177.5

Sob a guarda de Ogum: a luta de Stuart Angel contra as demandas da ditadura

Fabio Zoboli, Perolina Souza 5 de março de 2024

Ogum um guerreiro valente que cuida da gente, que sofre demais
Ogum, ele vem de Aruanda, ele vence demanda de gente que faz
Ogum, cavaleiro do céu, escudeiro fiel, mensageiro da paz

(Claudemir / Marquinhos PQD)

Pela via da sabedoria popular, a expressão “vencer demanda” nos toma para firmar a capacidade de superar dificuldades, uma espécie de potência que promove o quebranto de questões que debilitam o corpo físico e o espiritual. O “vencer demanda” é tarefa de uma planta, cientificamente conhecida como Justicia gendarussa – popularmente chamada como “vence-demanda” ou “abre-caminho”. Seja como for seu nome, o fato é que sua vinculação à proteção se deve ao poder de limpar, curar dores e ofertar proteção a quem tem fé. Para quem crê nas religiões de matriz africana, o Orixá que vem na frente contra as intempéries da guerra, para dar sustento, ordenar o caos e “vencer demanda” é Ogum: o senhor dos caminhos. E é a Ogum que associamos a história de Stuart Edgar Angel Jones (1945-1971), um guerreiro que lutou bravamente para “vencer demanda” contra o regime ditatorial.

“Tuti” (apelido carinhoso de Stuart), segundo sua irmã Hildegard Angel, era apaixonado pelo Flamengo desde criança. De acordo com ela, Stuart cresceu vestido com a camisa vermelho e preto do clube. No seu quarto, sempre contou com a companhia da flâmula, fiel adorno de sua parede (Angel, 2022). Em sua infância, viveu em meio às crianças com a bola nos pés, mas foi empunhando o remo que ele alcançou a glória como atleta do time do seu coração. Stuart foi um exímio remador da equipe do Flamengo, foi bicampeão carioca na década de 1960, vencendo os campeonatos de 1964 e 1965. “Stuart era o voga, o que dá ritmo ao barco, e posso imaginar o esforço que significava para ele toda aquela preparação de atleta” (Angel, 2022, p. 96). As arquibancadas lotavam de pessoas para ver Stuart, o remo em suas mãos era tal qual a espada[1] nas mãos de Ogum, capaz de abrir caminhos e vencer os mais difíceis combates.

Stuart Angel
Stuart Angel era remador do Clube de Regatas do Flamengo. Fonte: reprodução

Ogum é respeitado por ser um guerreiro incansável, um dos seus principais poderes é lidar com o ferro, fato que faz dele uma entidade que é conhecida por ser inflexível e implacável. Por trás de sua imponente imagem de guerreiro está a capacidade de se fazer próximo de seus filhos. Quando convocado, Ogum assume a linha de frente e não arreda da função de protetor. Acredita-se que, entre as entidades do panteão Iorubá, depois de Exu, é ele quem nos vale mais rapidamente, pois está sempre próximo e disposto para superar dificuldades.

Stuart era filho do estadunidense Norman Jones[2] e da grande figurinista brasileira Zuleika Angel Jones, carinhosamente conhecida como Zuzu Angel. Zuzu iniciou sua vida como costureira para sustentar sua casa, após a separação do seu marido. Com o tempo, tornou-se uma estilista renomada, reconhecida no Brasil e nos EUA.

O filme “Zuzu Angel” (2006), do diretor brasileiro Sérgio Rezende, conta a história de vida de Zuzu na luta contra o regime ditatorial, na busca pelo corpo desaparecido de seu filho. Em uma das cenas do filme, ela afirma que vivia na ingenuidade para fazer “moda alegre num país do futuro”, desenhando vestidos com flores e passarinhos. Noutro trecho da película, Zuzu exclama emocionada: “é impossível acreditar no futuro de um país, quando seu filho, e de tantas outras pessoas, estão desaparecidos”. A história de Zuzu, contada na obra fílmica e cantada na canção “Angélica” (1977), de Chico Buarque, mostra-nos que a mãe de Stuart lutou até o fim da sua vida, com as armas que possuía – linha, tecido, agulha, trabalho e fala – pelo direito de enterrar o corpo de seu filho. A primeira estrofe da música que Chico fez para Zuzu canta o seguinte: “Quem é essa mulher, Que canta sempre esse estribilho, Só queria embalar meu filho, Que mora na escuridão do mar”

Com o golpe ditatorial de 1964, sofrido no Brasil, Stuart Angel se juntou ao grupo MR-8[3], para lutar contra o regime militar antidemocrático que destituiu João Goulart. Nesse período, além de remador do Flamengo, Stuart Angel era também estudante de Economia[4] da UFRJ, de onde foi impedido de estudar por perseguição política. Durante a ditadura, Stuart se escondia dentro do barracão de remo do Flamengo, e dali não saia para nada. Seus colegas de equipe lhe traziam comida e roupa limpa. No entanto, um dia Stuart decidiu abandonar o esconderijo com a alegação de proteger seus colegas remadores. Ele queria resguardar seus amigos da violência e perseguição militar, afinal, como ele mesmo afirmava: “está perigoso andar comigo”.

Seu treinador, Buck, descreve Stuart como “um líder manso. Quando o barco ia mal, ele atribuía a culpa a si mesmo. Quando ia bem, dizia que foi mérito dos seus companheiros” (Angel, 2022, p. 97). Foi para proteger um de seus companheiros, Carlos Lamarca, que Stuart vivenciou em silêncio a tortura na Base Aérea do Galeão, localizada no Rio de Janeiro. Em 1971, Stuart Angel foi preso e torturado pelo Regime Militar, que descartou seu corpo para virar “comida de peixe[5]” na Restinga da Marambaia. Desde então, sua família, primeiro com a mãe Zuzu (falecida[6] em 1976) e posteriormente com a irmã Hildegard, pedem esclarecimentos ao Estado pela ocultação do corpo do remador e militante do MR-8.

Em dezembro de 2010, a então presidente do Flamengo, Patrícia Amorim, com o objetivo de celebrar a memória de Stuart, fez uma placa em homenagem ao remador. Além dessa homenagem, feita na sede do clube, Stuart Angel também teve seu nome gravado em uma das estrelas na calçada da Gávea, logo na entrada interna da sede do clube. Em 2016, a gestão do Flamengo, sumiu não só com a placa, mas também arrancou a estrela colada ao piso na passarela do clube. A falta de consciência histórica (não só do Brasil, mas do próprio clube) e o alinhamento político negacionista sempre foi o carro-chefe de tal gestão, para além da condução das modalidades esportivas do Flamengo. O movimento de torcedores “Flamengo da gente” reinaugurou a placa 10 anos depois, sem custos para a diretoria do Flamengo.

A placa trazia a seguinte mensagem gravada acima: “10 anos da homenagem oficial do Flamengo a Stuart Angel”. No centro da placa, os dizeres originais: “O Flamengo cria muito mais do que grandes atletas, mas também grandes pessoas. O Stuart é uma prova disso. Tudo que ele fez merece ser homenageado. Para o Flamengo, é uma honra enorme fazer parte desse momento. Fica a mensagem aos mais jovens de que não há vitória sem luta e que não há futuro sem lembrar do passado; da história”. Abaixo do nome da então presidente, há ainda a seguinte frase: “Aos que lutaram por um Brasil livre, o direito à memória e à verdade”.

Em 2015, a prefeitura do Rio de Janeiro, em homenagem a Stuart Angel, inaugurou um busto talhado em bronze, feito pelo escultor Edgar Duvivier. O busto foi colocado no percurso da ciclovia que também leva o seu nome, mais precisamente na Avenida Pasteur com Venceslau Brás, ou seja, o busto fica em frente à UFRJ. Neste dia, cumpriu-se a profecia de sua mãe Zuzu Angel: “Meu filho ainda há de ser estátua em praça pública!”. Como seu corpo nunca foi encontrado, o monumento com seu busto passou a ser o túmulo simbólico de Stuart Angel.

No ano de 2019, Hidelgard Angel, com um mandado judicial em mãos, dirigiu-se ao 8º cartório de Registro Civil da Tijuca – situado na zona leste da cidade do Rio – para enfim conseguir emitir a certidão de óbito de seu irmão Stuart. No documento, a causa da morte atestava: “Morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”. Em certa medida, esse ato vence demanda e promove a justiça que tanto a família de Stuart buscou por anos. De acordo com Sandra Zorat Cordeiro (2020, s/p):

Para aqueles que acreditam no seu poder, o nome Justicia gendarussa vai além do latim botânico: seu uso significa que as entidades e orixás farão valer a justiça e, sobre aqueles que professam sua fé, a proteção chegará suavemente, assim como o perfume de um doce vento que sopra…

Uma das formas de rogar pelo cuidado de Ogum é saudá-lo com a expressão “Ogunhê”. A proteção de Ogum é como uma benção que oferece amparo aos seus filhos. Assim como São Jorge, que no sincretismo religioso representa Ogum, oferece orientação aos seus fiéis devotos – cientes deque sob a guarda de São Jorge andam vestidos e armados contra os inimigos, conforme a clemência de sua oração:

Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.

Aproximamos a figura de Stuart à de São Jorge, um cavaleiro vestido com armadura que venceu com sua espada um inimigo grandioso: um dragão com asas que devorava pessoas. A morte de Stuart não foi em vão, sua luta para vencer as demandas impostas pelo regime ditatorial brasileiro nos aproximou um pouco mais da liberdade e transformou o próprio Stuart em um mártir na batalha contra a ditadura e em oposição a toda e qualquer forma de opressão. Lembrar a história de Stuart Angel também é uma forma de nos manter atentos aos perigos que podem surgir quando permitimos que a soberania popular seja colocada em risco. Para que tal barbárie não volte a acontecer, lutemos como Stuart, o guerreiro de Ogum, o remador que de sua armadura de ferro fez ecoar a democracia.

Notas

[1] Espada de Ogum é o nome popular da planta Dracaena trifasciata. Acredita-se que ela tem o poder de proteger ambientes e barrar a entrada de más energias.

[2] Da união conjugal de Norman e Zuzu, ocorrida em 1940, nasceram três filhos: Stuart Angel (1945), Hildegard Angel (1949) e Ana Cristina Angel (1952). Em 1960, o casal se divorciou.

[3] MR-8 é a siga do “Movimento Revolucionário de 8 de outubro”. O MR-8 lutou contra a ditadura militar. A data de 8 de outubro é pela memória da captura de Ernesto Che Guevara pelo exército boliviano, em 1967.

[4] Dentro da UFRJ há até hoje o Centro Acadêmico Stuart Angel, dentro da Escola de Economia.

[5] Expressão utilizada em uma das cenas do filme “Zuzu Angel” por um dos militares que participou da tortura de Stuart Angel, após a constatação de sua morte.

[6] Zuzu Angel morreu na madrugada de 14 de abril de 1976, vítima de um acidente no bairro da Gávea, na saída de um túnel que hoje leva seu nome. Há indícios de que o acidente tenha sido um atentado contra a sua vida.

Referências

ANGEL, Hildegard. Na clandestinidade, houve vez em que Stuart se escondeu na garagem do remo do Flamengo. In: NETO, Helcio Herbert. Conte comigo: Flamengo e Democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Ludopédio, 2022. p. 95-99.

CORDEIRO, Sandra Zorat. Justicia gendarussa Burm.f. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: www.unirio.br/ccbs/ibio/herbariohuni/justicia-gendarussa-burm-f Acesso em: 02 de fev. de 2024.

RUFINO, Luiz. Vence-demanda: educação e descolonização. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Perolina Souza Teles

É professora da rede pública de ensino do estado de Sergipe. Atualmente é doutoranda em educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e membra do "Grupo de pesquisa Corpo e política/UFS".

Como citar

ZOBOLI, Fabio; SOUZA, Perolina. Sob a guarda de Ogum: a luta de Stuart Angel contra as demandas da ditadura. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 5, 2024.
Leia também:
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.25

    Jogo 3: Galo 3 x 2 Peñarol

    Gustavo Cerqueira Guimarães