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“Se fosse bom tava na Europa”

Leo Lepri 2 de fevereiro de 2020

Por que promessas e até jogadores argentinos com a carreira consolidada não vingam no Brasil? E por que desconhecidos acabam dando certo?

Conca. Foto: Photocamera.

O ano é 2007, e o Vasco da Gama decide trazer um camisa 10 argentino. Com início nas categorias de base do Tigre, passou pelo River Plate, mas decidiu partir de Núñez por entender que não haveria espaço para ele no time comandado por Leonardo Astrada. Foi para o Chile, na Universidad Católica, onde alcançou relativo sucesso. Antes de chegar ao Rio, passou rapidamente pelo Rosario Central. Foram apenas seis meses, que nem de longe lembraram o jogador campeão do outro lado da Cordilheira. Também não teve sorte: em Rosario encontrou-se outra vez com Leonardo Astrada — e quem já havia desistido dele antes tornou a desistir depois.

Por isso, quando desembarcou no aeroporto Santos Dumont, trazia mais dúvidas do que certezas. A esperança e o sorriso eram quase obrigatórios, já que era a grande contratação da temporada. O tempo passou e os anos de sucesso no Brasil provaram: quem apostou em Conca não estava errado. Ainda que ele permanecesse, e por muito tempo ainda seria assim, sem ser reconhecido em foto, ou que ao menos alguém soubesse seu nome na Argentina.

Alejandro Wall, argentino, jornalista de El Tiempo Argentino e autor dos livros “¡Academia, carajo!” e “Corbatta: El wing

Mas o que faz jogadores argentinos desconhecidos no próprio país darem certo no Brasil? E o que faz jogadores promissores não vingarem? O futebol brasileiro é mais fácil para um volante “tipo rioplatense”, ou para um camisa dez habilidoso? Como explicar ?

André Hernan, brasileiro, jornalista Sportv / TV Globo

Em 2007 Conca era apenas um dos oito argentinos que participaram do Campeonato Brasileiro. Oito!

Para medir a megalomania que se tornou possuir um estrangeiro no elenco, o Brasileirão serve como marca evidente dessa revolução. Com a constante desvalorização das moedas vizinhas frente a um real cada vez mais forte, o mercado sul-americano tornou-se uma alternativa possível — fornecendo mão de obra boa e barata — para repor aquilo que os europeus, árabes e, de uns anos pra cá, até os chineses saqueiam, levando cada pepita de talento surgida em verdes campos tupiniquins.

Os argentinos, de forma específica, representam a maioria dos jogadores forasteiros atuando no Brasil. Essa moda não é necessariamente nova e, como qualquer moda, é cíclica e se reinventa. Há muito eles estão aqui — porém, essa invasão como promessa de solução para todos os problemas do seu time é uma novidade recente.

Dario Conca, por exemplo: em um espaço curto de tempo — apenas três anos — foi vice-campeão da Libertadores, esteve na arrancada histórica contra o rebaixamento em 2009 e foi campeão brasileiro do ano seguinte sendo eleito o melhor jogador da competição. No Brasil, Conca se vestiu de ídolo e foi muito além do que a carreira, consideravelmente tímida até então, prometia. Talvez, em silêncio e apenas para si, ele tenha dedicado tudo a Leo Astrada. Mas isso nós nunca saberemos.

O Brasileirão de 2007 tinha cinco times (ou 25% dos participantes) sem um estrangeiro sequer no plantel. Dez anos depois, no campeonato do ano passado, apenas o modesto Atlético-GO não contava com “gringo” no elenco.

Quantidade de jogadores argentinos que participaram do Brasileirão entre 2007 e 2017.

Analisando os números, também fica difícil de entender quais os motivos que minam oportunidades aos técnicos de um país tão acostumado a revelar bons nomes para o banco.

As diferentes escolas argentinas de treinadores trazem fornadas de qualidade para as principais ligas do mundo da bola. Só que entre 2007 e 2017 — onze temporadas — apenas dois técnicos argentinos vieram treinar clubes da primeira divisão: Ricardo Gareca no Palmeiras de 2014 e Edgardo Patón Bauza no São Paulo de 2016, ambos severamente criticados pela imprensa brasileira pela predileção a compatriotas na hora de reforçar seus times.

Bauza foi semifinalista da Libertadores e muito questionado no São Paulo. Foto: Leo Lepri.

Os clubes utilizam as competições internacionais (Libertadores e Sul-Americana) como laboratórios, balões de ensaio para se encontrarem com o futebol que também acontece por aí.

E foi justamente em uma dessas esquinas que o Internacional descobriu uma solução que se provaria duradoura para seu meio de campo. Na Libertadores de 2006, antes de ser campeão, o Colorado precisou passar pelo Libertad e por um argentino que “entrava para matar e para vencer”.

“Há um futebol sul-americano, mas existe principalmente um futebol rioplatense.“
(Alejandro Wall)

Durante muitos anos os times brasileiros buscaram pelo tal estereótipo rioplatense de jogador, definido pelo jornalista Alejandro Wall. Vasculharam o mercado sul-americano atrás daquilo que representasse o típico DNA mais ao sul do continente: raçudo, voluntarioso, dedicado.

Um trabalho para suprir aquilo que a produção nacional não costuma oferecer, dizem. Ou, talvez, uma forma de equilibrar o elenco com aquilo que os nossos vizinhos têm de melhor.

Trazer argentinos e uruguaios fortalecia os elencos dos times brasileiros nessas disputas continentais, atrás do sonho de uma Libertadores própria. Alguns vieram antes e serviram como avalistas dos que chegaram depois. O próprio Conca só foi ao Vasco quando o zagueiro Emiliano Dudar passou pelo crivo da torcida cruzmaltina.

Claro que outros argentinos de posições ofensivas atuaram no Brasil, mas essa proporção é muito maior agora. Antes goleiros, zagueiros, laterais e volantes representavam maioria, hoje os que chegam já não ficam mais restritos aos insucessos do que acontece no latifúndio lá de trás. E, assim como aconteceu com Dudar e Conca no Vasco, o Internacional só foi descobrir D’Alessandro depois de se encantar com Cholo Guinazú.

 

Curiosamente (ou não) a dupla Gre-Nal foi quem mais levou argentinos para o futebol brasileiro. O Internacional, disparado em primeiro, e o Grêmio, empatado com Flamengo e Cruzeiro, na segunda posição.

É bem verdade que o Inter teve sorte. Encontrou dois ídolos em anos consecutivos: Guinazú chegou em 2007 e D’Alessandro em 2008. Mas também é verdadeira a coleção de decepções: Abbondanzieri, que tinha ganhado tudo com o Boca, Cavenaghi, que tinha ganhado tudo com o River, Scocco, talento do Newell’s semifinalista da Libertadores e que hoje brilha no Millonario…

Times que mais contaram jogadores argentinos nos Brasileiros entre 2007 e 2017.

Foi o Internacional o clube que colocou Jesus Dátolo no radar do futebol brasileiro em 2012. Dátolo foi tão bem no Brasil que se tornou um destes que vão ficando, pulando de time para time, antes de retornar ao próprio país.

Foto: Bruno Cantini/Atlético MG.

“Eu fui pra lá e tive que colocar, além do meu jogo, também a raça que diferencia o argentino do brasileiro. Na minha opinião, o argentino tem um pouquinho mais de raça. Mas eu amo o futebol brasileiro. Gostei muito de ter jogado lá e sonho em voltar.“
(Dátolo)

Para o jornalista Alejandro Wall, essa mística citada por Dátolo não resume o futebol que é jogado na banda ocidental do rio da Prata e tampouco representa a forma como gostaria que o futebol argentino fosse visto mundo afora.

Para Wall, o argentino não deseja esse estereótipo rioplatense, ainda que as características de raça e entrega sejam partes dissociáveis da região. O jogador argentino quer ser visto como uma espécie de híbrido, um meio termo entre a vontade e o talento.

Entre Burritos e Piratas

Aos poucos a camisa 10, antes reservada ao talento genuinamente brasileiro, passou a caber também neles: argentinos, uruguaios, colombianos…

Junto vieram interessantes descobertas de bons camisas 9. Outras nem tanto. “Diferente do que a gente via antes, aquela coisa da raça, do lateral, do zagueiro, do volante, agora o mercado está aberto para novos talentos também. Há uma falta muito grande de camisa nove no futebol brasileiro, uma carência de camisa dez, e aí começamos a olhar com mais carinho para esse mercado” diz André Hernan.

Revista Placar, outubro de 2007.

E foi justamente isso que levou os clubes brasileiros recorrerem ao mercado sul-americano, exigindo grandes containers de craques, enormes demandas de jogadores de qualquer posição. Parecia que cada clube precisava ter um estrangeiro no elenco sem que, necessariamente, tenha sido estudado, testado e comprovado de que o “novo craque” realmente era a promessa que se estava procurando.

Defederico no Corinthians. Sambueza no Flamengo. Cañete no São Paulo. Mouche no Palmeiras. Pisano no Cruzeiro. Mugni no Flamengo… a lista é extensa e até certo grau de parentesco endossava o reforço.

Não faltaram os protagonistas que desembarcaram trazendo consigo o status de “substituto de Riquelme”, ou “novo Messi”. Pode fazer um exercício de memória, torcedor. Certamente seu time já teve algum argentino que decepcionou nos últimos anos. E, se tiver sorte, provavelmente teve algum que chegou tapado sob o véu da desconfiança e se revelou mais valioso do que aparentava ser.

Foi pensando nessas discrepâncias, nestes casos sem explicação lógica, que o Puntero mostrou a foto de alguns jogadores a um jornalista argentino e a um brasileiro para que ambos opinassem sobre as qualidades e as trajetórias, de acordo com o que viram no futebol onde trabalham.

 

Entre estas apostas e decepções, o Brasileirão de 2012 foi sintomático: 75% dos times que disputaram o campeonato tinham pelo menos um argentino no plantel.

Também foi o ano que marcou a chegada de Burrito Martínez no Corinthians e Hernán Barcos no Palmeiras. O primeiro tinha se destacado no Vélez Sarsfield organizado e de bom jogo engenhado por Ricardo Gareca. Era pretendido por outros clubes, mas o Corinthians ganhou o braço de ferro financeiro. Já o segundo, apesar do bom futebol na LDU, nunca conseguiu se firmar na Argentina.

 

Barcos saiu do Brasil como o maior artilheiro estrangeiro do Grêmio, com 45 gols — superando Oberti, que atuou no tricolor entre 1972 e 1974, anotando 35 tentos. Entre tantas dúvidas, uma coisa parece certa: não há espaço para todos no futebol argentino.

Finalmente um ponto em comum entre os que analisam futebol.

Sem lugar, muitos preferem sair, se arriscar e acabaram encontrando a sorte longe de casa.

Então dois clichês se mostram realmente verdadeiros e ajudam a explicar estes curiosos casos de fracassos inesperados e sucessos inéditos.

Futebol versus Fútbol

Argentinos Juniors

“Às vezes nós somos muito estruturados e eles (brasileiros) têm essa forma de jogar bola, ainda se divertem dentro de campo. Em alguns momentos é possível vê-los felizes. Mesmo com a pressão da torcida, com toda a pressão ao redor, dentro de campo eles são desestruturados no sentido de pegar a bola e inventar alguma coisa diferente. E aqui, na Argentina, tudo é com muito mais pressão. Eu gostaria que tivéssemos isso no futebol daqui, de jogar bola e não ser tão estruturados.”
(Pisculichi)

 

Os argentinos enxergam o brasileiro tal qual nós imaginamos, ou pelo menos gostaríamos de ser vistos: aquela coisa do futebol bem jogado, do improviso, de um drible que desmonta toda uma defesa e, junto com ela, um esquema tático retranqueiro.

A sensação dos jogadores que passaram por Brasil e Argentina reforça o outro clichê sul-americano, só que desta vez sobre o futebol argento: pegado!

“Sim, o futebol aqui é mais rápido e não tem muito espaço como no Brasil. Eu consegui me destacar lá por causa disso. E também acho que o futebol está um pouco melhor lá do que aqui, né? “
(Dátolo)

Seria então esse o segredo do sucesso de Conca? Existe, no Brasil, mais espaço, mais tempo para o jogador ser individualmente talentoso?

Pisculichi: um argentino cá

Pisculichi é um dez clássico. Ganhou até frase especial graças às constantes atuações pelo River Plate campeão de tudo com Marcelo Gallardo: “Pero que viva el fútbol, Pisculichi!”.

“Ele se tornou o estandarte daquele time, dando organização de jogo, bons arremates de fora da área, oportunidades em bola parada também. É um destes jogadores diferenciados, que podem dar identidade a um time e, neste caso, deu sua identidade ao River” classificou Alejandro Wall.

Depois de uma passagem rápida pelo Vitória, onde não foi bem e conviveu com lesões, Piscu voltou ao futebol argentino e ao Argentinos Juniors. Sobre as dificuldades e diferenças que encontrou no Brasil e Argentina, destacou a preparação física como algo que distancia o futebol praticado entre os vizinhos.

 

Mosquito: um brasileiro lá

Mosquito é o inverso. Apareceu como joia rara no Vasco e despontou nas seleções de base. Foi campeão, artilheiro e pretendido por clubes importantes no Brasil. De repente a carreira enveredou por caminhos e escolhas que não correspondiam às expectativas que jornalistas e torcedores imaginavam.

Hoje ele está no Arsenal de Sarandí a pedido do ex-técnico Humberto Grondona, o Humbertito, filho de Julio Grondona, ex-presidente da AFA e vice da FIFA, falecido em 2014.

Mosquito é o único brasileiro disputando o campeonato argentino, e com a propriedade de quem já correu o futebol por aí, ele desfigura a imagem de jogadores argentinos exclusivamente voluntariosos.

“O futebol argentino é um futebol com muito menos espaço para jogar, muito mais fechado, o que leva a essa crença de que é mais rápido. Na verdade o futebol argentino é mais rápido porque você precisa resolver imediatamente. O que a maioria dos times propõem é cortar caminhos, não oferecer espaços, o que não significa que seja melhor e nem que seja mais preciso. Talvez, no futebol argentino, são necessários menos passes para se resolver uma jogada.”
(Alejandro Wall)

Ricardo Centurión foi o destaque do futebol local em 2014. Campeão com o Racing, com toda a dificuldade que isso implica, transferiu-se para o São Paulo com o status de estrela mesmo sendo jovem para tal.

Começou bem, parecia confortável no Brasil. Muitos, inclusive Wall, acreditavam ser o futebol mais adequado ao seu estilo de jogo. Habilidoso, era de confiança do colombiano Juan Osorio e depois foi também de Patón Bauza, quem apostou nele à exaustão.

Centurión passou a se envolver em escândalos e problemas extra-campo que prejudicavam sua carreira. Com a saída de Bauza, perdeu também seu mais fiel defensor dentro do clube. Foi questão de tempo até o argentino ser relegado pelo Tricolor.

 

Voltou para Argentina, dessa vez para o Boca Juniors, e foi muito bem. Herdou a camisa 10 de Tevez, foi campeão argentino e recebeu elogios de imprensa e torcida, que pedia para ele permanecer no clube. Também colecionou problemas em Buenos Aires. Deixou a Bombonera após uma briga pública com o presidente do Boca. E apesar disso, durante esta janela de transferências, Guillermo Barros Schelotto, técnico xeneize, fez força para trazê-lo de volta. Não deu.

O caso de Centurión serve como disparador para o segundo principal, e também clichê, problema para o insucesso dos argentinos no Brasil.

Adaptação

 

Aqui, o segundo clichê. Pode parecer muleta, desculpa pronta para um futebol que não aparece, para um jogador que não dá certo, mas a “adaptação” é algo que precisa ser levado muito mais a sério do que a paciência do torcedor consegue suportar.

“Você pode pensar que o futebol brasileiro deveria ser mais simples para adaptação, entretanto não é uma casualidade que não apenas o futebol mas também outras coisas da cultura brasileira são tão diferentes do resto da América do Sul. Uns foram colonizados por espanhóis, outros pelos portugueses, há culturas absolutamente diferentes, o idioma é diferente e eu acho que as escolas futebolísticas também foram diferentes”
(Alejandro Wall)

André Hernan reforça a importância do jogador se esforçar em aprender o idioma e sobre a cultura local.

“Cada time brasileiro tem um, dois argentinos ou um jogador da América do Sul. E aí acaba virando uma panela pro cara. Ele faz uma parceria e esquece do resto. Se chega sozinho, como grande contratação, quando a coisa começa a dar errado, os próprios companheiros de time torcem o nariz, tipo; ‘Esse gringo aí… esse gringo aí não é de nada’. Vai depender da cabeça do jogador e, infelizmente, a gente deixa de ver o jeito que ele joga por causa de alguns detalhes. Muitas vezes o próprio jogador não está aberto a isso”.

Leitura de jogo e idioma. É o que defende Alejandro Wall para determinar, de certa forma, a passagem do argentino pelo Brasil. Para Wall, existem muitos casos que confirmam este caminho como o de sucesso.

 

Enfim, o debate está posto. Qual argentino o seu time está trazendo, ou frustrado por não trazer, para a temporada que se aproxima? Veremos em qual prateleira ele será colocado tão logo se mostrar algo entre um Maradona e um refugo qualquer, um Riquelme, um novo Messi e um brucutu.

Fato é que vão chover explicações…


Publicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018, que é uma revista digital de publicação de histórias de futebol.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leonardo Lepri Ferro

Jornalista e paulistano, toco o Puntero Izquierdo ao lado de amigos, e também falo sobre futebol e cultura sul-americana no blog Latinoamérica Fútbol Club.

Como citar

LEPRI, Leo. “Se fosse bom tava na Europa”. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 2, 2020.
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