Tenho o apreço por voltar.

Voltar a uma imagem, a uma memória, a um lugar…

A experiencia de fazer um filme, de certo modo, vai encontrando outras objetividades pelo percurso, conforme atingimos a materialidade da história fílmica, através da montagem. A possibilidade de voltar é uma dessas coisas que se cria com o percurso. Conforme a narrativa caminha para frente, vai inventando um caminho que também é para trás. Uma outra linha, além das quatro já conhecidas, uma linha de retorno que permite dobrar o tempo, que é sentido de outro jeito pelo corpo quando calçadas as chuteiras.

Retornando ao que agora é memória, encontrei novamente Kauan da Luz, um dos oito jogadores-cineastas. Em entrevista, perguntei ao volante sobre seus ídolos no futebol, torcendo para que a resposta não fosse como aquela que ouvi durante a pesquisa de campo. Fui surpreendida quando respondeu:

– “Ídolo no futebol eu não tenho nenhum, ídolo seria meu pai”.

Duas coisas se colocam aí: a impossibilidade cada vez maior de termos ídolos no futebol e do quanto o futebol é um sonho que se sonha junto.

Kauan

***

Essa semana que passou, uma entrevista do goleiro Cássio chamou atenção nas redes. Conversando com o amigo-ludopédico, Marco Lourenço, fui instigada a pensar nessa relação que estabelecemos com nossos ídolos futebolísticos. E da necessidade que temos em criar ídolos para depois comê-los vivos.

Cássio parecia exausto enquanto falava, se agarrando nas palavras que fazem lembrar que ele é humano, para permanecer de pé:

“ – quando eu comecei o ano sabia que ia ser assim, a conta ia sempre sobrar pra mim. […] Vou te falar, tô indo até em psicólogo, psiquiatra, porque tá foda […]. Tenho apanhado igual um cachorro […]. Eu tô pagando a conta tem muito tempo […]. Eu sou ser humano, eu sou igual… uma hora a conta vem assim como todas as situações, mas tudo bem, pode botar na minha conta…”

Depois de lembrar-nos que é humano, Cássio ainda diz “eu sou igual”, numa nova tentativa de fazer ver que sua pele também sangra como a nossa.  Comecei a questionar: é possível vermos Cássio naquilo que é além do Cássio-goleiro do Corinthians? Honestamente, não sei. Mas existem tentativas nesse sentido, de humanizar nossos ídolos.

Lembro de uma série produzida pelo Esporte Espetacular que buscava mostrar a realidade de mães-solo, apresentando as criadoras e as criaturas. Três mães-solo que criaram três jogadores de destaque nacional, uma delas, Luciana Ramos, mãe de Cássio.

A reportagem emociona. Mostra uma família humilde, uma infância vivida em uma casa pequena, com frestas pelas quais o sol entrava para acordar Cássio que dormia no chão, devido a estatura de goleiro. Luciana diz:

“– Eu fiz uma promessa à Santa Rita de Cássia para o Cássio ficar no Grêmio. Não deu certo no Grêmio, mas ele continuou adiante. Sei lá… Eu tinha aquela fé que ele ia conseguir, que ele ia ficar, virar goleiro de um grande time […]”.

A câmera mostra Luciana fazendo maionese de batata para o almoço em família. Depois ouvimos o filho de Luciana falando da comida preferida que era preparada pela mãe. Tanta coisa aí… Um misto de emoção, de realidade, de sonho compartilhado, de vontade de comer a maionese de batata da minha mãe, e por fim, uma aproximação com aquilo que é o ídolo quando ele não é ídolo que tem a duração da reportagem. Ao vestir as chuteiras não conseguimos mais vê-lo como filho de Luciana, é apenas o goleiro do Corinthians novamente.

***

Quem é jogador de futebol aprende desde cedo sobre voltar. Para dois lugares em específico: para si e para aquilo que conheceram como casa. Na vida em que vivem, naquilo que é a vida-futebol, é preciso deixar para trás um pouco de si e um pouco dos outros, para ser tudo aquilo que esperam que um jogador seja[1]. Ou melhor dizendo, o que esperam que um ídolo seja.

A construção de um jogador de futebol passa por aí, pela assimilação de características subjetivas dos ídolos que tem e, na invenção do que fazem com isso, ao passo em que trilham sua carreira. Mas o que fica para trás é, tantas vezes, o pouco daquilo que os manteve nesse lugar, vivendo a dura vida de carregar um sonho que é de toda uma família, e de ser crucificado por fazer algo que nós fazemos todos os dias: errar.

Kauan não ter ídolo no futebol me traz um certo alívio. Ele sabe como o futebol é, em suas palavras “sujo”. Sabe o quanto sofreu e o quanto deixou para trás para poder seguir no caminho de se profissionalizar, lá na frente. Viveu isso desde muito cedo, ficou quase um ano sem voltar para casa, para família – e para aquilo que é quando não é jogador –, por conta do futebol, porque o dinheiro não dava, porque não tinha tempo…

Perguntei: você sente que teve privacidade desde que começou a jogar futebol?

Kauan respondeu:

“- Não, nada! […] Querendo ou não faz parte”.

E faz. Há anos vem dividindo casa com vários atletas, hoje divide quarto com quatro meninos, além do sonho da profissionalização. Sem privacidade alguma, mesmo ainda sem fama, sinto que Kauan entende o peso que isso tem na vida de um jogador. Não há privacidade, não há tempo para voltar e mesmo quando tiver, se viver o sonho pelo qual tem buscado corre o risco de ser ídolo de alguém que não lembre que Kauan é humano igual a Cássio. Que sente saudade da comida da mãe no domingo de meio-dia e que às vezes só quer ficar em paz…

No exercício que propus a ele, de imaginar onde estará daqui dez anos, Kauan disse que quer estar em um lugar bom, independente de qual seja. Não sonha com a idolatria, ou com milhões, mas com poder ajudar a família e estar mentalmente saudável.

[1] MORO, Eduarda. Léo Zonta: arranhaduras subjetivas e tempo-futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 25, 2024.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MORO, Eduarda. Ser (ídolo) ou não ser…. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 30, 2024.
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