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A dimensão ideológica da empresarização dos clubes

Irlan Simões da Cruz Santos 15 de outubro de 2020

O texto que segue corresponde ao tópico “Dimensão política-ideológica”, terceiro item dos cinco presentes no artigo “Clube-empresa: histórico, impactos reais e abordagens alternativas”. Este artigo, de minha autoria, é o texto introdutório do livro Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol, lançado em junho de 2020 pela Editora Corner. 

Muita coisa acontece entre a concepção de uma ideia e a aprovação de uma lei. Modelos jurídicos tendem a ser moldados pela correlação de forças conjuntural do parlamento que legisla sobre ela. Os modelos dos países elencados não apenas são consideravelmente distintos, como também possuem suas realidades particulares como ponto de partida, as suas características sociopolíticas como meio e a decisão particular de cada clube como a camada mais superficial e visível desse processo.

Como dito anteriormente, a ideia de clubes como empresas está alicerçada em concepções ideológicas de natureza políticas muito sólidas e coesas. O próximo item busca revelar essa relação.

Dimensão política-ideológica

Utilizado de forma exaustiva, repetitiva e, muitas vezes, meramente protocolar por seus críticos, o termo “neoliberalismo”, ou “pensamento neoliberal”, é comumente considerado equivocado e inexato por aqueles que nele seriam enquadrados. Pouco importa aqui a terminologia consensual que vai evitar que o leitor feche este livro logo nas suas páginas iniciais. Conceitos tomam a forma de termos para resumir longas cadeias de raciocínio. Importa menos a terminologia que mais agrade a uma ou outra linha intelectual do que a concordância inevitável da gravidade da ruptura provocada pela “renovação” do pensamento liberal. Esse novo liberalismo submeteu seus seguidores a um profundo reenquadramento conceitual, mesmo que não se percebesse.

Muitas ideias atravessam os tempos de forma silenciosa, expressadas e encampadas por interlocutores que podem ignorar suas raízes. No caso em questão, da defesa de que clubes de futebol se transformem em empresas, aparenta muito mais terem sido objeto de assimilação osmótica de um discurso que arroga tecnicidade apolítica, do que necessariamente uma reivindicação consciente de um modo de enxergar a realidade. O que friso é que essas são crenças oriundas de um fundo ideológico muito mais profundo e que existem conexões muito sólidas entre essas concepções.

Perry Anderson (2012, p. 29-30) definia uma das características desse movimento como uma aversão à “política”, dentro de um conceito filosófico muito específico que, na verdade, significava a denúncia da própria ideia clássica de democracia. Uma linha político-filosófica contrária à ampliação do poder decisório ao que se entendia por “massas”, cuja fonte de poder residiria no número, no volume, e não no saber. A rejeição não era necessariamente às formas institucionais em si, mas aos modos como estavam sendo aceitos os processos decisórios de sua constituição. Daí a defesa de uma individualidade radical contra a “servidão”.

Desse modo, “democracia” é um conceito relativo, enquanto que a “liberdade” não. Para combater tal servidão da imposição coletiva, seria admissível a instauração de um regime de caráter autoritário e centralizado, por ser mais suscetível à eficiência pretendida pelos modelos econômicos desejados. Anderson (2012, p. 35) revela como influenciadores intelectuais importantes dessa linha eram totalmente francos quando afirmavam que a instituição democrática, como estava concebida, conduzia a sociedade a uma ordem totalitária. Neles, totalitarismo se opõe à liberdade, autoritarismo se opõe à democracia. Era perfeitamente cabível aceitar um “autoritarismo garantidor das liberdades”. Um conceito muito específico de liberdade, calcado em uma crença absoluta da concorrência de mercado como motor de progresso.

Essa renovação do pensamento liberal, cujos debates inaugurados nos anos de 1930 e de 1940 foram decisivos, não pode ser perdida de vista em sua importância histórica. É comum remeter como ato fundacional desse movimento político e econômico de renovação do pensamento liberal a partir da Sociedade Mont-Pèlerin, fundada em 1947 por Friedrich Von Hayek, seu mestre Ludwig Von Mises, Karl Popper, Milton Friedman, dentre outros. Mas Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 71) defendem que se leve em consideração o papel importante do Colóquio Walter Lippmann, ocorrido em Paris, com vários desses nomes, no ano de 1938. Lá, pela primeira vez, o termo “neoliberalismo” é utilizado, já dentro do espírito fundacional de um movimento, que apenas se consolidou em Mont-Pèlerin, após o fim da guerra.

Ainda que tenha caído em desuso, o fato é que seus primeiros agitadores almejavam redefinir o liberalismo em sua renovação neoliberal. A sua formação é oriunda de um período de grave crise no campo que acreditava estar “ao centro” do espectro político, se opondo em ambos os flancos pelos “totalitarismos” de esquerda e de direita – a ameaça socialista internacional e o trauma recente do horror nazifascista. Mas a grave crise também estava no próprio entendimento da raiz fundamental do pensamento liberal: ao longo de muito tempo dominado por uma tendência conservadora que dava ao mercado uma acepção “natural” e, portanto, não passível de ser provida de uma intervenção estatal – que seria até ali invariavelmente negativa, independente de sua finalidade –; esse campo buscava se reformular sob novos marcos. Depois da grande guerra, novamente Perry Anderson (2012, p. 44), “o antigo mundo político de governantes proprietários fundiários, eleitorados limitados, orçamentos modestos e moedas estáveis desabou”.

O domínio do direito se torna um elemento central para a eliminação dessas crenças naturalistas sobre a lógica de mercado. Entender a economia como um domínio isolado da política era um equívoco, pois o mercado era, em suma, um produto do direito. Um equívoco que acreditavam estar no cerne da permissividade que gerou o crescimento do socialismo e de outras práticas “niveladoras”. Contratos estabelecem mercados e protegem a propriedade, o direito dá validade e estabilidade aos contratos. Não haveria nada de natural na constituição deles. Seu desafio era colocar isso em prática, a partir do Estado, sem extrapolar suas competências, sob o risco de contaminar-se de um sedutor desejo de intervenção. O laissez faire não simplesmente existiria, ele precisaria ser constituído.

Esse liberalismo renovado precisava então formular uma ideia de Estado que nunca esteve no cerne das discussões intelectuais desse campo político e teórico. Era preciso deixar de lado o espontaneísmo, para elaborar um programa político, uma agenda concisa e disposta a formalizar os dispositivos capazes de fazer da ordem de mercado uma ordem estabelecida. Um liberalismo disposto a elaborar, anotam Dardot e Laval (2016 p. 85), um ‘“intervencionismo liberal, um ‘liberalismo construtor’, um dirigismo do Estado que convém distinguir de um intervencionismo coletivista e planista”. Caberia a esse intervencionismo liberal garantir o equilíbrio do jogo da concorrência em regras claras, proporcionando à sociedade a chance de colher os “benefícios da competição”.

Pierre Dardot e Christian Laval são precisos ao observar que esse movimento opera a construção de uma nova “racionalidade governamental”, ou uma “governamentalidade”. Não apenas uma doutrina, mas o “desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade” (2016, p. 34), uma racionalidade que tem como característica principal a “generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (2016, p. 17).

O liberalismo renovado olha de longe seus adversários ideológicos, disseca-os e percebe que a produção de um “novo homem” também era objeto de sua ambição. Suas ideias não atravessam o tempo apenas por aderência natural e consciente, mas constroem um mundo onde não parece ser possível viver sem aderi-las. Cada sujeito é um empreendimento que determina seus concorrentes e parceiros, não mais em relações sociais. O princípio da concorrência atravessa verticalmente todas as escalas da vida e da sociedade: nas políticas públicas, nas relações econômicas mundiais, na subjetividade dos indivíduos. E também do futebol.

Não é preciso ir muito longe para perceber que essas são as bases ideológicas que, transferidas para o campo do futebol, atacaram as associações civis sem fins lucrativos, com suas estruturas “políticas” eleitorais inadequadas ao futebol-negócio que florescia nessa conjuntura de crescimento econômico sem precedentes. Em sua contraposição, nada menos seria possível do que a constituição de uma ordem na qual imperasse o anseio individual pelas conquistas e riquezas, única via politicamente saudável e eficiente para o desenvolvimento: a lógica de mercado.

E daí, novamente, se fosse o caso para a aceitação de uma ordem autoritária e centralizada, capaz de controlar a “política” e atuar a favor do equilíbrio, da estabilidade e do crescimento, que assim fosse. A associação civil democrática então deveria ser expurgada da instituição esportiva produtora de riquezas. Cortada a raiz da “serfdom”, ao público dos estádios seria oferecido o produto de excelência, guiado pelos preceitos adequados de administração: uma norma técnica, apolítica e gananciosa de procedimento gerencial.

É importante relembrar que as associações, em geral, sempre foram regidas por princípios muito próximos de uma república liberal moderna, a constituição anteriormente explicada de três órgãos que dinamizavam funções semelhantes aos poderes executivo, legislativo e judiciário é o retrato mais cristalino disso. Maiores ou menores distorções desse organismo, por outra perspectiva política próxima, seriam parte do caro processo político demandado pela democracia. Mas, para essa abordagem mais radical do liberalismo renovado, a opinião até importaria, desde que a vontade popular não pudesse se tornar autoridade. Aqui, ser um fã de uma empresa produtora de espetáculo futebolístico é ter a “liberdade” de manifestar sua posição por meio do consumo ou do não consumo – essa forma de “protesto” autorizada aos cidadãos-clientes –, jamais do voto ou da voz.

Dentro desses pressupostos, a ausência de finalidade lucrativa não apenas impedia o clube de alcançar padrões superiores de eficiência administrativa, como também era responsável pela coexistência de valores e interesses conflitantes, muitas vezes espúrios, constantemente inconciliáveis, portanto, nefastos. No seu lugar, uma sociedade dirigida por finalidades lucrativas seria capaz de suplantar as diferenças e congregar os anseios, oferecendo óbvios benefícios aos seus proprietários, e gerando vantagens aos seus consumidores. Definitivamente, mais do que uma questão operacional, a transformação de clubes em empresas também foi um debate profundamente político e ideológico.

Falta, entretanto, uma abordagem escalar. Esses pressupostos consideravam que a concorrência “generalizada e sem tréguas”, mas em situações leais, resultaria na vitória dos mais aptos. A grande questão aqui é que o mérito esportivo é absolutamente transplantado pelo mérito econômico. Os menos aptos, portanto, teriam o fatal e inevitável destino da sua extinção. Já compreendíamos a total ausência de equivalência entre os resultados esportivos e os resultados financeiros no futebol, sob essa racionalidade, então, se produz uma razão ainda mais inadequada.

Milton Friedman com o então presidente Ronald Reagan e Nancy Reagan em 1988. Foto: Wikipédia

Quando esse liberalismo renovado ganhou a forte marca de distinção da “Escola de Chicago”, seus atores políticos-ideológicos já estavam articulados de forma muito concisa. Dos primeiros anos do regime ditatorial de Augusto Pinochet no Chile, Milton Friedman, prócere dessa instituição, discípulo de Hayek e um dos nomes fundadores da Sociedade Mont-Pèlerin, é um nome muito recorrente dos círculos intelectuais político-econômicos. O país sul-americano sempre é destacado como “laboratório” das ideias neoliberais, mas também é de onde tiramos os melhores exemplos de como as novas propostas para um futebol de empresas tem fundamentos políticos-ideológicos profundos.

A participação de Friedman na formação de uma nova elite intelectual e política daquele país foi diretamente realizada pela Fundación de Estudios Económicos BHC, ligada ao Banco Hipotecário de Chile (BHC). Essa instituição, então quase centenária, foi extremamente relevante dentro desse período histórico, publicando “Milton Friedman em Chile: Bases para un desarrollo económico” em 1975, uma obra-símbolo das ideias que norteavam os grupos de apoio ao regime de Pinochet (quando ainda era possível considerá-lo como uma “salvação” à ameaça socialista de Salvador Allende). Essa obra conta com a íntegra de uma carta enviada por Milton Friedman a Augusto Pinochet. Foi do BHC que saiu o grupo apelidado de “Los Pirañas”, uma fração da versão chilena da marca de distinção intelectual e gerencial mundialmente conhecida como “Chicago Boys”.

Daniel Matamala (2015, p. 84) observa o imenso peso intervencionista do regime: “O processo que girou o país em 180 graus em seu desenvolvimento político, econômico e social, praticamente não deixou área da vida nacional intocada”. O regime manobra politicamente para “eleger” um novo presidente da Asociación Central de Fútbol, e empossa o general Eduardo Gordon Cañas.

Mas são “Los Pirañas” as peças-chave do episódio em que o ditador Augusto Pinochet se sentiu ameaçado pela eleição no Club Social de Deportivo Colo-Colo em 1976, clube mais popular do país. A chapa favorita era formada por Antonio Labán, que contava com apoio público de Tucapel Jiménez, sindicalista, opositor e figura incômoda ao regime.[1] A solução encontrada por Pinochet foi criativa: suspendeu as eleições no Colo-Colo, alegou que as altas dívidas do clube exigiam uma intervenção, e designou o Grupo BHC para a função.

“Nessa época o predomínio dos Chicago Boys na equipe econômica já estava dado, e os novos grupos financeiros adquiriram cotas importantes de poder. Foi quando o governo decidiu levar suas receitas econômicas ao futebol”, contextualiza Daniel Matamala (2015, p. 176). Alberto Simián, então gerente da Financiera Nacional, (propriedade do Grupo Vial, como o BHC) foi o nome colocado pelo banco no Colo-Colo em 2 de abril de 1976.

As páginas da Revista Estádio exaltavam a iniciativa, estampando o novo gestor como alguém formado nos Estados Unidos, “um vencedor”, trajando terno e gravata. Simián declara que “Los Pirañas” estavam preparados para o desafio: “Sabendo como somos na área empresarial, sabemos que faremos bem. Se houvesse alguma dúvida, a menor dúvida, não teríamos aceitado”.[1] A manchete da matéria era “Empresas com camiseta”, uma clara alusão a essa nova ideia em formação. Matamala completa: “A decisão tinha uma lógica impecável: o que poderia ser melhor para legitimar a nova ortodoxia econômica, senão usando-a para tirar de seus problemas crônicos a instituição mais popular do país?” (2015, p. 176).

A experiência de gerenciamento privado imposta por Pinochet ao clube Colo-Colo foi desastrosa, para não dizer “altamente suspeita”. Para além da falta de tino para o futebol, Simián se complicou com promessas de títulos não cumpridas e jogadores em greve por conta de salários atrasados. Ao final de 1978, o Colo-Colo não tinha títulos e quase não tinha jogadores: apenas 10 atletas tinham contratos com o clube comandado pelos Chicago Boys. Em dezembro daquele mesmo ano, toda a cúpula do BHC renuncia. Exceto Alberto Simián, que teria a missão de recuperar o dinheiro investido pelo grupo.

O Colo-Colo saiu ainda mais endividado do que se encontrava antes da intervenção, com débitos milionários dos quais cerca de 60% eram devidos exatamente ao BHC, a instituição que assumiu a sua gestão para resolver tais pendências. É certo que regimes ditatoriais, clássicos falseadores históricos, tendem a não deixar registros dos seus feitos, mas estão devidamente marcadas as referências que os jovens Chicago Boys traziam na bagagem ainda em 1976, na defesa de que os clubes se transformassem em sociedades anônimas.[2]

Maior coincidência que isso, só o fato de terem fracassado redondamente quanto à missão à qual serviam: sob os desígnios de uma ditadura, a favor da liberdade de mercado e contra um clube de caráter democrático com uma diretoria eleita pelos membros de sua associação civil formadora. A conclusão deste artigo, e da obra que o hospeda, é de que tais pressupostos sequer se sustentam frente aos fatos. É na observação honesta dos atores políticos e econômicos que compuseram as castas proprietárias dos clubes de futebol que poderemos observar de uma forma mais concreta o fracasso dessas perspectivas. Principalmente, e acima de tudo, no que a propriedade de clubes de futebol ao redor do mundo revela da quase ausência de uma lógica de mercado nesse segmento.

Notas

[1] Tucapel Jímenez era presidente da Asociación Nacional de Empleados Fiscales e militante do Partido Radical. Foi assassinado pela inteligência do exército em 1982.

[2] Vários outros clubes se encantaram com a ideia de um gerenciamento privado. O período se encerrou com um grave quadro de endividamento dos clubes locais.


Texto originalmente publicado no blog do LEME.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Irlan Simões da C. Santos

Jornalista e pesquisador do futebol. Doutorando em Comunicação (PPGCom/UERJ). Autor do livro "Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno".    

Como citar

SANTOS, Irlan Simões da Cruz. A dimensão ideológica da empresarização dos clubes. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 35, 2020.
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