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A importância da Copa do Mundo de 1958 para o brasileiro

Paulo Eduardo Nunes de Sousa 3 de novembro de 2014

O futebol é célebre em ganhar vários significados, espelhando no esporte as ideias dominantes de uma sociedade. Por muitas vezes, credita-se ao resultado da Copa do Mundo influência em eventos aparentemente sem diálogo com o futebol, como as eleições presidenciais ou picos e vales econômicos.

Pode-se considerar, então, o título de 1958 como um evento de abrangência maior que as quatro linhas. Para se aprofundar nesse tema, será usada como referência a notícia da Folha de Noite de 30 de junho de 1958, “O futebol mundial conheceu ontem seu verdadeiro mestre”. A notícia principal sobre a Copa do Mundo ocupa uma página inteira, e narra como a imprensa mundial repercutiu o título brasileiro.

Com fonte de informação atribuída à Agência France-Presse (AFP), a notícia não traz um autor. Entretanto, pode-se imaginar que ele se trata de Aroldo Chiorino, enviado do jornal à Suécia, que transmitiu vários textos da edição via telefone. O contato rápido com a agência de notícias europeia é outro indício de que Aroldo é o autor.

A matéria é, essencialmente, um conjunto de notícias estrangeiras comentadas por Aroldo, cheias de ufanismo e reverências a um futebol inovador e surpreendente. Para entender toda a amplitude que essa notícia trouxe ao Brasil, é necessário relembrar o contexto do título, e como o futebol foi introduzido no país.

Quando Charles Miller desembarcou por aqui, o futebol já era jogado por marinheiros, inspirados por europeus que desembarcavam a bordo de navios mercantes ou de guerra. O aristocrata transformou a pelada na areia em um esporte organizado, com regras criadas em Cambridge e documentado em súmulas.

Essa formalização oficial do futebol expandiu os adeptos do esporte, principalmente na elite, fato que motivou o escritor Graciliano Ramos a dizer que o futebol era “uma estrangeirice, uma roupa de empréstimo que não nos serve”. Ledo engano, provavelmente Graciliano não sabia das partidas disputadas por funcionários da São Paulo Railway, empresa do pai de Charles.

No início do século XX, os jogadores negros eram livremente xingados, e mal admitidos no gramado. Nesse período, a eugenia ainda era aceita, e a miscigenação era indesejável. Aos poucos, o futebol acabou servindo de método para estabelecer uma ordem social após a abolição e a proclamação da República. Colônias europeias fundavam clubes para sua comunidade, o que só fortalecia o racismo. Os negros, então, praticamente impedidos de disputar campeonatos oficiais, criavam torneios próprios, inicialmente ignorados pelos clubes. Entre 1927 e 1939, em São Paulo, o campeão dos negros enfrentava o campeão dos brancos, na disputa da Taça Princesa Isabel, em uma partida sempre em 13 de maio.

Essa discriminação, aos poucos, foi se abrandando, mas pode-se dizer que, até os dias atuais, não está extinta. Os negros passaram a trabalhar como funcionários-fantasma no comércio dos imigrantes, para poderem sobreviver com um salário no futebol ainda não remunerado. Assim, aos poucos, negros e brancos dividiam os gramados, mas nunca em uma posição de igual poder ou estima. Mesmo participando de torneios, duvidavam da capacidade dos negros, que eram hostilizados e vistos como inferiores.

Em 1950, a relação hierárquica entre negros e brancos também acontecia entre brasileiros e resto do mundo. Uma era reflexo da outra. Para o povo, a nossa miscigenação precisava de um marco, uma grande vitória para confirmar que de fato não era inferior. Sediar a Copa do Mundo representou um momento especial, no qual o Brasil poderia mostrar ao mundo sua arte. Entretanto, a derrota para o Uruguai, time de brancos e com estilo europeu, foi um balde de água fria.

No fatídico jogo, no qual o Brasil perdeu por 2 a 1, de virada, foram eleitos três culpados, todos negros. Barbosa, o goleiro que falhou no gol de Ghiggia, e os defensores Bigode e Juvenal. O Maracanazo foi uma das grandes frustrações da história do país.

Equipe do Uruguai posa para a foto antes da partida contra o Brasil. Foto: Wikipédia.

Nelson Rodrigues, gênio jornalista, cunhou a expressão Complexo de Vira-Latas para representar a mentalidade do brasileiro da época, que voluntariamente se colocava em posição inferior ao resto do mundo. O termo também faz alusão a uma raça indefinida, completamente miscigenada, e por isso, inferior.

Até a Copa na Suécia, o Brasil passaria por mais dificuldades. Apesar de sagrar-se campeão pan-americano em 1952, o Brasil caiu nas oitavas de final na Copa de 1954. Um trauma pequeno comparado ao sofrido em 24 de agosto do mesmo ano, suicídio de Getúlio Vargas. Em 1956, questões geopolíticas agitaram o mundo, com vários países boicotando as Olimpíadas de Melbourne por conflitos políticos. Também nesse ano, faleceu Charles Miller.

A desconfiança era muito grande em 1958. A revista France Football traçou os favoritos para a Copa, colocando o Brasil atrás de Alemanha, Hungria, Inglaterra, Suécia e Tchecoslováquia. Nossa seleção estreou contra a Áustria, ganhando fácil por 3 a 0, e no segundo jogo, 0 a 0 contra a Inglaterra, o primeiro empate sem gols das Copas.

Foi então que, no terceiro e decisivo jogo contra a União Soviética, Pelé entrou em campo. O menino de 17 anos chamara a atenção de Zagalo, que o apresentou ao técnico Vicente Feola, e logo virou presença constante nas escalações. Pelé jogou bem, e o Brasil ganhou por 2 a 0, gols de Vavá.

Nas quartas de final, o primeiro gol do gênio, que recebeu de Didi, e de puxeta, garantiu a classificação contra o País de Gales. Na semifinal, contra a França, uma goleada por 5 a 2 coloca o Brasil, novamente, em uma final de Copa. Dessa vez, atuando contra a seleção da casa, a temida Suécia.

O jogo começa tenso, mas logo o Brasil toma conta. Pelé, no segundo tempo, se livra da marcação, dá um chapéu em outro zagueiro, e marca um dos gols mais bonitos da história. Os jogos, que naquele ano foram transmitidos por alto-falantes em praças públicas, fez o povo gritar de alegria. Finalmente, éramos Campeões do Mundo, aplicando um insofismável 5 a 2.

A comoção veio não só com o título, mas com a circunstância. O Brasil foi campeão jogando contra europeus, demonstrando uma crescente superioridade técnica e tática dos jogadores, em especial, de Pelé. O fato de um menino negro ter aplicado tamanho baile nos alvos e loiros zagueiros foi motivo de orgulho de um povo, que cansado do complexo de vira-latas, viu no futebol sua redenção.

É nesse cenário que a notícia foi publicada pela Folha da Noite. Era chegado o momento do brasileiro se deleitar com os europeus o aclamando. No início da matéria, Aroldo escreve que os a imprensa sueca “consagra à final do campeonato mundial de futebol um espaço extremamente importante, cerca de cinco páginas em média de cada jornal, as primeiras, com títulos em oito colunas e numerosas fotografias”.

O autor parece se deleitar ao dizer que “o título mais evocador dos sentimentos suecos é o do Estocolmo Tidningen, que sobre a largura de sua primeira página imprimiu: A Suécia foi campeã do mundo por apenas quatro minutos”. Ao longo de toda uma página, os elogios da imprensa mundial eram descritos. Para o crítico do jornal sueco Dagena Nyheter, o Brasil foi o maior campeão da história dos mundiais, e chega a se questionar se o futebol belo dos brasileiros chegaria, um dia, ao norte da Europa.

Pelé, na final da Copa, driblando os jogadores suecos. Foto: Charlie Raasum – Wikipédia.

 

A aceitação do maravilhoso futebol brasileiro, escrita no jornal sueco Svenka Dagbladet, parece ganhar novo significado quando publicado aqui, como se também estivéssemos aceitos como povo. O elogio diz “Nós suecos, voltando para casa, pensamos que acabamos de assistir a uma final de uma beleza excepcional, ganha por remarcáveis vencedores. Do fundo do nosso coração, estamos contentes de ter visto o título mundial atribuído ao Brasil.” Títulos como “Perdemos de bom coração” povoavam as páginas suecas.

A imprensa parisiense também repercutiu o título. “Esmagadora superioridade do Brasil, campeão mundial de 1958”, era o título do L’Equipe. A matéria seguia com “Pela primeira vez na história do futebol uma equipe sul-americana infligiu uma esmagadora derrota a equipes europeias em seu próprio campo”. O jornal L’Aurore diz que “O Brasil (…) demonstrou que era verdadeiramente a mais forte equipe do sexto campeonato mundial de futebol”.

A imprensa londrina foi descrita como unânime em celebrar o triunfo do Brasil. O Daily Express diz que “os grandes mestres vindos do Brasil executaram a maior sinfonia de futebol de nossos tempos, sinfonia que foi dirigida por um jovem de pele escura chamado Garrincha”. O Daily Mirror, com tiragem de cinco milhões de exemplares destacada, vai além ao afirmar que “os brilhantes e desconcertantes mestres brasileiros hipnotizaram os suecos e os reduziram a uma abjeta submissão”.

Em Viena, o Wlemer Montag afirma que “o resultado de 5 a 2 foi lisonjeiro para a Suécia”. Em Buenos Aires, o La Razon escreve “a poderosa equipe brasileira, que derrotou categoricamente a Suécia, conquistou o título de campeão mundial, demonstrando a superioridade do futebol americano sobre o europeu”. Em Lisboa, o jornal A Bela afirma que “organizado como está agora, o futebol brasileiro é, sem dúvida, o melhor do mundo”.

Além desses elogios estrangeiros, a matéria destaca que o Fluminense, em excursão por Montevidéu, enfrentou o Peñarol angariando mais torcedores do que o próprio time da casa. É interessante notar, também, que na página da matéria há a propaganda do “Long-play da vitória – em discos de RGE de 33 rotações a Taça do Mundo é nossa!”.

Para os brasileiros, cuja autorrepresentação sempre foi marcada por um julgamento crítico e flagelador, a Copa é um momento de teste de nossas virtudes e defeitos como nação. Na Suécia, foi o fim, ao menos temporariamente, de uma disputa contra o próprio sistema de crença, que reafirmava sistematicamente a inferioridade brasileira.

Jogadores da Seleção Brasileira comemoram o primeiro título mundial na Suécia. Foto: Scanpix.

 

Essa luta, que gerou tanta frustração na Copa de 1950, estava ganha. Não é à toa, então, que Aroldo inicia outra matéria sua no jornal com uma menção ao Maracanazo: “Foi na tarde embaçada de ontem, num local muito distante, no tempo e no espaço, daquele Maracanã radioso e festivo de 16 de julho de 1950, que (…)”. Logo depois de relembrar a derrota, descreve os lances da final contra a Suécia, num formato precursor do atual minuto a minuto dos sites esportivos.

Após a Copa de 1958, Pelé passou a representar um ícone, que com disciplina e esforço atingia a excelência mundial. É interessante notar que Isaías Caminha, protagonista do livro de Lima Barreto de 1909, era um negro que acreditava no ascetismo pessoal como forma de ascensão. Pelé, de certa forma, também representava esse ideal.

O título da Copa do Mundo de 1958 representou, então, um sentimento de alívio e orgulho, reconhecido por europeus, que afirmou o Brasil como o país do futebol. Graças a um elenco miscigenado, capitaneado por um branco, e com um atacante negro que fez por merecer a alcunha de Rei.


BIBLIOGRAFIA

DAMATTA, ROBERTO. A bola corre mais que os homens. Rocco: Rio de Janeiro, 2006.

Futpédia Copas da FIFA. Editora Globo. Disponível como aplicativo na App Store. Acesso em 21.05.14.

ROSSI, J. & JÚNIOR, L.M. Guia politicamente incorreto do futebol. Leya: São Paulo, 2014.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulo Eduardo Nunes de Sousa

Formado em Engenharia de Produção e atualmente cursa jornalismo na Cásper Líbero.

Como citar

SOUSA, Paulo Eduardo Nunes de. A importância da Copa do Mundo de 1958 para o brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 65, n. 1, 2014.
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