Saint Louis 1904 – Estados Unidos: uma jovem potência em sua estreia como sede Olímpica
Racismo, concentração de riqueza, imperialismo e progresso econômico resumem o que eram os Estados Unidos em 1904, ano da Exposição Internacional da Compra da Louisiana (Louisiana Purchase Exposition), um megaevento que ocupou uma área de quase 5 km² em dois lugares distintos de Saint Louis: o Forest Park e a Universidade Washington. Para que a Expo 1904 acontecesse, foi necessário captar 15 milhões de dólares: um terço foi arrecadado com o apurado da venda de passagens de bonde na cidade; outro terço veio de doações de empresários e cidadãos do estado do Missouri; e os demais 5 milhões de dólares vieram de um fundo governamental aprovado pelo Congresso norte-americano em maio de 1900, com o apoio do então presidente William McKinley.
A exposição foi aberta no dia 30 de abril de 1904. O presidente Theodore Roosevelt abriu o evento via telégrafo, uma invenção originalmente britânica, mas que foi aperfeiçoada pelo norte-americano Samuel Morse, criador do código telegráfico de mesmo nome, utilizado largamente até os dias atuais. Roosevelt, porém, só compareceu à exposição de Saint Louis em novembro, após vencer as eleições presidenciais daquele ano contra o democrata Alton Parker, com 336 delegados no Colégio Eleitoral contra 140. A fácil reeleição de Roosevelt se deveu à sua luta contra os monopólios empresariais e à sua agressiva e ambiciosa política imperialista de relações exteriores, que implicou, por exemplo, uma presença maior dos Estados Unidos na América Latina – especialmente após a influência que o presidente norte-americano exerceu sobre rebeldes do Panamá para que esse país se tornasse independente da Colômbia, o que acabou facilitando a pretensão de Roosevelt de assumir o controle das obras de construção do Canal do Panamá, que, afinal, permaneceu controlado pelos Estados Unidos até 1977, quando o canal foi cedido ao governo panamenho.
Era de interesse de Roosevelt que a Expo 1904 fosse um sucesso e, de fato, o foi. Ao longo de mais de sete meses (até 1º de dezembro), quase 20 milhões de pessoas visitaram os estandes montados por 43 estados norte-americanos e 62 países (incluindo aí os próprios Estados Unidos, cujo governo federal também tinha seu estande) e conferiram as novidades tecnológicas da época, como o telégrafo sem fio, o teleautógrafo (precursor do fax), a máquina de raio-X, a incubadora infantil, o bonde elétrico e 140 modelos diversos de automóveis (incluindo o célebre modelo Ford-T, que, no Brasil, ficou conhecido como Ford “Bigode”). Outra grande novidade foi o primeiro concurso de aviação de que se tem notícia, o que daria a Saint Louis o apelido de Flight City (Cidade Voadora). No espaço da exposição, também eram mostradas inovações arquitetônicas e, nas praças de alimentação, os visitantes poderiam degustar novidades da culinária como o sorvete de casquinha, o hambúrguer e o cachorro-quente. A entrada da exposição era franca, mas algumas atrações do evento eram pagas: para conferir a incubadora infantil, por exemplo, o preço era 25 centavos de dólar; o ingresso para uma tourada custava um dólar; e a entrada para assistir a uma encenação ao ar livre da Segunda Guerra dos Bôeres – que ocorrera entre 1899 e 1902, opusera a Grã-Bretanha e o Estado Livre de Orange e acontecera em território da atual África do Sul – custava 25 centavos de dólar a cadeira e um dólar o camarote. Predominavam entre os visitantes homens e mulheres brancos, muito bem trajados com seus fraques e cartolas, vestidos, chapéus e leques, à moda da Belle Époque francesa – tal qual ocorrera quatro anos antes, em Paris. A segregação racial impedia a entrada de visitantes negros, de modo que seres humanos de outras raças que não a branca só poderiam ser vistos como “atrações” da Expo 1904 – pigmeus africanos, nativos filipinos e índios apaches (incluindo seu célebre chefe Gerônimo), todos não eram enxergados senão como produtos “exóticos” a serem mostrados aos pretensos superiores, os membros da civilização branca, anglo-saxã e protestante.
Em outro ponto em comum com Paris 1900, os Jogos Olímpicos de Saint Louis 1904 acabaram integrados à Louisiana Purchase Exposition. As disputas esportivas se deram, em sua maioria, no Francis Field Stadium – um estádio com capacidade para 19 mil pessoas cuja construção foi iniciada em 1902 e que foi inaugurado em 1904, graças ao empenho do político e diplomata David Rowland Francis, ex-prefeito de Saint Louis, ex-governador do Missouri e ex-secretário do interior dos Estados Unidos (nos governos de Grover Cleveland e William McKinley). Francis foi o responsável direto pela organização da Expo 1904 e, por consequência, o presidente do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Saint Louis. Ao contrário da Expo 1904, que contou com a abertura oficial feita – ainda que à distância, via telégrafo – pelo presidente Theodore Roosevelt, a cerimônia de abertura dos Jogos de Saint Louis, em 1º de julho de 1904, foi simples e muito breve, e a declaração de abertura foi feita pelo próprio Francis, o único norte-americano em toda a história a abrir uma edição olímpica sem ser presidente ou vice-presidente dos Estados Unidos.
Além do país-sede – que foi representado por 526 atletas, mais de 80% dos 651 competidores daquela edição –, outras 11 nações se fizeram presentes, com a manutenção da predominância do hemisfério norte (à exceção da Austrália, país independente desde 1901, e da África do Sul, que à época era ainda uma colônia britânica). Apenas sete países europeus foram representados: França, Alemanha, Grã-Bretanha, Grécia, Suíça, Áustria e Hungria (estes dois, embora fizessem parte de uma mesma nação, o Império Austro-Húngaro, permaneciam competindo com delegações separadas). Já do continente americano, além dos Estados Unidos, enviaram delegações Cuba (que à época era um protetorado norte-americano) e Canadá. Nenhuma delegação asiática foi a Saint Louis, ao contrário de quatro anos antes, quando dois países da Ásia foram representados. O número de nações presentes em Saint Louis 1904 – menos da metade dos que foram a Paris 1900 – foi o menor de toda a história dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Dois fatores explicam a queda no número de participantes. Primeiramente, as delegações dos países de fora do continente americano tinham que se deslocar de navio até o porto de Nova York, em uma viagem que, dependendo da distância, poderia durar até 15 dias; em seguida, para chegarem em Saint Louis, teriam de encarar mais 40 horas de trem, uma jornada que decerto deixaria todos por demais extenuados para ainda disputarem competições esportivas. Além disso, Europa e Ásia estavam em tensão por conta da Guerra Russo-Japonesa, iniciada em 8 de fevereiro de 1904 e com grande parte dos combates travados no Oceano Pacífico.
Com 80% dos atletas que disputaram os Jogos sendo norte-americanos, a supremacia dos Estados Unidos foi assombrosa, com um total de 239 medalhas conquistadas, sendo 78 de ouro. A Alemanha, segunda colocada, teve um total de apenas 13 medalhas, sendo quatro douradas. A superioridade norte-americana, porém, teve razão idêntica à francesa em Paris 1900 – em várias modalidades, apenas atletas dos Estados Unidos competiram, sendo que, por exemplo, no futebol, das três equipes que disputaram o torneio, duas eram estadunidenses (formadas, respectivamente, por estudantes do Christian Brothers College e por jogadores amadores do Saint Rose Parish). Por outro lado, inegavelmente, os norte-americanos – que já haviam tido sucesso em Atenas 1896 e Paris 1900 – já tinham uma visão educacional do esporte bastante avançada, com competições envolvendo universidades acontecendo pelo menos desde a década de 1850.
Os Jogos de Saint Louis 1904 foram descritos pelo Barão de Coubertin (que não viajou aos Estados Unidos) como palco de “truques” e “comédias”. As “comédias” eram, na verdade, uma manifestação do racismo norte-americano. Durante os Jogos, ocorreram os chamados “Dias Antropológicos”, nos quais membros de etnias consideradas “exóticas” aos olhos dos brancos, anglo-saxões e protestantes da elite local disputavam corridas, arremessos e lutas, servindo de espetáculo aos visitantes, que deles riam com escárnio.
Segundo o Barão de Coubertin, que soube desses “Dias Antropológicos” com base em relato enviado por representante do COI, esse tipo de “comédia” perderia a graça no dia em que negros, amarelos e vermelhos aprendessem a correr, nadar, saltar e arremessar, deixando os brancos para trás. Já os “truques” mencionados por Coubertin ocorreram na prova da maratona, realizada em 30 de agosto de 1904, sob um forte calor de 32º C. O primeiro a entrar no Francis Field, triunfante, foi o norte-americano Frederick Lorz, um jovem novaiorquino de 19 anos, com o tempo de 3 horas e 13 minutos. Entretanto, descobriu-se, depois, que Lorz percorrera parte do percurso da prova em um carro, o que o levou a ser desclassificado. O verdadeiro vencedor da maratona foi o britânico Thomas Hicks, que competia pelos Estados Unidos, onde trabalhava na construção civil em Cambridge (Massachusetts). Hicks completou a prova em 3 horas, 28 minutos e 53 segundos e só o conseguiu porque competiu sob efeito de conhaque e estricnina (um veneno para matar ratos). Ao cruzar a linha de chegada, Hicks sofreu um colapso e, por um milagre, não veio a falecer. Este foi o primeiro caso documentado de doping na história olímpica moderna.
O texto acima é parte do Capítulo 3 do livro Jogos Políticos da Era Moderna, de Paulinho Oliveira, que está disponível na plataforma Amazon.