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A dança proibida

José Paulo Florenzano 22 de abril de 2024

Cognominado pelo jornalismo especializado de “Martelo Negro”, corpo-máquina forjado na Academia Brasileira de Pugilismo, Luís Inácio despontava no final dos anos cinquenta como uma das principais esperanças do boxe nacional. Após ser derrotado no estádio Centenário, em Montevidéu, ele se preparava no princípio de 1959 para desafiar o campeão sul-americano da categoria dos pesos meio-pesados, o uruguaio Dogomar Martinez.[1] Conforme estampava a manchete da Folha da Manhã, o confronto pelo título continental, programado desta feita para o ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, empolgava “a cidade inteira”.[2] De fato, a renda auferida pelos organizadores do evento constituir-se-ia em “recorde absoluto” para o boxe em todo o país, assinalando, ainda, a maior receita já alcançada por uma modalidade esportiva depois do futebol.[3]

Realizada na sexta-feira, 16 de janeiro, a luta se estenderia pelos quinze assaltos previstos, sendo decidida a favor do brasileiro por contagem de pontos. O difícil triunfo convertia Luís Inácio no novo “rei” da categoria dos pesos meio-pesados na América do Sul. Aos 29 anos, ele se via catapultado para o panteão dos heróis esportivos. Ainda no ginásio do Ibirapuera, experimentava a sensação inebriante de ser carregado nos braços pelos torcedores até os vestiários. Nos dias subsequentes, reportagens e textos lhe exaltavam o feito histórico. A Associação dos Desportistas Negros de São Paulo o reivindicava como digno representante da “raça” e o homenageava com um lauto almoço, acompanhado de muita música.

Luiz inácio
Fonte: reprodução

As homenagens e os convites sucederam-se ao longo dos meses, atestando a popularidade crescente do boxeador. Sempre solícito, ele procurava na medida do possível atender a todos. Foi dentro deste espírito que no dia 30 de junho de 1959 Luís Inácio compareceu à cidade de Ourinhos com o propósito de realizar uma luta beneficente para os combalidos cofres da Santa Casa local. Um gesto louvável, sem dúvida, empreendido no quadro de um compromisso social humanitário, agendado em uma pacata cidade do interior paulista. Nada, portanto, permitia prever o drama que viria abatê-lo de surpresa, qual um gancho inesperado e traiçoeiro do destino, desferido sob a forma de uma “lamentável cena de humilhação”.[4]

Com efeito, uma vez encerrada a apresentação beneficente, o campeão sul-americano dos pesos meio-pesados recebeu do Grêmio Recreativo Ourinhense um convite para visitar a egrégia instituição, em cujas dependências seria realizado um concorrido baile. Convite aceito, à noite Luisão foi ao animado baile. Após ocupar uma das mesas no salão, ele tomou a iniciativa de retirar uma moça para dançar, mas, para sua decepção, se viu “recusado”. Uma segunda jovem, porém, colocou-se à disposição para acompanhá-lo pelo salão em uma dança proibida.

De acordo com o relato de A Gazeta Esportiva, diante da cena de um homem negro dançando com uma mulher branca, um diretor do clube procurou um dos acompanhantes do boxeador para advertir que “alguns integrantes do quadro social já haviam protestado” diante do que se lhes afigurava uma cena ultrajante. Por conseguinte, solicitava que fosse transmitido ao responsável pela perturbação da ordem simbólica do salão, instituída por regras não escritas, mas que ele supunha estivessem claras a todos, o ultimato para que o pugilista negro se abstivesse de dançar, limitando-se a permanecer sentado em sua mesa, aliás, concessão magnânima da casa. A determinação, entretanto, não foi acatada. Contrariado pela recusa do convidado em se manter nos limites prescritos pela direção do clube, a autoridade mandou ato contínuo um funcionário trazer à sua presença o desavisado dançarino para proceder ao devido enquadramento das condutas. Segundo a descrição de A Gazeta Esportiva, ter-se-ia passado mais ou menos o seguinte diálogo:

__ “Você não pode dançar”

__ “Por que não? Eu sou convidado da diretoria do clube”

__ “Você foi convidado para visitar o clube, mas para dançar, não”

__ “Se vocês conservam preconceito racial, não deviam ter-me convidado. Não precisam humilhar-me assim…”

__ “Convidamos porque pensamos que você soubesse conhecer o seu lugar.”[5]

Ainda na porta do clube, antes de ir embora, o boxeador negro advertia o grupo de pessoas que havia se formado para acompanhar a discussão: “Leiam os jornais de São Paulo. Vou protestar contra o preconceito racial de vocês”. De fato, a imprensa logo começaria a repercutir o caso, embora não lhe concedesse a primeira página, preferindo, em vez disso, remetê-lo às seções internas de esporte. Nelas, por certo, a atitude do diretor do clube recebia uma condenação enunciada em termos contundentes. Ao mesmo tempo, porém, as reportagens tratavam-na apenas como uma anomalia na ordem geral das coisas, interpretação que o jornalista Paulo Eduardo sintetizava na Última Hora com uma frase de efeito: “Nossa pátria não é Little Rock”.[6] Mas decerto estava muito longe de ser uma democracia racial.

Luis Inácio
Fonte: Wikipedia

Nesse sentido, não resta dúvida, Luís Inácio havia feito uma dura descoberta no salão de danças. A coroação obtida dentro das quatro cordas do ringue não lhe franqueava a navegação social nas demais esferas da vida coletiva, ela não possuía o dom mágico de eliminar as barreiras raciais erguidas para salvaguardar os interesses materiais e os benefícios simbólicos dos grupos hegemônicos na sociedade brasileira. Uma revelação, aliás, semelhante à experimentada pelo então jovem boxeador Muhammad Ali ao regressar dos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, com a medalha de ouro. Consoante a narrativa histórico-lendária do Atleta de Alá, ele havia decidido sair pela cidade natal de Louisville para desfrutar a nova condição de ícone esportivo:

Preguei a medalha no peito e fui andar pelas ruas, pensando na glória que eu era, por ter dado uma vitória aos Estados Unidos. Senti vontade de tomar café, entrei num bar, mas fui expulso. Não aceitamos negros, me disseram.[7]

 As experiências de aviltamento envolvendo Muhammad Ali e Luís Inácio inserem-se, à primeira vista, em paisagens sociais opostas no que concerne às relações entre negros e brancos. Enquanto nos Estados Unidos a segregação racial encontrava-se inscrita na lei, sendo eliminada somente em meados dos anos sessenta em decorrência do movimento pelos direitos civis; no Brasil a palavra “raça” sequer figurava na constituição da República, prova da nossa presumida democracia racial. E, não obstante, situações semelhantes de discriminação haviam golpeado os dois boxeadores. O caso Luís Inácio, porém, estava longe de se configurar em um episódio isolado de uma cidade retrógrada, circunscrito ao salão de dança de um clube parado no tempo.

Ainda em 1959, dois meses após o episódio de Ourinhos, um caso muito similar ganharia realce nas páginas da grande imprensa. Depois de uma partida realizada na cidade de Uberaba, no interior de Minas Gerais, os atletas de basquete do Palmeiras foram convidados a comparecer ao baile organizado pelo Jóquei Clube. No entanto, segundo A Tribuna e Última Hora, antes de a delegação deixar o hotel em que se encontrava hospedada, veio um dirigente mineiro com a incumbência especial de comunicar ao dirigente paulista, Rodolfo Bandini, que o convite era extensivo a todos os integrantes da delegação, exceção feita aos atletas Walter de Souza e Rosa Branca, ambos negros. [8]  

 O novo episódio repercutido pela imprensa indicava a existência de uma versão nacional das leis de Jim Crow, pois, de acordo com a argumentação do dirigente mineiro, a proibição de negros no salão de festas constava dos estatutos do clube.[9] A igualdade jurídica consagrada na constituição republicana do país convivia, no plano da vida cotidiana, com estatutos, regulamentos e normas que asseguravam não somente a desigualdade entre brancos e negros, como, também, linhas de cor para preservar espaços de sociabilidade mais exclusivos aos primeiros. E, mesmo onde não havia nenhuma regra escrita, como, ao que tudo indica, era o caso do clube de Ourinhos, o código velado encarregava-se de zelar pela boa ordem no salão. O dispositivo de poder, dessa maneira, operava abaixo e à revelia da carta constitucional, escamoteando a discriminação através da distribuição dos corpos pelos espaços sociais, os negros, no tablado do boxe ou na quadra de basquete, os brancos, na área privilegiada do clube social.[10]

“Muita gente quer negro só para exibir”, criticava Luís Inácio, em cuja defesa manifestava-se a União Pugilista do Brasil, promovendo uma reunião de desagravo ao boxeador da Casa Verde.[11] A abertura do encontro coube ao presidente interino da UPB, José Luiz Vicente. Vários oradores se revezaram na denúncia ao racismo, dentre os quais Sebastião Bento Lins, presidente da Associação Cultural dos Negros, autor de uma “belíssima oração”, cujo conteúdo, infelizmente, A Gazeta Esportiva não transcreveu, limitando-se a informar que ela foi “calorosamente aplaudida”.[12] A violência simbólica ocorrida em Ourinhos marcaria profundamente a comunidade dos afrodescendentes em São Paulo. Dois anos depois, o lateral-direito da Seleção Brasileira, Djalma Santos, ainda a relembrava em uma entrevista concedida à revista A Gazeta Esportiva Ilustrada.

Não me esqueço o que fizeram ao pugilista Luis Inácio. E quem pode garantir que tal afronta não contribuiu para o declínio desse ex-campeão?[13]

Talvez tenha havido mais do que simples coincidência na debacle vertiginosa sofrida pelo boxeador.  Com efeito, a partir do episódio de Ourinhos, sobreveio uma série de derrotas na carreira de Luís Inácio: a perda do cetro, a ausência de rumo e o abandono do ringue. “A humilhação por que passei doeu fundo e continuará a doer por toda a minha vida”.[14]  Em um salão de dança, no baile da fantasia promovido pela democracia racial, as marcas da luta contra a discriminação ficaram para sempre inscritas no corpo e na alma de Luís Inácio.    


Notas

[1] Daí em diante a expressão passaria a acompanhá-lo nas reportagens. Cf. “Valorizada pela conduta de Peralta a vitória de Luizão”, A Gazeta Esportiva, 1 de abril de 1959.

[2] Cf. “Boxe empolga a cidade inteira: o título continental em jogo!”, Folha da Manhã, 16 de janeiro de 1959.

[3] Cf. “Recorde de renda no Ibirapuera”, Folha da Manhã, 18 de janeiro de 1959.

[4] Cf. “Luizão lamentavelmente humilhado em Ourinhos”, A Gazeta Esportiva, 2 de julho de 1959.

[5] Cf. “Luizão lamentavelmente humilhado em Ourinhos”, A Gazeta Esportiva, 2 de julho de 1959. Luizão comportara-se, aos olhos do quadro social do clube de branco, como o negro que “não sabe ficar no seu lugar”, expondo-se, por essa razão, às manifestações de preconceito e às práticas discriminatórias. Cf. Bastide, Roger; Fernandes, Florestan. “Brancos e Negros em São Paulo.”  São Paulo, Global, 2008, p.156

[6] Cf. “Brasil não é Little Rock”, Última Hora, 3 de julho de 1959.

[7] Cf. “Depois de Roma, o profissionalismo”, Folha de S. Paulo, 8 de março de 1971. Sobre o caráter lendário da história da medalha de ouro, ver Remnick, David. “O Rei do Mundo: Muhammad Ali e a ascensão de um herói americano”. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, pp.110-111.

[8] Cf. “Racismo”, A Tribuna, 2 de outubro de 1959. Segundo a reportagem, o episódio ocorreu nas dependências do Jóquei Clube da cidade. E a proibição para o ingresso dos atletas negros baseava-se “em um dispositivo regimental dos estatutos da agremiação”, fato que contrariava “o próprio texto da nossa constituição”. A Última Hora, porém, situava os acontecimentos no hotel. Segundo Rodolfo Bandini, citado pelo jornal, pouco antes de se dirigir ao baile com a delegação, ele foi procurado por um representante do jóquei “que nos informou não ser permitida a entrada no salão de baile dos atletas Walter e Rosa Branca”. Cf. “Ódio racista em Uberaba: atletas do Palmeiras barrados no Jóquei Clube!”, 29 de setembro de 1959. 

[9] Cf. “Ódio racista em Uberaba: atletas do Palmeiras barrados no Jóquei Clube!”, Última Hora, 29 de setembro de 1959. As leis segregacionistas Jim Crow foram adotadas no Sul dos Estados Unidos a partir do último quartel do século XIX. Perduraram até meados dos anos sessenta. Jim Crow remete à figura de um ator branco, Thomas Rice (1808-1860), que se pintava de preto – blackface – para representar de forma depreciativa e estereotipada o modo de ser dos afroamericanos. Cf. Verbete “Jim Crow”. In: Dicionário de Relações Étnicas e Raciais”. Ellis Cashmore. São Paulo, Summus – Selo Negro, 2000.

[10] Sobre a aparente contradição entre a inexistência de racismo na lei e o funcionamento, na vida cotidiana, do dispositivo racial. Cf. Foucault, Michel. “Vigiar e punir: nascimento da prisão”. Petrópolis, RJ, 1987, pp.194-195. 

[11] Cf. “Muita gente quer negro só para exibir”, Última Hora, 3 de julho de 1959.

[12] Cf. “Luizão luta hoje!”, A Gazeta Esportiva, 10 de julho de 1959.

[13] Cf. “Djalma Santos (sem complexos) o ´astro-negro` do Palmeiras!”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, nº 177, 1ª quinzena de fevereiro de 1961.

[14] Cf. “Luisão acusa: ´Muita gente só quer negro para ser exibido`”, Última Hora, 3 de julho de 1959.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A dança proibida. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 23, 2024.
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