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“Camisa 12”: um espaço de sociabilidade e paixão clubística na revista Placar

Maria Karolinne Rangel de Mello 30 de abril de 2024

Criada em março de 1970, a Revista Placar ao longo dos anos se consolidou como a revista esportiva de maior circulação no país (Rocco; Belmonte, 2014). Com suas edições semanais e edições comemorativas, publicava ao longo dos anos centenas de capas. Sua estrutura é composta por colunas escritas por diversos jornalistas influentes, sendo conhecida também por suas seções. Ao longo de seus 54 anos passou por diversas transformações, entre elas a inserção de um teor crítico em suas publicações nos anos oitenta e a transformação de suas publicações semanais para mensais na virada dos anos noventa (Saldanha, 2009).  Considerando a relevância da Revista Placar, o texto visa analisar uma de suas seções que desempenhou grande influência na cultura futebolística brasileira, principalmente entre os torcedores organizados.

A “Camisa 12” foi uma das seções observadas na revista durante a década de 70 e 80, a qual, sob o comando do personagem fictício Cafu, era destinada a troca de correspondências entre seus leitores, chamando a atenção ao incentivar a sociabilidade entre diferentes torcedores de diversas partes do Brasil e do mundo. Sob o lema “A torcida entra em campo e mostra o seu jogo” sofreu diversas transformações ao longo dos anos e em períodos de maior visibilidade chegava a ganhar três páginas exclusivas na revista.

Corroborando deste pressuposto, Norbert Elias e Eric Dunning (1992) apresentaram em “A busca da excitação” importantes discussões sobre sociabilidade e lazer em diferentes âmbitos da sociedade. Para eles, o futebol e as arquibancadas se configuram como importante atividade para a identificação de uma moral coletiva que tem como características o reconhecimento do outro, criação de laços sociais, afloramento de sentimentos e alívio de tensões recorrentes da privação das emoções em esferas de não lazer.

Outras características da “Camisa 12” são as figuras de futebol de botão de times nacionais, internacionais, seleções e federações estaduais presentes em quase todas as suas edições. Um outro quadro frequente é a palavra cruzada futebolística e a publicação de escudos de times sob pedido dos leitores. Havia também a seção “Troca-Troca” para trocar cartas, selos, flâmulas e revistas. Outras subseções da “Camisa 12” são: Lugar ao Sol, Minha Opinião, Você & o Ídolo, Boca no Trombone, Dica de Graça, Alô Mamãe, entre outras.

Segundo a Placar (edição nº 342, 1976), a sua caixa postal recebia em média 400 cartas por semana para a seção “Camisa 12”. Tais correspondências possuíam perfis diversificados, algumas criticavam a revista ou suas edições anteriores (através da subseção “Lá vem malho”) e outras elogiavam o teor humorístico da seção através de charges, piadas e outros conteúdos de humor. Mas, o principal aspecto da “Camisa 12” que deve ser ressaltado é a oportunidade de criação de laços entre os leitores. Essa particularidade pode ser observada na edição nº 406, em 1978, onde um torcedor envia uma carta com o endereço de vários torcedores com o propósito que fossem enviadas correspondências para essas pessoas, buscando que por meio delas fossem criadas amizades entre eles. Tal correspondência pode ser observada em centenas de edições com o mesmo propósito. Compreende-se aqui a importância da “Camisa 12” para os leitores/torcedores, onde na década de 70 possibilitou um espaço para discussão de dois aspectos antônimos: rivalidade e criação de laços.

Placar
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Em suas páginas, alimenta a rivalidade entre diferentes times e suas torcidas, podendo ser exemplificado em diversos debates sobre quem possuía mais torcedores no Brasil: Flamengo ou Corinthians. Em outro exemplo, pode ser observada através do debate entre times regionais, buscando esclarecer quem era o maior entre eles. Tais discussões se prolongaram por mais de uma edição, perpassando pela discussão sobre os melhores jogadores de determinada época.

Essas características continuam surgindo nos anos 80. Alguns dados foram encontrados na subseção “Escreva para” ou “Correio” onde os leitores buscam pessoas para trocar correspondências e até mesmo em busca de algo sério, como namoro. Além disso, a seção é utilizada para a aproximação entre as torcidas, por exemplo, na edição nº 562, em 1981, onde um leitor busca corresponder com chefes de torcida de todo o Brasil. Outros leitores escrevem para a Placar pedindo o endereço da sede de seus times, dos jogadores e sedes das torcidas.          Além do mais, também há cartas que os leitores pedem camisas e pôsteres autografados. Sendo compreendido como uma possibilidade do lazer, a manifestação torcedora transforma as sociabilidades envolvidas entre os indivíduos gerando um pertencimento clubístico através dessas formas de torcer (Campos, 2010). A “Camisa 12” é utilizada também com o propósito de unir os torcedores e incentivar o aumento de suas participações nas arquibancadas. Tal afirmação pode ser observada na edição nº 644, em 1982, onde um leitor escreve

sou são-paulino fanático, e quero cobrar todos os tricolores e demais torcidas paulistas que compareçam em maior número aos nossos estádios. Nossas torcidas, ultimamente, não têm empurrado os times em campo como faziam até algum tempo atrás. Voltaremos aos campos. Tenho certeza de que, com maior público, os clubes teriam mais dinheiro para investir e os jogadores mais motivação para atuarem.

 Na edição nº 580, em 1981, a Torcida Jovem do Flamengo agradece à Placar pela divulgação de seu endereço ao falar que estão conseguindo cada vez mais sócios. Na edição nº 589, em 1981, a revista publica uma carta que demonstra a influência da “Camisa 12” entre os torcedores, onde ela escreve “se não fossem vocês, as torcidas organizadas não teriam nenhuma divulgação” (Revista Placar, edição nº 589, p.20). Dessa maneira, é possível evidenciar aqui a importância da Camisa 12 para as torcidas organizadas, possibilitando que utilizem sua caixa postal 2372 como principal ferramenta de divulgação.

Além disso, as torcidas também utilizam a “Camisa 12” para divulgar sua organização interna, como por exemplo na edição nº 608, em 1981, onde um leitor pede para ser publicado como irá funcionar o I Congresso Nacional de Torcidas Organizadas, em 1982. Além disso, divulga os temas a serem discutidos, locais para acomodação dos inscritos e enfatizam que estão abertos a sugestões para melhorar a qualidade do evento.

Nesse ambiente, as torcidas organizadas aproveitavam para divulgar-se de diferentes formas: anunciando sua criação ou a inscrição de novos membros, divulgando seus produtos, criando vínculos com outras torcidas organizadas e utilizando do seu papel de torcedor para discordar sobre alguma ação do clube. Dessa forma, através do acesso aos leitores/torcedores de todo país, divulgava suas ações e, principalmente, reafirmaram a função do futebol como ferramenta de socialização. Sendo possível, dessa forma, criar identidades coletivas compartilhadas entre seus membros.

Em outro momento, na edição nº 641, em 1982, um leitor divulga a realização do I Censo Nacional de Torcidas, tendo como seu objetivo central o cadastramento de todas as torcidas organizadas do país. Na edição n° 722, em 1984, um leitor também está organizando esse cadastro e, para isso, pede para que as torcidas de todo Brasil enviem seus dados.

Nesse ambiente as mulheres também participavam através da subseção “Mulher tem vez”. Além de publicar diversas cartas de leitoras incentivando mulheres a formarem um time de futebol feminino, sendo de grande valor para o debate sobre a legalização do futebol feminino na década de setenta.

A revista também publicava o pedido e indignação de outras mulheres sobre os problemas enfrentados ao adentrar em um ambiente masculinizado, como o futebol. Ademais, denunciam o teor sexualizado em que as mulheres e, principalmente, as torcedoras eram representadas nas páginas da Revista Placar.

As relações de gênero presentes em torcidas de futebol foram observadas durante quase toda a história desse esporte no país, ditados por configurações que afirmavam a dominação dos homens nesse ambiente. Sendo o gênero uma das formas de dominação simbólica como caracteriza Bourdieu (2002), esse domínio masculino estaria enraizado em todas as relações sociais presentes na sociedade, logo também existindo em práticas culturais como o lazer.  Sendo representado em uma revista com o público alvo masculino.

Nos anos 90, esse ambiente disponibilizado aos torcedores se desfez por completo, visto que não foram encontrados em nenhuma edição. O fim da seção “Camisa 12” não teve explicações por parte da revista, mas podemos imaginar que tenha ligações com o início da marginalização sofrida pelos torcedores organizados. Tal problemática também foi observada nas próprias páginas da revista, alimentando tal exclusão. Durante a sua fase “Futebol, Sexo e Rock and Roll”, nos anos 90, a Revista Placar passou a distanciar-se das torcidas organizadas (Saldanha, 2009). E, logo, uma de tais medidas foi eliminar o seu espaço dentro da revista. Além disso, produziu diversas matérias que colocam os torcedores como os verdadeiros vilões do futebol. Ainda assim, é necessário ressaltar que a revista continuou com outras seções de cartas em suas páginas destinadas aos seus leitores, porém com um teor menos participativo. Restringindo-se a oportunidade de trocar edições da revista, descobrir curiosidades do futebol e também para a publicação de correspondências com teor humorístico.

Por fim, é crucial ressaltar o importante papel que essa seção teve para os torcedores. Ao se tornar um espaço de interação, sociabilidade e divulgação das torcidas possibilitou a criação e reafirmação de identidades coletivas compartilhadas entre seus leitores. Além de disponibilizar um amplo espaço para as agremiações torcedoras, tornou-se um grande instrumento para o fortalecimento das torcidas organizadas durante as décadas de setenta e oitenta.

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. de Maria Helena Küh-ner. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CAMPOS, Priscila Augusta Ferreira. Mulheres torcedoras do Cruzeiro Esporte Clube presentes no Mineirão.2010. 130 f. Dissertação (Mestrado em Estudos do Lazer) – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.

ELIAS, N.; DUNNING, E. A Busca da Excitação. Lisboa: Difel, 1992.

PLACAR, edição nº 406. São Paulo: Editora Abril, 1978.

PLACAR, edição nº 530. São Paulo: Editora Abril, 1980.

PLACAR, edição nº 562. São Paulo: Editora Abril, 1981.

PLACAR, edição nº 580. São Paulo: Editora Abril, 1981.

PLACAR, edição nº 589. São Paulo: Editora Abril, 1981.

PLACAR, edição nº 608. São Paulo: Editora Abril, 1981.

PLACAR, edição nº641. São Paulo: Editora Abril, 1982.

PLACAR, edição nº 644. São Paulo: Editora Abril, 1982.

PLACAR, edição nº 648. São Paulo: Editora Abril, 1982.

PLACAR, edição nº 722. São Paulo: Editora Abril, 1984.

ROCCO JUNIOR, Ary José; BELMONTE, Wagner Barge. Da informação ao entretenimento: análise do jornalismo esportivo brasileiro pela trajetória histórica da revista Placar. In: Anais do XIX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, p.1-15, 2014.

SALDANHA, Renato Machado. Placar e a Produção de uma Representação de Futebol Moderno. 2009. 101 f. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação Física). Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MELLO, Maria Karolinne Rangel de. “Camisa 12”: um espaço de sociabilidade e paixão clubística na revista Placar. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 32, 2024.
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