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Neoliberalismo, esporte e elitismo descarado

Do alto do castelo do privilégio intelectual e cultural da elite brasileira, o jornalista,  escritor membro da Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha de SP, descreve b-boys e b-girls dos anos setenta da seguinte maneira: “garotos de bonés ao contrário nas ruas do Bronx, em Nova York.”. Já vimos de tudo na Folha de São Paulo, equívocos ao usar ironia e citar Beyoncé, posts sobre relacionamento de celebridades, ofensas após o falecimento de pessoas reconhecidas e por aí vai. Esse é um dos padrões “Folha” de publicação. Colunistas escolhem determinados assuntos, escrevem sobre isso, às vezes de forma bem intencionada, ou não, e a instituição edita as chamadas, imagens e posta seus conteúdos on-line. É bem curioso de se observar. Assim como a crítica feita por Ruy Castro sobre as práticas liberais do COI ao transformar o Breaking em modalidade esportiva, não estaria a Folha e seus colaboradores transformando o jornalismo em puramente algoritmo? Essa também não é uma prática neoliberal? 

Breaking
Fonte: reprodução instagram @cnddbreaking

 

Breaking e esporte 

Resumidamente, Breaking é uma das expressões artísticas do movimento social e cultural Hip Hop. Nele, existe uma gama de grupos que se ramificam nas mais variadas identidades, movimentos, estilos de usar o corpo, de se comunicar e de fomentar a cena. Por isso a dança tem sua própria comunidade. Os integrantes são b-boys, b-girls, djs, mcs e todas pessoas interessadas que compõem a “A Família”. Nos eventos da cultura, práticas desportivas são comuns, não é por acaso que os duelos entre uma crew e outra são chamados de batalhas. Assim como Norbert Elias teoriza em o processo civilizador como as sociedades europeias controlavam seus níveis generalizados de violência através da paralametarização da vida pública e também dos comportamentos e passatempos que eram esportificados (como o caso da luta box), no Breaking o processo é semelhante. 

Não é igual porque ao aprofundarmos sobre o contexto e a história do Hip Hop, já encontramos essa manifestação “normalizadora” no momento em que as gangues do Bronx se unem contra o real opressor, na época figurado pelo homem branco.1 Nas esferas das sociabilidades do bairro no período, ocorreu uma modificação a longo prazo nas estruturas sociais das pessoas, elas vivenciaram o processo de parlamentarização e coerção de seus comportamentos que os levaram a acordos e uniões internas. Formando assim, o que hoje conhecemos e entendemos sobre Hip Hop.

Nessa entrevista que publiquei aqui no Ludopédio mesmo, conversei com uns dos b-boys brasileiros mais famosos da atualidade. E, enunciei que um dos motivos do Breaking ser convidado pela cidade sede (Paris, França) a participar dos Jogos de 2024 é porque é uma prática desportiva, divertida, enérgica e jovial. E que portanto, atrairia de forma espontânea o público mais jovem. E deu certo, ao menos do se sabe, os ingressos para as competições da modalidade já estão encerrados. No entanto, não é só isso que caracteriza a esportificação da dança. Como dito anteriormente, o Breaking já é esportificado. As batalhas contam com jurados, categorias de análise e competidores. E não é só isso… Para quem é do meio e, ao menos procura se informar sobre, existem diversas competições de Breaking, regional, estadual, federal e mundial. Basta pesquisar no Google que você vai achar. Muitos dançarinos, antes mesmo da convocação para as Olimpíadas, já eram patrocinados. A esportificação acontecia, ela só não estava à vista de todos. 

Breaking
Fonte: reprodução instagram @cnddbreaking

O COB (Comitê Olímpico Brasileiro) está seguindo o regimento interno do Comitê Olímpico Internacional (COI) que concomitantemente ao WDSF (World DanceSport Federation) regula a categoria. É através dessa entidade que o CNDD (Conselho Nacional de Dança Desportiva) opera gerenciando as diversas modalidades de dança desportiva no Brasil. 

Para ter mais acesso ao COB, foi necessário que o CNDD e todos seus integrantes aprimorassem seus conhecimentos intelectuais, comportamentais e jurídicos. Com essa institucionalização, atletas e juízes (cada um a seu modo) foram criteriosamente avaliados, submetidos a uma dada “educação” de códigos de conduta ao representarem o time do Brasil e a gestão foi toda instrumentalizada nacional e internacionalmente para ter espaço e ser reconhecida mundialmente como uma entidade forte. Atualmente, o CNDD é um dos únicos conselhos do mundo com toda a equipe pronta para os Jogos Olímpicos de 2024. 

A dança e toda sua comunidade já está familiarizada com os processos de esportificação. E o desafio, que não é só do Breaking, também está em ter um olhar esportivo sobre a dança. Ou seja, a grande questão é você criar uma mentalidade subjetiva e objetiva que faça conseguir dizer que o que se está vendo é um esporte. E é por esse motivo que a esportificação da arbitragem tem sido tão relevante e significativa para o Breaking nesse momento. 

A arbitragem está sendo feita junto com b-boys e técnicos olímpicos para que não se perca a subjetividade das batalhas e para se poder mensurar, de forma mais objetiva, a característica que diferencia danças desportivas de ginásticas acrobáticas: o improviso. O erro em determinados esportes acaba com as chances de vitória, na dança sua aparição não é o ideal, mas quando acontece, dá ao atleta a possibilidade de mostrar suas condições mentais, de equilíbrio, de condicionamento físico e preparo psicológico e estratégico para lidar com aquela situação. Após o erro, o dançarino-atleta pode acabar ganhando, porque o que se impera depois da falha não é a derrota, mas em como e o que o competidor fará para mudar o jogo. 

Breaking
Fonte: reprodução instagram @cnddbreaking

Neoliberalismo e elitismo descarado

Não é só na Folha de SP que a argumentação contra o Breaking nas Olimpíadas é fundamentada pela ideologia neoliberal que transforma a vida social em uma totalidade do trabalho. Ao longo da minha pesquisa, já presenciei fala semelhantes em importantes eventos da Antropologia do mercosul, entre estudantes de diversas áreas e de renomadas universidades de São Paulo; mas nunca ouvi entre os reais impactados pela mudança: os b-boys, b-girls e as variadas pessoas presentes nesse circuito olímpico.  

O Breaking nas Olimpíadas muda vidas. Transforma treinos extensos, a não compreensão familiar, a falta de incentivo e a luta diária de um propósito (que nunca chega), em uma possibilidade. Pessoas que precisavam ter duas, três jornadas de trabalho para participar de um único evento de dança, hoje podem ser contempladas com a bolsa atleta e ao invés de “treinarem quando dá”, podem fazer dos treinos, estudos, etc parte do seu horário de trabalho. Breaking nas olimpíadas fala sobre profissionalização, sobre sonhos, sobre ascensão social, racial e cultural. 

O debate sobre neoliberalismo e esportificação precisa acontecer com expertise. Ao usar ironias, sarcasmo, deboche, o debate se perde em vaidades que só reforçam estruturas arcaicas de se pensar e enxergar o mundo. É evidente que a ideologia falseia as questões sociais e faz parecer que tudo é referente ao capital humano, e assim como a discussão, isso também não é bem assim. Dá para ocorrer este debate sem desvalorizar a classe. 

Breaking nas Olimpíadas muda o jogo. Práticas lúdicas que são vistas de maneira jocosa, e que são estigmatizadas pelo senso comum passam a ter outro recorte, o da profissionalização. E além de grandes empresários e corporações estatais, a mudança impacta diretamente na vida dos praticantes que passam a receber salário através de sua dança esportiva. Questionar de maneira devassa essa transformação, apenas reforça estereótipos muito comuns em análises conservadoras sobre o cotidiano. A hegemonia cultural e intelectual precisa acabar, e para isso os debates precisam ser mais consequentes, apontando as contradições da ideologia e sempre favorecendo a classe trabalhadora. 

Basta ir a um evento da cultura ou esportivo que você verá diversos b-boys e b-girls dizendo: “Eu não sou atleta, eu estou atleta” e para entender essa frase, é preciso sair do alto do castelo um pouco.

Breaking
Fonte: reprodução instagram @cnddbreaking

Notas

1 Literatura disponível em: “Ghetto Brother: Uma lenda do Bronx” de Claudia Ahlering e Julian Voloj. Também é possível assistir a esse documentário que fala a respeito: Ghetto Brothers: Black Benji, Karate Charlie and the Hoe Avenue Peace Meeting

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

ALVARENGA, Gabriela Seta. Neoliberalismo, esporte e elitismo descarado. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 17, 2023.
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