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Neymar e a Relíquia

José Carlos Marques 10 de agosto de 2017

Como o leitor já há de saber, Neymar Jr. transferiu-se neste mês de agosto para o Paris Saint-Germain (PSG), após o pagamento da multa rescisória de 222 milhões de euros estipulada pelo Barcelona. Tal montante representou o maior valor já pago na história por um futebolista, mais que o dobro do que havia sido pago pelo Manchester United à Juventus pela contratação do francês Paul Pogba (105 milhões de euros em 2016), até então a transação mais cara já registrada no futebol mundial.

Sobre as questões mercadológicas e capitalistas que envolvem a transferência do jogador brasileiro, Sérgio Giglio, aqui mesmo no Ludopédio, já ofereceu insinuantes propostas de leitura a respeito deste fenômeno [“Neymar e o (novo) capitalismo selvagem”]. Outra contribuição importante para compreendermos o que está em jogo tem a ver com o significado geopolítico do Catar, país de onde saiu o dinheiro que permitiu a contratação de Neymar Jr. pelo PSG. Neste caso, o texto de Emanuel Leite Jr. é por si só necessário e elucidativo [“Geopolítica e futebol: Neymar no PSG e o soft power do Catar”].

Paris 05/08/2017 O novo atacante parisiense Neymar Jr. foi apresentado neste sábado (5) ao público do Parc des Princes, poucos minutos antes do pontapé inicial do jogo de estreia nesta Ligue 1 contra o Amiens. Foto C.Gavelle/PSG
Neymar já está em sua nova casa. O atacante foi apresentado oficialmente como jogador do Paris Saint-Germain ao lado do presidente da equipe, Nasser Al-Khelaifi. Foto: C.Gavelle/PSG.

Estas breves considerações permitem-nos lembrar do romance “A Relíquia”, publicado pelo renomado escritor português Eça de Queirós em 1887. A trama do livro gira em torno de Teodorico Raposo, personagem fanfarrão que se aproxima de sua tia rica e religiosa a fim de herdar a generosa fortuna da senhora. Para obter êxito no seu propósito, o Raposão finge ser igualmente devoto, tentando seduzir a tia para ficar com a herança. Nesse projeto de fingir sua carolice, Teodorico viaja à Terra Santa, a fim de seguir os passos trilhados por Jesus Cristo. (Atenção: os dois próximos parágrafos contêm spoiler sobre o romance!)

Após uma viagem caracterizada por momentos repletos de farra e orgia, Raposo retorna a Portugal com uma preciosidade a ser entregue à “Titi”: a coroa de espinhos usada por Cristo (forjada, entretanto, pelo próprio Raposo durante a viagem de retorno). Uma atrapalhada troca de embrulhos, porém, faz com que Raposo entregue à tia um outro pacote, contendo uma camisola com as iniciais MM (de Miss Mary), uma prostituta que conhecera durante a viagem a Jerusalém.

Raposo é deserdado pela tia assim que a abertura do pacote mostra uma peça de vestuário feminina, em vez da coroa de espinhos com a qual Cristo havia sido pendurado na cruz. Mais tarde, ele avaliará que a perda de herança da ‘Titi” deveu-se à falta de coragem e de espírito para dizer que a camisa que ele trouxera era a verdadeira “relíquia”: a camisa que pertencera a Maria Madalena, fazendo alusão, portanto, às iniciais “MM”.

O Barcelona, neste affaire com Neymar, parece a velha tia de Teodorico Raposo: fica preso a dogmas que “inventaram sua tradição”, como a de ser um clube formador de atletas e a de ter resistido tanto tempo sem macular seu manto sagrado com patrocínios na camisa. Ao saber da “traição” de Neymar, logo procurou amaldiçoar o rapaz, chamando-o de mercenário, ingrato, falso etc. Esquecem-se os torcedores do Barça que o próprio clube, que rejeita a Espanha em nome da afirmação da Catalunha, recebeu por anos o dinheiro do próprio governo do Qatar, por meio da Qatar Airways, que estampava o patrocínio máster em sua camisa. Esquecem-se ainda que o Barcelona, em 2013 e 2014, pagou 164 milhões de euros para contratar o mesmo Neymar (junto ao Santos) e o uruguaio Luis Suárez (junto ao Liverpool) – a sexta e a sétima maiores transações de jogadores na história.

Neymar, como qualquer jogador de futebol, está livre para atuar pelo clube que desejar, desde que contratos sejam cumpridos e respeitados. É vexatória a postura do Barcelona (dirigentes e torcedores) de querer incriminar o jogador brasileiro e de dificultar sua transferência para o futebol francês. Tal qual a “Titi” do romance queirosiano, o clube só resmunga para desviar a atenção sobre o fato de que ele também é movido a práticas duvidosas, como a parceria com os fundos do Qatar – os mesmos fundos que foram capazes de levar Neymar para Paris e de garantir a realização a Copa do Mundo de 2022 no próprio país.

Paris 05/08/2017 O novo atacante parisiense Neymar Jr. foi apresentado neste sábado (5) ao público do Parc des Princes, poucos minutos antes do pontapé inicial do jogo de estreia nesta Ligue 1 contra o Amiens. Foto C.Gavelle/PSG
O novo atacante parisiense Neymar Jr. foi apresentado neste sábado (5) ao público do Parc des Princes, poucos minutos antes do pontapé inicial do jogo de estreia nesta Ligue 1 contra o Amiens. Foto: C.Gavelle/PSG.

O papel de Teodorico Raposo, por sua vez, cai bem ao PSG, clube cuja riqueza nos faz duvidar da fonte limpa de seus recursos. Não fosse o interesse multimilionário de investidores do Qatar, o clube parisiense estaria restrito a sua pequena representatividade dentro do futebol europeu. Falta-lhe tradição e capital simbólico, como ocorre em maior grau, por exemplo, com o Olympique de Marseille, na França, e com quase uma dezena de clubes espalhados pela Espanha, Itália, Inglaterra e Alemanha.

O novo-riquismo do PSG, status sonhado por Teodorico Raposo, mostra de maneira muita perversa a nova face do futebol mundial: a compra assumida ou dissimulada de clubes europeus por magnatas e fundos de investimentos, quase todos originários do mundo do petróleo, fazendo de tais compras uma forma lúdica de branqueamento de capitais. Com tantas “Titis” para financiar a esbórnia na Europa, sempre surge um clube endividado para se tornar presa fácil do poder dos petrodólares.

A aposta do PSG é ousada: depois de tentar ganhar protagonismo nos últimos anos com a aquisição de diferentes astros multinacionais (como os casos dos brasileiros Lucas, Thiago Silva e David Luiz, do argentino Di María, do uruguaio Cavani e do sueco Ibrahimovic), o clube financiado pelos fundos catarianos quer aceder agora ao panteão dos vencedores. Para tanto Neymar parece ser a pessoa certa no lugar certo.

Tão novo-rico como o próprio PSG, é capaz que Neymar encontre no clube parisiense o espaço que jamais poderia almejar no Barcelona, seja pela presença de Messi no time, seja pelo fato de não ter sido criado pelo emblema catalão. Falta sabermos se, em Paris, Neymar será a relíquia imaginada originalmente por Teodorico Raposo (a coroa de espinhos usada por Cristo), ou se será o presente real que acabou sendo entregue por ele à sua tia (a camisola de Miss Mary).

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Carlos Marques

José Carlos Marques é Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru) e integra o Departamento de Ciências Humanas da mesma instituição. É Livre-Docente em Comunicação e Esporte pela Unesp, Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciou-se em Letras (Português Francês) pela Universidade de São Paulo. É autor do livro O futebol em Nelson Rodrigues (São Paulo, Educ/Fapesp, 2000) e de diversos artigos em que discute as relações entre comunicação e esporte. É líder do GECEF (Grupo de Estudos em Comunicação Esportiva e Futebol) e integrante do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e modalidades Lúdicas).

Como citar

MARQUES, José Carlos. Neymar e a Relíquia. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 11, 2017.
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