100.1

¡Viva Cuba! Memórias (esportivas) do Socialismo

Wagner Xavier de Camargo 1 de outubro de 2017

O próximo dia 10 de outubro se comemora o dia de independência de Cuba, ou ao menos foi nessa data que, em 1868, eclodiu o primeiro movimento pela independência da ilha em relação aos espanhóis. Com uma história política conturbada durante o século XX, havia anos que Cuba não aparecia ostensivamente na mídia. Em fins de 2016, a morte de Fidel Castro, o líder revolucionário que implantou o socialismo na ilha, mudou esse quadro. O “Ícone da revolução”, como era conhecido, afastara-se do poder há cerca de uma década e falecera por complicações relativas à idade. O reaparecimento de Cuba nos noticiários devido à sua morte provocou em mim um efeito nostálgico. Durante dias me vieram à mente fatos relativos à sua história, ao sistema socialista, aos esportes, e tudo isso mobilizou memórias esportivas que me habitam há anos.

Quando ainda cursava o ensino médio fiquei fascinado pelo socialismo. Eram anos rebeldes (ao menos para mim), nos idos de meus 15 ou 16 anos, ainda no período final da Guerra Fria. Tive um professor de História, que igualmente ministrava as incipientes aulas de Sociologia, e que nos botava a todos para discutir as ideologias ainda em voga naquele mundo bipolarizado. Repartíamos a sala em dois grupos e, empolgados, esgarçávamos como podíamos as ideias, as consequências, os posicionamentos políticos, as opções e os problemas para uma sociedade ao ser ela “capitalista” ou “socialista”.

Para estudantes mais elitistas (conhecidos por nós como “riquinhos”), o capitalismo financeiro-monopolista defendido pelos Estados Unidos era a salvação do mundo: consumo, liberdade, democracia e, sobretudo, a ideologia do self made man, algo que fascinava adolescentes ávidos por descobrirem quais seriam suas carreiras futuras, as que os levariam ao “sucesso”. Para os demais, e aí me incluo num circunscrito grupo de um negro, uma obesa, um anão, muitas mulheres e, no mínimo, dois gays (que, naquela época, era subgrupo realmente minoritário), o socialismo implementado na ex-União Soviética (URSS), em Cuba e na China, representaria a busca por mais justiça, igualdade social entre as pessoas (era assim que nomeávamos nosso desejo de igualdade de gênero, por exemplo), equiparação econômica e representação de coletividade.

Não demorou muito para que nossa ingenuidade fosse abalada por fatos históricos desencadeados nos anos 1990. Primeiro a derrubada do Muro de Berlim, ainda em 1989, que expôs as agruras em que vivia a população da porção oriental e socialista da capital alemã; depois a espantosa reunificação da Alemanha, um país dividido pelas ideologias capitalista e socialista, que mostrou ao mundo a inviabilidade da continuidade da bipolaridade; e, por fim, a derrocada da URSS em 1991 e a implosão do socialismo na maior nação do planeta.

Como fã de esportes, além de esperar cada edição olímpica com muita ansiedade, acompanhava medalha a medalha a disputa entre nações socialistas e capitalistas. Cada reviravolta no quadro de medalhas era motivo de debates, análises, brigas e demarcação de posição. Apesar do ruir do socialismo, eu e um bando de colegas antiamericanos torcíamos pelas medalhas de países ex-membros da URSS, de Cuba, da China e de nações africanas.

Particularmente uma edição olímpica que me reaviva a memória é a de Barcelona, em 1992. Com o fim da URSS em 1991, algumas ex-repúblicas que compunham o país (exceto Lituânia, Estônia e Letônia) participaram dos Jogos Olímpicos de Verão de Barcelona como “Equipe Unificada” da Comunidade dos Estados Independentes (CEI). A CEI, como era por nós brasileiros chamada, ficou em primeiro lugar no quadro de medalhas em sua primeira e única participação num evento olímpico. Ao todo foram conquistadas 112 medalhas, sendo 45 de ouro, 38 de prata e 29 de bronze. O feito não se repetiu nas edições seguintes, pois as ex-repúblicas passaram a competir em separado.

uchida_cuban_football_3_1050
Carro com o escudo do Barcelona FC. Foto: Gabriel Uchida.

Vidrado na TV, vibrei, comemorei e me emocionei com muitos momentos dos Jogos de Barcelona. Lembro-me vivamente do ginasta Vitaly Scherbo, na época representante do país recém-independente chamado Bielo-Rússia, ter conquistado seis medalhas de ouro nos aparelhos na ginástica artística (quatro delas em um só dia). Javier Sotomayor, outro ídolo pessoal e atleta cubano, um dos maiores saltadores em altura de todos os tempos, tornou-se campeão da prova naqueles Jogos. Cuba, que já havia feito uma excelente campanha nos Jogos Olímpicos de Verão de Moscou, em 1980, terminou as competições em Barcelona em 5º lugar no quadro geral de medalhas, com um total de 31 (14 de ouro, 6 de prata e 11 de bronze). Surpreendentemente, o Brasil ganha o primeiro ouro em esportes coletivos da história no voleibol masculino, esporte na época em ascensão no país.

Até aquele momento, e com a internet apenas engatinhando, informações corriam lentamente. As fontes primordiais eram a televisão e os jornais impressos. O socialismo sucumbira, mas se acreditava numa reviravolta, pois o capitalismo não podia reinar soberano! Afinal, as conquistas esportivas diziam muito e nos contavam sobre o esporte como um direito social e coletivo, universalizado e pertencente a todos os indivíduos nas nações socialistas. As demonstrações de supremacia de atletas que vinham desses regimes “coletivos” eram para mim a maior prova de que política e esportes andavam juntos. A própria vitalidade de Fidel Castro, dirigente-mor de Cuba e ex-multiatleta de boxe, judô e beisebol, mostrava sinais de que haveria uma reviravolta, por cima, talvez vinda das próprias entranhas do continente americano.  Assim acreditava eu, um (ainda) incipiente estudante de Ciências Sociais.

Logo as informações foram se disseminando. As mazelas dos regimes implantados em Cuba, nas repúblicas soviéticas e mesmo na China vinham à tona e mostravam que, se por um lado houvera uma tentativa de igualdade social, ampliação dos direitos à saúde e diminuição do analfabetismo (com ampliação do acesso à educação), esses países tinham economias mal estruturadas, com grande contingente de população rural e com um grupo de dirigentes autoritários vivendo em estilo “burguês”, aproveitando a vida e viajando, enquanto seus concidadãos permaneciam chafurdando na pobreza. O pior disso tudo para mim era assistir no noticiário a deserção de muitos atletas em eventos esportivos de grande porte. Particularmente esportistas cubanos queriam viver fora de seu país, praticando seus esportes de modo “mais profissional”, buscando “melhores condições de vida” e “ganhando mais” por isso. A máscara caía; minhas desilusões aumentavam; uma angústia me invadia. Na boca, um gosto amargo de fel apareceu e se faz presente até hoje.

Apesar de tudo, os resultados esportivos da pequena ilha incrustada no mar do Caribe surpreendem: aos brasileiros, por Cuba acumular mais medalhas do que nós em toda nossa história (atualmente conta com 220 medalhas contra 108 brasileiras); ao mundo, pois sempre ficou a indagação sobre como naquela ilha poderia haver excelência no desempenho esportivo se o esporte era tratado como “amador” por Fidel, se a população era “arrochada” pelo governo e se a economia nacional sofria com boicotes no mercado financeiro global; e aos próprios cubanos, que apesar disso tudo, ainda conseguiam ver sua bandeira tremular e o hino ser entoado em algumas modalidades nas edições olímpicas.

uchida_cuban_football_7_1050
Che Guevara em outdoor do estádio. Foto: Gabriel Uchida.

A morte de Fidel é sintomática do fim de uma era. Talvez seja o enterro definitivo do socialismo e de suas ideologias (ou pelo menos ideias e práticas implantadas a partir da “releitura” executada pelo líder revolucionário). Cuba participará, logo mais, de múltiplas transações financeiras na era da globalização do capital pós-industrial. Receberá investimentos, ainda mais turismo, linhas aéreas. Não se trata do “fim da história” como outrora profetizou o historiador Francis Fukuyama, mas é o estrebuchar final de um ente moribundo, seja na política (pois parece que a ilha passará a figurar como mais uma economia de mercado dentre tantas, sob o interesse do capital circulante, ou mesmo como paraíso fiscal), ou seja no esporte (com a constante perda de colocação no quadro de medalhas nos últimos anos, diminuição de marcas expressivas e recordes, ou mesmo com a redução de participação de atletas cubanos em Jogos Olímpicos).

Para mim, que acreditava nas prerrogativas (futuras) de um sistema comunista de fato, de ampla igualdade social e de gênero, em que a maioria pudesse comandar seu rumo e o Estado se dissolveria quando entendesse oportuno, não há luz no fim do túnel. Talvez de todos os dias “10 de outubro” de sua história, esse próximo é o do lamento em relação ao porvir. Mais do que nunca, Cuba precisa se reinventar, na política, na história, nos esportes, na geografia!

Agradeço, especialmente, a Alexandre Vaz pela leitura e pelos comentários na primeira versão desse texto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 13 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. ¡Viva Cuba! Memórias (esportivas) do Socialismo. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 1, 2017.
Leia também:
  • 162.18

    Para além da Copa: Mbappé e seu modelo alternativo de masculinidade

    Wagner Xavier de Camargo
  • 162.3

    Deserotizando o futebol, aniquilando desejos: o Catar em tempos de Copa

    Wagner Xavier de Camargo
  • 161.20

    Flávio de Carvalho: de entusiasta modernista a estilista futebolístico

    Wagner Xavier de Camargo