elaborada por Rodrigo Pederneiras, traz “verticalidade e horizontalidade, caos e ordenação, brusquidez e brandura, volume e escassez”. A iluminação, de Paulo Pederneiras, “imprime na cena” uma dinâmica “que remete à dos estádios de futebol”. E assim, o tema central de “Onqotô” – a “inexorável pequeneza do Homem diante da vastidão do Universo” – aparece aos olhos do espectador[1].

Manifestamente, a ideia para o balé surgiu de conversas de Caetano e Wisnik sobre a origem do Universo – de onde viemos e para onde vamos? O questionamento existencial por excelência – onqotô, pronqovô? Inevitavelmente tiveram de enfrentar a explosão primordial, o som demiúrgico: o Big Bang. Pois enfrentaram e chegaram à conclusão de que o nome dado à origem “tem a ver com expressões da cultura anglo-americana: o cinema e o “bangue-bangue”; a música e a “big band”, o tempo do império britânico e o Big Ben, a cultura de massa e o Big Mac”. Foi então que, contra a “aceitação dócil da expressão Big Bang como nomeação do início do universo”, uma vez que “o compromete com o império americano”, lembraram-se de Nelson Rodrigues e sua versão para o princípio de tudo:  “O Fla-Flu começou 40 minutos antes do nada”. Postularam, então, a seminal diferença das civilizações nascidas do “Big Bang” para aquelas originadas do “Fla-Flu”[2].

Dessa reflexão, surgiram duas músicas para “Onqotô”: Fla-Flu e Big Bang Bang. A primeira, que inclusive inaugura o espetáculo, ou seja, mimetiza a criação a partir do nada, reproduz sons cósmicos primordiais, longos sopros primitivos que se dilatam no espaço, ventos que espalham partículas de poeira no infinito, ruídos bruscamente interrompidos e que recomeçam, barulhos em constante movimento de atração e repulsão, sístole e diástole e sussurros dizendo “Fla… Flu…”, dando a impressão de uma dança em que as hélices que formam o DNA encontram-se e desencontram-se, subindo, descendo, nunca parando. “Fla… Flu…” preenche o ambiente, ecoa, contém o germe do mundo e prepara a vida futura. Para Caetano e Wisnik, na expressão “Fla-Flu”, “a sonoridade é mais mansa que a do Big Bang, sem deixar de conter o choque”.

Em Big Bang Bang, as teorias concorrentes sobre a criação do universo são reveladas na letra: “Se tudo começou no Big Bang / Tinha que acabar no Big Mac / Só tinha que acabar no Big Mac”. Dessa forma, a relação de necessidade entre aquela origem e este fim é um dado objetivo. O único sentido possível para a civilização criada a partir do Big Bang era, implacavelmente, o Big Mac, sem possibilidades de alterações no percurso, da ação do acaso. Diferentemente do modelo anglo-saxão, a música continua: “mas se a partida já estava começada / Quarenta minutos antes do nada / Então é Fla-Flu / Então é Maracanã lotado de pulsão / Demais! / E o sopro divino criador cantou Fla-Flu”. Assim, as nossas coisas foram criadas e as multidões despertadas. Uma sociedade aberta ao acaso, à contingência, ao imponderável. A pulsão que leva à violência e à festa. Ao invés da explosão, um sopro que canta. Enfim, algo bem diferente das sociedade marcadas pelo Big Bang, que, não nos esqueçamos, criou também o Basketball, cientificamente projetado em laboratórios de Massachusetts, com sua regularidade de movimentos, controle rígido do tempo e que “os acontecimentos são comprimidos de modo a quase serem, no limite, esgotados pelos números”[3].

Mas então, o que tudo isso tem a ver com o VAR? É de uma obviedade cristalina que o árbitro de vídeo insere-se na dinâmica dos avanços tecnológicos e traz consigo a crença na depuração das imperfeições do mundo via progresso científico. Aplicando-se a tecnologia ao caótico espaço do campo de futebol teríamos uma melhora, uma evolução, um progresso objetivo do jogo. Desempenho, precisão, exatidão, eficiência maximizados pelo controle do olho que tudo vê. Vincula-se claramente ao lado Big Bang da história cósmica, não à toa implementado antes no Basketball e na versão ampliada do Ping-Pong.

Sala do VAR: Palmeiras x Cruzeiro Semifinal da Copa do Brasil 2018. Foto CBF
Sala do VAR durante a partida entre Palmeiras x Cruzeiro pela Semifinal da Copa do Brasil 2018. Foto: CBF.

Do alto da torre, tudo é vigiado a todo instante por juízes limpos e cheirosos, distantes do som e da fúria, da força telúrica presente no contato dos corpos que se confrontam na planície verde. O VAR deixa o jogo transparente. Não é por acaso, que o povo brasileiro insiste no ato falho: “árbitro de vidro”. Por fim, o estádio é transformado em um palácio de cristal. Dostoiévski alertava para o perigo do palácio de vidro, metáfora para criticar o racionalismo ocidental. Esse lugar translúcido, em que tudo é visto e observado, fruto do homem novo, filho da era da razão, está repleto de sensatez, mas é “terrivelmente enfadonho”[4]. Além de enfadonho, disciplinador e padronizador de comportamentos, já que ausente qualquer tipo de privacidade.

A questão é: não há necessidade histórica ou cosmológica na introdução do VAR no futebol brasileiro. Simplesmente, poderia não ser adotado e o futebol seguiria. Veja, não estou dizendo que necessariamente, por conta do VAR, o jogo ficará pior. Apenas que sua oficialização veste a camisa de certo modelo civilizacional. Acredito que a civilização do “Fla-Flu”, tenha, ou tivesse, já que a batalha parece perdida, alternativas para enfrentar este padrão que é vendido como estágio último da evolução cósmico-futebolística. A “respiração fora do produtivismo sem trégua, a capacidade de comunicação entre lógicas múltiplas, e a leveza profunda”[5] contra a sedução causada pela ideia da redenção pela perfectibilidade tecnológica orientada por uma razão superior e definitiva. Sem o VAR, estamos mais próximos da pequenez humana que reconhece o imponderável e do balé do Grupo Corpo, mais próximos do desamparo do homem frente às coisas irrepetíveis do mundo e da sina de Tinga. Inclusive, mais próximos da extrema canalhice humana que recusa trilar um apito diante de uma penalidade máxima indiscutível e de Márcio Rezende, mais próximos da angústia e do pênalti que poderia ter sido e não foi e não será jamais.


[1] Citações retiradas de <http://www.grupocorpo.com.br/obras/onqoto#release>

[2] Citações retiradas de <https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u52552.shtml>

[3] WISNIK, José Miguel. Veneno-Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p, 111.

[4] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 38.

[5] WISNIK, José Miguel. Veneno-Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p, 430.

“Fla-Flu”: https://www.youtube.com/watch?v=IRgBxHm6w_s

“Big Bang Bang”: https://www.youtube.com/watch?v=3GxfROlMIkk

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Vinicius Garzón Tonet

Professor da Rede Estadual de Ensino, mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes - FULIA.

Como citar

TONET, Vinicius Garzon. Tinga, Fla-Flu e Grupo Corpo: reflexões contra o VAR. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 19, 2018.
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