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A copa do mundo é nossa: percurso e motivações do Brasil como sede do Mundial de 2027

O Brasil ganhou a disputa da Fifa e será a sede da Copa do Mundo Feminina de Futebol de 2027. O país venceu a votação competindo com a candidatura conjunta da Bélgica, Alemanha e Holanda, a outra candidatura apresentada, Estados Unidos e o México, desistiram da disputa em abril de 2024. A votação que ocorreu no dia 17 de maio de 2024 no Congresso da Federação em Bangkok, na Tailândia, foi aberta e o que nos chama a atenção é que a maioria dos países que votaram na candidatura rival foi composta por países europeus. Já os votos da candidatura brasileira estavam espalhados pelo mundo, como se pode ver na figura 1. Fato que vai além das questões práticas para os times europeus, mas dialoga com o eurocentrismo e o debate em torno da colonialidade do poder proposto por Aníbal Quijano (2005).  Em breves palavras,o conceito observa a constituição de um poder mundial  forjado no capitalismo, colonial e eurocêntrico desenvolvido a partir da criação da ideia de raça, que foi inventado  para naturalizar a subalternidade e inferioridade dos colonizados perante os colonizadores. Importa ressaltar ainda, que esta será a primeira vez na história do futebol de mulheres que a competição será disputada na América do Sul, lembrando que o Brasil sediou duas copas masculinas, em 1950 e em 2014.

Figura 1-Mapa da votação Copa do Mundo Feminina de 2027.

Copa do Mundo 2027
Fonte: Globo esporte – Imagem: Infoesporte

Na historicidade das Copas do Mundo do Futebol de Mulheres, a primeira edição aconteceu em 1991, na China, na qual 12 equipes participaram. Vale ressaltar que a seleção brasileira participou de todas as nove edições do torneio, bem como de todas as Olimpíadas após a modalidade compor o quadro da competição. Apesar deste fato, foi efetivamente a partir da copa de 2019 que o país começou a abraçar em massa a equipe e a modalidade (Barreto Januário, 2023). A 9º edição da Copa do Mundo, que ocorreu em 2023, na Austrália e Nova Zelândia, contou pela primeira vez com 32 seleções, igualando o formato da modalidade masculina disputada no Catar, em 2022.

Sobre a transmissão dos jogos, a edição de 2019 alcançou 1,12 bilhão de espectadores no mundo, e foi a primeira a transmitir todos os jogos da seleção nacional em TV aberta brasileira. Em 2023, sete jogos foram exibidos pela Globo, enquanto o SporTV e a CazéTV transmitiram todas as partidas da competição, um fato inédito e de extrema importância na construção de uma cultura futebolística para a modalidade (Goellner, 2021). 

A Copa de 2023 se confirmou, não só em visibilidade, audiência e cobertura midiática, mas também em impacto social e nas conquistas das lutas das mulheres da modalidade. Em entrevista para a Lídia Capitani (2023) da  Meio e Mensagem, a jornalista Milly Lacombe afirma que “A Copa do Mundo Feminina, ao contrário da masculina, tem uma noção de que a conquista é coletiva. O fato delas estarem lá jogando, dá uma ideia de solidariedade que não existe no futebol masculino”.

Dessa forma, um fator que pesou a favor da candidatura do Brasil foi o aumento constante do interesse do público na modalidade, o que se refletiu em números de audiência nas últimas edições do Mundial com quebras sucessivas de recordes. Podemos afirmar que assistimos a um acirramento do agendamento midiático-esportivo em torno da modalidade (Mezzaroba; Pires, 2010), isto é, do interesse da agenda pública e midiática-esportiva pelo futebol de mulheres. Em 2019, na França, o Brasil registrou a maior audiência da Copa do Mundo com o jogo França x Brasil, quando a seleção brasileira foi eliminada pelas donas da casa nas oitavas de final. Naquele dia, mais de 30 milhões de  pessoas assistiram o jogo. A edição de 2019 foi transmitida na rede aberta pela TV Globo e TV Band e, na rede fechada, pelo SporTV.

Mesmo com o Brasil eliminado, o público brasileiro foi o que mais contribuiu com a audiência da final entre Estados Unidos e Holanda, que deu às norte-americanas a quarta conquista mundial naquela edição. De acordo com a Fifa, a decisão foi assistida por 19.935 milhões de telespectadores no país, número superior aos 15 milhões dos Estados Unidos e quase quatro vezes mais do que os 5 milhões na Holanda. Segundo dados do Kantar Ibope, mais de 108 milhões de pessoas no Brasil foram impactadas pelo Mundial Feminino, mais que o dobro em relação à edição anterior, realizada em 2015 no Canadá. 

Esses dados sugerem a construção de uma cultura midiática e futebolística atrelada ao futebol que tem gerados frutos que começaram a ser plantados na Copa de 2015, sendo fortalecidos e ampliados pela Copa de 2019 pelo dispositivo pedagógico da mídia (Fisher, 2002). Isso permite dizer que a ampliação da cobertura midiática e das transmissões dos jogos tem auxiliado no desenvolvimento e visibilidade da modalidade no país. Fato que foi comprovado pelas pesquisas do Obmídia UFPE, demonstrando o aumento de mais de 500% em cobertura midiática entre as copas de 2015 e 2019 (Barreto Januário; Veloso; Cardoso, 2016; Barreto Januário; Lima; Leal, 2020).

Em 2023, com mais jogos transmitidos na rede aberta pela Rede Globo e com a totalidade das partidas exibidas no YouTube pelo canal CazéTV, o Brasil, mais uma vez, foi o líder de audiência. E isso apesar dos horários das partidas: como a Copa do Mundo foi realizada na Austrália e na Nova Zelândia, cujo fuso horário é de 13 horas de diferença, muitas partidas aconteciam de madrugada ou muito cedo pela manhã. Na estreia da seleção brasileira contra o Panamá, jogo que aconteceu às 8h, a Rede Globo teve o maior consumo no horário desde 2008, chegando a 11.473.408 pessoas, enquanto a CazéTV obteve o maior número envolvendo futebol feminino no YouTube, com mais de um milhão de aparelhos conectados de forma simultânea.

A maior audiência registrada no Brasil foi, assim como em 2019, na partida contra a França, mas, desta vez, na segunda rodada da fase de grupos. O resultado esportivo foi o mesmo: derrota das brasileiras para as francesas. Na audiência, 27,5 milhões de pessoas assistiram a partida nos canais da Globo (rede aberta e fechada), aumento de 1,3 milhão de espectadores em comparação à estreia da seleção brasileira na competição.

A Fifa informou que quase 2 milhões de torcedores assistiram aos jogos in loco: no total, foram 1.978.274 pessoas nos estádios, um novo recorde da competição. Em todo o mundo, 2 bilhões de pessoas acompanharam a Copa, também um novo recorde, de acordo com a Fifa. Para 2027, a expectativa é que os números tanto de audiência como de ocupação de arenas nos jogos continuem subindo, daí a importância de se organizar um Mundial num país que esteja consumindo jogos e investindo na modalidade – como foi feito na França e na Austrália na edições passadas.

A França é o país do time mais vencedor da Champions League Feminina, o Lyon. Em 2014, ano em que a Fifa abriu a candidatura para os países interessados em sediar o Mundial de 2019, o investimento no Lyon estava a todo vapor e o time somava dois títulos, em 2011 e 2012. No momento do anúncio da escolha, em março de 2015, o Lyon buscava o que seria seu terceiro título e, no início da Copa do Mundo de 2019, contava com seis (ainda ganharia mais dois, sendo o último deles em 2022). Por essa razão a final daquele Mundial foi realizada no Parc Olympique Lyonnais, em Lyon, e não no Parc des Princes, em Paris, ou o Stade de France, maior estádio da França com capacidade para 80 mil pessoas, localizado em Saint Denis, ao norte da capital.

A edição seguinte teve escolha mais acirrada: Austrália e Nova Zelândia superaram por pouco a candidatura da Colômbia. A Colômbia recebeu a maioria dos votos da associação europeia Uefa (exceto Inglaterra) e da sul-americana Conmebol, enquanto que a candidatura dupla de Austrália e Nova Zelândia receberam os votos da norte americana Concacaf, da confederação da Oceania OFC, da asiática AFC e da africana CAF. Pesou na decisão o fato de ser a primeira Copa do Mundo realizada na Oceania, bem como a competitiva seleção australiana, na época na 7ª posição geral no ranking da Fifa (à frente do Brasil, em 8º, e da Colômbia, em 26º), comandada pela estrela Sam Kerr. Foi também a primeira Copa feminina realizada no Hemisfério Sul.

Com efeito, a Fifa anunciou que a edição de 2023 bateu também o maior recorde de vendas da história do campeonato feminino. Na França, em 2019, foram vendidos 950 mil ingressos até a estreia do torneio. Em 2023, foram comercializados 1,715 milhões de bilhetes. Segundo a FIFA, a venda dos direitos relacionados à Copa do Mundo Feminina 2023 gerou uma receita recorde de US$ 570 milhões (R$2,8 bilhões) para a entidade.

Além das vendas e da audiência, houve avanços na estrutura da competição para a seleção nacional, foi a primeira vez que a equipe teve uma concentração só dela. Foi a primeira vez, também, que as atletas tiveram trajes de viagem, roupas uniformizadas como um time e fardamentos feitos sob medida para o corpo das atletas. Já a premiação foi o triplo do valor recebido no primeiro lugar em relação a Copa de 2019, US$ 150 milhões (cerca de R$ 780 milhões). Montante que ainda é significativamente menor do que os US$ 440 milhões (cerca de R$ 2,28 bilhões) pagos na Copa do Mundo Masculino em 2022, no Catar.  

Outro fato preponderante para o Brasil conquistar a Copa é, sem dúvida, o fato de que a Copa do Mundo dos homens de 2014, realizada no Brasil, deixou um legado significativo em termos de infraestrutura e desenvolvimento esportivo, que contribuiu de várias maneiras para a conquista da Copa do Mundo de 2027 pelo Brasil. Os estádios construídos e reformados para a Copa de 2014 foram projetados com padrões internacionais, oferecendo instalações de alta qualidade tanto para as/os atletas quanto para a torcida. Essa modernização incluiu melhorias desde os gramados até os vestiários e instalações de treinamento. 

A candidatura do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2027 tem, também, interesses políticos. Desde 2012 a CBF enfrenta turbulências na cúpula executiva, com quatro ex-presidentes afastados do cargo ou investigados após deixarem seus mandatos por corrupção ou assédio sexual: Ricardo Teixeira, José Maria Marín, Marco Polo Del Nero e Rogério Caboclo. Por isso, uma das principais metas de Ednaldo Rodrigues, presidente que sucedeu Caboclo em 2021, foi se manter longe de escândalos e garantir governabilidade. Ainda assim, Rodrigues não ficou imune ao jogo político, e precisou que o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes expedisse liminar para reconduzi-lo ao posto. Em dezembro de 2023, o presidente foi alvo de ação apresentada pelo partido PCdoB no Rio de Janeiro que questionava a validade da eleição do novo mandatário. Ele retornou ao cargo na primeira semana de 2024.

O interesse do governo federal em sediar o Mundial de 2027 também foi importante para viabilizar a candidatura do Brasil. Segundo reportagem de Juliana Arreguy, a então ministra de esportes, Ana Moser, foi mantida no cargo a despeito da pressão de grupos políticos pela pasta por conta da articulação com a Fifa. A então ministra viajou para a Nova Zelândia, um dos países-sede da Copa do Mundo de 2023, durante a realização do evento, especialmente para se reunir com integrantes da mais alta cúpula do futebol internacional. “Moser embarcou na segunda-feira (17/7) para a Nova Zelândia com a missão de participar de eventos da Fifa, junto de representantes da CBF, para consolidar a candidatura do Brasil e tentar conquistar votos para o país. A ministra tem o retorno previsto para o dia 27 deste mês”, explica parte da matéria. Ana Moser foi destituída da pasta meses depois, em setembro daquele mesmo ano, sendo substituída pelo deputado André Fufuca (PP-Ma).

Esta não foi a primeira vez que o presidente Lula mostrou interesse em sediar eventos internacionais. Após os Jogos Pan-Americanos de 2007, realizados no Rio de Janeiro durante seu segundo mandato, o governo federal apoiou a candidatura do país para a Copa do Mundo de 2014, que foi escolhida como sede em 2007, e do Rio de Janeiro como Jogos Olímpicos de 2016, com definição em 2009. Ainda que a realização da Copa do Mundo tenha sido durante o governo Dilma e os Jogos Olímpicos durante o governo Temer, a preparação para as candidaturas foi feita nas gestões Lula.

Como vimos, foram muitos os fatores que impulsionaram a candidatura do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2027. A competição pode ser um grande catalisador para o crescimento da modalidade no Brasil, com o potencial de transformar o cenário do futebol de mulheres no país. A manutenção de um crescimento da exposição midiática, evitando cair, como em edições anteriores, mais uma vez no efeito sanfona da visibilidade (Morel; Mourão, 2008). E, dessa forma, atrair não só fãs, patrocinadores e investimentos para a modalidade, mas especialmente construindo uma nova base de atletas e jogadoras, visando o futuro do futebol de mulheres no país. Com efeito, haverá também melhorias e manutenção nos estádios e estruturas previamente utilizadas em 2014. Todavia, um dos efeitos mais significativos em termos subjetivos é a mudança na percepção social em torno da participação de mulheres na prática, gestão, comissão técnica, dentre outras. A visibilidade de um evento tão imponente pode auxiliar no fortalecimento e mudança da percepção do público sobre o futebol de mulheres, combatendo estereótipos e promovendo a igualdade de gênero no esporte (Goellner, 2021). Será particularmente interessante acompanhar a cobertura da mídia, também, pois na Copa de 2027 não teremos na seleção principal nomes como Marta, Cristiane e Formiga, jogadoras que foram protagonistas do futebol de mulheres no Brasil e no mundo por mais de 20 anos. Especialmente percebido em estudos prévios nomeado de “efeito Marta” (Barreto Januário, 2017).

Por fim, além de propiciar uma maior visibilidade da modalidade, investimentos, desenvolvimento de talentos e mudanças culturais podem criar um ambiente propício para o crescimento sustentável e a popularização do esporte no país. 

Referências

BARRETO JANUÁRIO, Soraya; DA CONCEIÇÃO VELOSO, Ana Maria; FERREIRA CARDOSO, Laís Cristine. Mulher, Mídia e Esportes: A Copa do Mundo de Futebol Feminino sob a ótica dos portais de notícias pernambucanos. Revista Eptic Online, v. 18, n. 1, 2016.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya. Marta em notícia: a (in) visibilidade do futebol feminino no Brasil. FuLiA/UFMG [revista sobre Futebol, Linguagem, Artes e outros Esportes], v. 2, n. 1, p. 28-43, 2017.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya; RODRIGUES LIMA, Cecília Almeida; LEAL, Daniel. Futebol de mulheres na agenda da mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019 em sites jornalísticos brasileiros. Observatorio (OBS*), v. 14, n. 4, 2020.

CAPITANI, Lídia. Copa do Mundo Feminina: a longa trajetória de uma história de impacto. Meio e Mensagem, 2023. Disponível em:https://www.meioemensagem.com.br/womentowatch/copa-do-mundo-feminina-a-longa-trajetoria-de-uma-historia-de-impacto Acesso em: 10 mai 2024

FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e pesquisa, v. 28, p. 151-162, 2002.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento, v. 27, p. e27001, 2021.

MEZZAROBA, Cristiano; PIRES, Giovani De Lorenzi. O agendamento midiático-esportivo: considerações a partir dos Jogos Pan-americanos Rio/2007. Logos, v. 17, n. 2, p. 124-136, 2010.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino o discurso da mídia impressa em campo. Revista brasileira de ciências do esporte, v. 26, n. 2, 2008

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Clacso, 2005. p. 107-30.

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Soraya Maria Bernardino Barreto Januário

Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos/UFPE.

Juliana Barachisio Lisboa

Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010), pós-graduada em General Journalism pela London School of Journalism (2013), mestranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia desde 2023. É jornalista, repórter, editora e apresentadora da TVE Bahia, emissora do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia.

Como citar

JANUáRIO, Soraya Barreto; LISBOA, Juliana Barachisio. A copa do mundo é nossa: percurso e motivações do Brasil como sede do Mundial de 2027. Ludopédio, São Paulo, v. 180, n. 4, 2024.
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