176.22

A “geração bronzeada”

José Paulo Florenzano 22 de fevereiro de 2024

O núcleo original do surfe, no Rio de Janeiro, constituído na primeira metade dos anos sessenta do século passado, reunia basicamente os praticantes da caça submarina, esporte restrito ao seleto grupo de jovens da Zona Sul. Segundo o Correio da Manhã, o “ultra perigoso esporte real havaiano” só estava ao alcance de “ousados e experimentados mergulhadores”, e, consoante o artigo de Cleber Dias, Rafael Forte e Victor Andrade e Melo, endinheirados.[1]

De fato, a correlação então estabelecida entre a prática lúdica e a condição socioeconômica revelava-se na trajetória dos integrantes do aludido grupo:  Irencyr Beltrão, “entre uma onda e um mergulho”, estudava arquitetura, enquanto Arduíno Colassanti frequentava as piscinas do Country Club, cujo slogan de o “mais fechado” era bem conhecido.[2] Afonso Bebiano, por sua vez, “mestre” na arte de deslizar sobre as ondas, exercia a atividade de industrial. Já Bruno Harmanny, campeão mundial de caça submarina, “magnífico homem do mar”, dedicava-se nos últimos tempos à “prática do surfe”.[3] Esta última, portanto, integrava ao lado do remo, da vela e da caça submarina o subcampo dos esportes aquáticos, área exclusiva das classes sociais mais privilegiadas.[4] Conforme esclarecia Yllen Kerr, responsável pela coluna “Caça Submarina”, no Jornal do Brasil, qualquer jovem interessado podia encomendar em uma marcenaria especializada de Ipanema uma prancha de madeira no valor de 40 mil cruzeiros, ou, ainda, uma prancha de fibra de vidro, mais moderna, ao custo de 200 mil cruzeiros.[5] Trocando em miúdos: “O surfe, como todo esporte, tem um preço, o que na linguagem atual quer dizer: caro”.[6]

Nenhuma dúvida, portanto, em relação ao estrato socioeconômico no qual se inseria o grupo pioneiro de surfistas no Rio de Janeiro, todos eles “membros da elite que agregaram prestígio simbólico à modalidade”.[7] Também inexiste qualquer controvérsia a respeito do ponto de partida da prática esportiva que começava a agitar as praias cariocas. De acordo com a imprensa carioca, cabia ao Arpoador a condição de “berço” do surfe no Rio de Janeiro.[8] Ali, bem antes do advento da nova modalidade, os banhistas já se divertiam com a técnica primária de pegar “jacaré”. Em meados dos anos sessenta, contudo, verificara-se uma dupla mudança: do “jacaré” para o surfe e da prancha de madeira para a prancha de fibra de vidro. A prática esportiva ingressava definitivamente na “era da competição”, cujo marco residia na realização do I Campeonato Carioca de Surfe, programado não por acaso para a praia do Arpoador.

Contando com cerca de quarenta inscritos, entre os quais apareciam os nomes dos “famosos ases de caça submarina”, a competição inédita representava um divisor de águas na história da modalidade esportiva.[9] Doravante, no amplo leque de atrações da Cidade Maravilhosa, reluzia o espetáculo das “tábuas coloridas”, exibidas por corpos atléticos, másculos e bronzeados, “cavaleiros louros” que despencavam das ondas em manobras arriscadas. [10] Com efeito, era grande a expectativa em torno de um torneio que recebia do Jornal do Brasil entusiástico apoio, traduzido na oferta de medalhas aos vencedores. De fato, o periódico não se limitava a cobrir o evento, constituindo-se em um agente importante na difusão da prática esportiva entre a juventude endinheirada do Rio de Janeiro. Durante toda semana que a precedera, o Jornal do Brasil exortara o público leitor a comparecer e prestigiar a competição, acomodando-se na “arquibancada” natural formada pelas pedras do Arpoador.[11]

Mas nem tudo eram flores no processo de difusão da nova prática cultural.  Não foi preciso esperar muito para que o surfe viesse a despertar críticas e ganhar opositores, sob o argumento de se configurar como um esporte “perigoso”, o qual, mais do que simplesmente “incomodar” os demais banhistas, os “ameaçava” com o equipamento representado por uma “tábua dura”. Tal era a posição do diretor do Serviço de Salvamento, Durval Viana, que exigia nada mais, nada menos do que a sua “proibição. [12]  E, com efeito, em meio à expectativa pela realização do I Campeonato Carioca, a imprensa noticiava a proibição da prática do surfe no Arpoador antes das 14 horas.[13]

surfe
Fonte: Wikipédia

O surfe, portanto, surgia despertando de forma concomitante apoios e oposições, elogios e críticas, adeptos e adversários. No primeiro round dessa contenda travada nas praias cariocas, os primeiros levaram vantagem sobre os segundos, pois, conforme estava previamente programado, na manhã de 25 de julho, sábado, teve lugar a primeira etapa do I Torneio de Surfe da Guanabara, como também se denominava a competição patrocinada pelo Jornal do Brasil. Entre os componentes do júri, destacava-se a figura do campeão australiano, Peter Troy, que voltava de uma disputa realizada no Peru, país que integrava o circuito mundial da modalidade esportiva.[14] O periódico atribuía ao forasteiro um papel de relevo na difusão do surfe entre os cariocas, salientando a importância de sua estadia no Rio de Janeiro para a transmissão dos “segredos” da arte inventada e cultuada no Havaí por Reis e Chefes.[15] A menção à origem nobre do surfe não era casual. Inserida na narrativa que o jornal vinha construindo a respeito da prática lúdica, servia para legitimá-la aos olhos da assim denominada boa sociedade, e, ao mesmo tempo, circunscrevê-la ao seleto grupo que a cultivava nas praias cariocas.[16]

A despeito, porém, do esforço dispendido pelo jornal para propagar a nova onda, uma vez encerrada a competição, voltaram as pressões para a proibição do surfe, responsabilizado, ao lado do “jacaré”, pelo “grande número de acidentes” registrados pelo Serviço de Salvamento. [17]  Sendo assim, a proibição foi afinal adotada no mês de outubro pela Secretaria de Segurança Pública do Estado da Guanabara. Ela, contudo, abrangia um leque mais amplo de atividades esportivas cuja pratica só estava autorizada a partir das 14 horas: tênis, vôlei, frescobol, medicine ball, futebol.[18] Em sua coluna no jornal Última Hora, João Saldanha atribuía à Neném Prancha a iniciativa de propor e negociar com as autoridades a permissão para a prática do futebol de praia no período da tarde. Em contrapartida, o combativo jornalista acusava a turma do frescobol de ocupar o espaço na base da “ignorância”, sem “respeitar o direito dos outros”.[19]

A praia, desse modo, desvelava-se um espaço de intensa disputa envolvendo agentes sociais, formadores de opinião e instâncias de poder. De um lado, havia a tentativa de regulamentar a melhor maneira de utilizá-la, quais as atividades permitidas, por quem, em qual horário. De outro lado, havia o amplo repertório de táticas empregadas pelos banhistas para driblar o emaranhado de normas restritivas, reeditadas periodicamente devido a incapacidade dos agentes da ordem de fazê-las cumprir. Havia, ainda, as regras não escritas da ocupação do espaço relativas à origem social, o local de residência e a identidade racial dos banhistas. Nesse sentido, conforme assinalado pela historiografia, o surfe se caracterizava, então, por ser uma modalidade esportiva praticada por jovens brancos, das camadas mais privilegiadas da sociedade carioca, moradores dos bairros da Zona Sul, incluindo as mulheres.[20]

Com efeito, se a prancha de surfe não se afigurava um objeto sexualmente neutro, ela, no entanto, estava muito distante de ser generificada como a bola, para os meninos, e a boneca, para as meninas. De fato, a iconografia revela-nos a presença feminina concomitantemente à implantação da prática lúdica nas praias cariocas.[21]Uma atleta em especial sobressaía na cobertura jornalística. Fernanda Guerra, 17 anos, cabelos louros e olhos azuis, “figura máxima” do surfe guanabarino – de acordo com o Correio da Manhã – a “primeira menina” a deslizar sobre as ondas no Arpoador.[22] O periódico lhe traçava um elogioso perfil, destacando os títulos arrebatados nas competições de surfe, as medalhas obtidas na natação, no atletismo e nos saltos ornamentais, tanto pelo Fluminense quanto pelo Anglo-Americano.[23] Ela era um “belo exemplo da nova geração, gente sadia e que sabe o que quer”.

A fotografia que ilustrava a matéria a exibia de corpo inteiro ao lado da prancha importada, confeccionada de fibra de vidro. A conjunção estabelecida entre a prancha de surfe e a garota do Arpoador, colocava em questão, por sua vez, a representação social da garota de Ipanema, retratada como uma figura “meiga, romântica, doméstica, incuravelmente feminina”, cuja “graciosidade de movimentos” os olhares masculinos admiravam ao vê-la jogar o “frescobol”.[24] A narrativa jornalística, desse modo, evocava imagens contraditórias a respeito da jovem carioca da Zona Sul, ora retratada como uma figura passiva e subalterna, ora celebrada como uma personagem autônoma e desbravadora.

A identidade da primeira geração de surfistas ganhava contornos inconfundíveis nos espaços exclusivos frequentados pelas elites cariocas, definindo-se pelo “porte atlético”, o corpo “saudável”, as “marcas de sol”, adquiridas sobre pranchas de cores berrantes, manejadas de forma hábil e arrojada tanto por homens quanto por mulheres, embora houvesse, decerto, o predomínio dos primeiros, os “cavaleiros louros”, como os designava o Jornal do Brasil, figuras semidivinas que emergiam das ondas como os legítimos representantes de uma “geração bronzeada”. [25]


Notas

[1]  Dias, Cleber; Fortes, Rafael; Melo, Victor Andrade de. Sobre as ondas: surfe, juventude e cultura no Rio de Janeiro dos anos 1960, 2012.  Revista “Estudos Históricos”, v.25 n.49 (2012): Anos 1960. Cf. “Campeonato de Surfe”, Correio da Manhã, 17 de junho de 1964.

[2] Cf. A coluna: “Caça Submarina”, de Yllen Kerr, Jornal do Brasil, 27 de maio de 1965 e “Federação de Surfe inicia suas atividades hoje com coquetel na sede do Radar”, Jornal do Brasil, 15 de junho de 1965.

[3] De fato, quando as condições climáticas não favoreciam a imersão nas águas geladas do mar, os adeptos da caça submarina encontravam no surfe uma alternativa: “Se o mar não funciona pelo fundo, a tese é explorá-lo pelo lado superior, em cima de ondas fortes”. Cf. A coluna: “Caça Submarina”, Jornal do Brasil, edições de 25 de junho e 2 de julho de 1964 e de 13 de maio de 1965. Ver, também, a seção: “Informe JB” de 8 de junho de 1965.  

[4] Cf. Bourdieu, Pierre. Questões de sociologia. Petrópolis, RJ. Vozes, 2019.

[5] Cf. A coluna: “Caça Submarina”, de Yllen Kerr, Jornal do Brasil, 27 de maio de 1965. O colunista acrescentava que alguns surfistas, como Irencyr Beltrão e Arduíno Colasanti, também produziam a prancha de fibra de vidro e pelo mesmo valor cobrado pela mercenária especializada

[6] Cf. A coluna: “Caça Submarina”, de Yllen Kerr, Jornal do Brasil, 27 de maio de 1965. Segundo Dias, Fortes e Melo, op. cit., o colunista “foi um norte-americano naturalizado brasileiro”, o primeiro presidente da Federação Carioca de Surfe, fundada em 1965, um “típico bon vivant que dedicou a vida a atividades diversificadas que iam das artes plásticas à fotografia, passando pelo jornalismo: trabalhou no Jornal do Brasil, onde manteve uma coluna semanal sobre mergulho e pesca submarina.

[7] Dias; Fortes, Melo, op. cit.

[8] A praia de Ipanema se estende por uma faixa de quinhentos metros, dividida em três áreas diferentes: Castelinho, Arpoador e Ipanema. Cf. “A hora e a vez de Ipanema”, Correio da Manhã, 14 de abril de 1967. Nesse sentido, o referido jornal afirmava que o surfe era uma “criação” de Ipanema, “a praia mais sofisticada do mundo”. Cf. “Ipanema, um dia, uma praia”, 16 de abril de 1967. Convém, no entanto, salientar as referências feitas à Copacabana na difusão da prática do surge. Cf. Dias, Forte e Melo, op. cit.

[9] Cf. “Campeonato de Surfe”, Correio da Manhã, 17 de junho de 1964.

[10] Cf. “O balanço do surf é assim”, Caderno B, Jornal do Brasil, 28 de junho de 1964.

[11] Cf. “Zunzunzum”, Caderno B, 21 de junho de 1964 e “JP dá duas medalhas no surf”, 26 de junho de 1964, ambas as matérias publicadas no Jornal do Brasil.

[12] Cf. A coluna: “Segunda Seção”, de Wilson Figueiredo, Jornal do Brasil, 5 de julho de 1964.

[13] Cf. “Surf está proibido de manhã”, Jornal do Brasil, 7 de julho de 1964,

[14] Cf. “Manhã de surf”, Jornal do Brasil, 25 de julho de 1964. Também compunha o júri o colunista do jornal, Yllen Kerr, responsável pela seção: “Caça Submarina”. Afinal, foram trinta e cinco concorrentes.

[15]Sobre a origem do surfe, a significação religiosa de que ele se revestia no Antigo Havaí e o quanto ele se encontrava entrelaçado com a cultura local, ver Finnegan, William. Dias bárbaros: uma vida no surfe. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2017. Sobre a significação de Peter Troy para os surfistas cariocas do período, ver Dias, Cleber Augusto Gonçalves. “O surfe e a moderna tradição brasileira”. Revista “Movimento”, v.15, n.4 (2009) 

[16] Cf. “Federação Carioca de Surf será fundada dia 15 para organizar o esporte no Rio”, Jornal do Brasil, 29 de maio de 1965. Ver, também, “O Surfe veio dos Reios do Havaí”, Correio da Manhã, 26 de setembro de 1965.

[17] Cf. “Jacaré proibido leva controvérsia às praias ”, Correio da Manhã, 7 de março de 1965.

[18] Cf. “Esportes nas praias darão cadeia se praticados antes das 14 horas, diz Portaria”, Jornal do Brasil, 28 de outubro de 1964. Ver, também, “Praias são interditadas aos esportes”, Correio da Manhã, 26 de novembro de 1964.

[19] Cf. “Boa cabeça”, João Saldanha, coluna: “Contra-Ataque”, Última Hora, 18 de março de 1964. Sobre Neném Prancha (1906-1976)), trata-se de personagem célebre das areais de Copacabana, torcedor do Botafogo, “filósofo do futebol”.

[20] Cf. Dias, Fortes e Melo, op. cit.

[21] Cf. “O balanço do surf é assim”, Caderno B, Jornal do Brasil, 28 de junho de 1964. O mosaico de fotos utilizado pelo periódico para divulgar o I Campeonato Carioca destacava duas surfistas em ação.

[22] Cf. “Da cabeça aos pés”, Correio da Manhã, 4 de dezembro de 1966.

[23] Cf. Cruz, Ana Carolina Costa. “Mulheres nas pranchas: trajetória das primeiras competidoras do surfe carioca”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, Julho de 2011. 

[24] Cf. “A garota de Ipanema, o velho e o mar”, Caderno B, Jornal do Brasil, 19 de setembro de 1965. Sobre o filme “Garota de Ipanema”, de Leon Hriszman (1967), ver também a discussão no artigo de Dias, Fortes e Melo, op. cit.

[25] Cf. “O balanço do surfe é assim”, Caderno B, Jornal do Brasil, 28 de junho de 1964. A expressão “geração bronzeada” era recorrente no periódico. Ver, por exemplo, “Precisa-se de verão”, Gilda Chataignier, Revista de Domingo, 8 de janeiro de 1967.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A “geração bronzeada”. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 22, 2024.
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