161.1

Sou brega igual ao Falcão quando o Flamengo ganha, e mais ainda quando perde

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 1 de novembro de 2022

O brega é um estilo plural que abarcou várias manifestações musicais no âmbito de sua trajetória histórica. No entanto, ele é trazido aqui nesta crônica a partir de uma de suas ramificações que cantam o amor romântico em variações de gozo e dor – alinhadas, logicamente, ao cafona. A intenção aqui é replicar os sentidos do brega associados à sua cultura, porém, tentando ultrapassar a sua rotulação ligada ao preconceito e ao mau-gosto, buscando potência no diálogo com este rico artefato cultural. Peço desculpas a Reginaldo Rossi, Waldick Soriano, Agnaldo Timóteo, Amado Batista, Wando e tantos outros, mas o palco hoje é do cearense Falcão.  Por quê? Porque Falcão tem um álbum com o título que é a cara da história do Flamengo: “Sucessão de sucessos que se sucedem sucessivamente sem cessar”.

Falcão é diplomado em arquitetura, no entanto, usa a criatividade de sua formação universitária para decorar suas músicas com requintes de escracho, deboche e bom humor. Assim sendo, trago Falcão para a crônica a fim de declarar o amor ao “mais querido”, de modo caricato e troncho. Mas também faço uso da alegoria de suas músicas para retratar as dores de quando o Flamengo “nos trai”, perdendo jogos decisivos ou finais de campeonato e deixando-nos na “sofrência”. Ou seja, o escrito é consonante com o pressuposto de que o ato de torcer é, em grande medida, uma breguice.

Falcão
Falcão em 2019. Fonte: Wikipédia

Para nós rubro-negros, o amor ao Flamengo é parte fundamental de nossas vidas, “tem gente que só vive apaixonada, tem gente que tem duas namoradas” (TEM GENTE). O Flamengo, “na matemática do amor, é o 6 de um 69… é o que move, remove e o que me comove” (VOCÊ É A LETRA X DA PALAVRA LOVE). Por isso, Flamengo: “I love seu corpinho… I love seu umbiguinho… I love seu pezinho… I love seus cabelinhos… I love seu pescocinho… And I love seu buxinho” (I LOVE YOU TONIGHT)

No dia a dia do amor, manifestos pelo verbo “torcer”, estamos sempre tentando fazer com que as coisas andem bem, que deem certo. Fazemos um esforço danado para, de alguma forma, ajudar o Flamengo a lograr seus êxitos: “Tantas vezes eu deixei de morrer, pra você não ficar viúva”. (VOCÊ É A LETRA X DA PALAVRA LOVE). Em situações mais complicadas, até apelamos a uma mandinga, afinal, quem nunca fez uma promessa antes de uma final de campeonato? “Eu rezo novena, trezena… Eu encho o bucho de hóstia e até como bosta pra pagar promessa. Eu peco, eu fresco, eu minto, eu caio em tentação, eu como carne de porco, eu juro o santo nome em vão”(ONDE HOUVER FÉ, QUE EU LEVE A DÚVIDA).

Mas como toda relação de amor, temos nossos conflitos, nossas decepções, nossas quebras de expectativas e sofremos. O sofrimento, ligado ao sentimento amoroso, é riquíssimo na poética do brega. Por isso, narro alguns momentos tristes de minha relação de torcedor do Flamengo (desde 1987) que doeram e ainda fazem sofrer quando rememoradas. A primeira grande tragédia foi, com certeza, a final do carioca de 1995. Tomar aquele gol de barriga de Renato Gaúcho no final do jogo e perder o título carioca no ano do centenário para o Fluminense “É ruim que nem topada. É pior do que pancada na região dos testículos” (MULHER MALA). Eita sofrência!

Tão ruim quanto foi perder a final da Copa do Brasil para o Grêmio, em 1997, com dois empates (1×1 no antigo Estádio Olímpico e 2×2 no Maracanã). Tudo bem, já sabíamos pelo regulamento que o gol marcado fora de casa valia mais. “Pois tava escrito na lousa, uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa” (QUEM NASCE PRA TATU MORRE CAVANDO). E o que dizer da final desta mesma copa, mas em 2003 contra o Cruzeiro? Nada, porque aquele Cruzeiro era um timaço. Lembro-me de ter ido assistir ao jogo final no apartamento de um colega e na volta para casa “no meu pensamento eu vim contando jumento na estrada pra lhe esquecer” (O AMOR QUE ANTES DE SER JÁ ERA).

No ano seguinte, em 2004, o Flamengo voltava a disputar novamente a final da Copa do Brasil, dessa vez contra o Santo André. Daí você pensa: “não existe nada como um dia atrás do outro com uma noite no meio” (MULHER MALA).  Após empatar na cancha dos adversários por 2×2, o Fla jogaria a partida de volta em casa, precisando apenas de um empate com menos de 2 gols (0x0 ou 1×1) ou de uma vitória pelo placar mínimo. Com todos esses números a favor e com o Maracanã lotado, todos já arriscavam dizer que não tinha para ninguém naquela noite: “Flamengo campeão!”. Porém, vale sempre lembrar de que “é melhor cair em contradição, do que do oitavo andar (A MULHER É UM GÊNERO HUMANO). Ao final da partida, vergonheira e decepção no Maracanã, Flamengada! Flamengo 0x2 Santo André.

O trauma da final da Copa do Brasil só foi aliviado em 2006, na final contra o Vasco da Gama, com vitória que já era esperada. Afinal, como diria Falcão com seu “ingrêis fruente”: “Dog’s Au-Au It’s Not Nhac-Nhac”, que traduzindo para o português significa “cão que late não morde”.

Falcão
Falcão se apresentando no Festival União da Ibiapaba, em 2011. Fonte: Wikipédia

E por falar em “ingrêis fruente” e de noites de “sofrência”, não tenho saudade nenhuma daquela despedida do técnico Joel Santana, nas oitavas de final da Libertadores de 2008. O Flamengo venceu o América (México) no jogo de ida por 2×4. No fim de semana (intervalo entre as partidas da Libertadores), o Flamengo conquistou o tricampeonato carioca em cima do Botafogo. O jogo de volta (três dias depois) no Maracanã era para ser uma festa, afinal o título carioca, que ainda estava sendo festejado, e a vantagem de 2 gols em cima do América nos dava demasiada tranquilidade. Praticamente, o Fla só precisava entrar em campo e esperar o ponteiro dos minutos do relógio girar 90 voltas. No entanto, tragicamente, o Flamengo conseguiu perder por 0x3 e ser eliminado em noite inspirada do paraguaio Cabañas, que na ocasião atuava pela escrete mexicana. A noite teve tons sarcásticos ainda maiores, pois era a despedida de Joel, que tinha sido contratado para ser técnico da seleção da África do Sul, equipe anfitriã da Copa do Mundo de Futebol, em 2010.

Nessa noite, o Flamengo se despediu de Joel Santana e da Copa Libertadores da América, e começava ali o tabu de ser eliminado precocemente da competição. E tabu, sabem como é, é como castidade. “O papa já devia ter dito: Que a castidade não importa mais, deve ser quebrada na frente ou por trás. Pois tem certas coisas que não se concebe, porque é dando que se recebe” (ONDE HOUVER FÉ, QUE EU LEVE A DÚVIDA). Mas somos gratos ao “papai” Joel, afinal foi ele, com a ajuda de sua “prancheta mágica”, quem livrou o Flamengo do rebaixamento, em 2005. Está perdoado porque “eu acho melhor escapar fedendo, que morrer cheiroso” (O DESGOSTO QUE TUA MÃE ME DEU). Aquele ano de quase rebaixamento foi desesperador, porque naquela ocasião “o susto que tomei foi grande, foi além da conta. E eu não defequei, porque não tinha ‘feze’ pronta” (A MULHER É UM GÊNERO HUMANO).

Se quisermos falar em sofrimentos e dores recentes, a final da Libertadores em Montevidéu contra o Palmeiras é digna de uma letra de brega, daquelas de ouvir chorando. O que o técnico Renato Gaúcho fez com o Flamengo de 2021 é de um grau de incompetência sem tamanho, por isso Renato, “gosto de você do que jeito que você é, metade sereia, metade jacaré” (NÃO MUDE MAIS NADA). Mas dói mesmo é ver (e rever) o que Andreas Pereira fez com a bola no início da prorrogação, “é o que há de mais fino em matéria de grossura” (MULHER MALA). Mas Andreas, isso acontece não só com os piores jogadores, mas também com os maiores craques, “esses são detalhes tão pequenos em você que nem mesmo Roberto Carlos com toda aquela conversa mole pensaria em descrever” (NÃO MUDE MAIS NADA).

Depois de escrever essa crônica linda, eu acho que eu deveria ser chamado pelo Flamengo para dar várias palestras “Onde eu pudesse passar os meus conhecimentos científicos para o pessoal. Onde eu pudesse sair dos limites físicos do papel. Pois eu nasci nu, mas nasci contente. É por isso que eu tenho essa cara linda… É por isso que eu tenho esse corpo forte” (A INFLUÊNCIA DA FARINHA NA ALIMENTAÇÃO CEARENSE).

Achou a crônica brega? Brega é não ser Flamengo!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Sou brega igual ao Falcão quando o Flamengo ganha, e mais ainda quando perde. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 1, 2022.
Leia também:
  • 177.5

    Sob a guarda de Ogum: a luta de Stuart Angel contra as demandas da ditadura

    Fabio Zoboli, Perolina Souza
  • 174.4

    A força de Iansã no corpo rubro-negro de Isabel Salgado

    Perolina Souza, Fabio Zoboli
  • 173.3

    Caminhos tortuosos: entre as pernas de Mané Garrincha e a voz de Elza Soares

    Perolina Souza, Fabio Zoboli