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A invenção da torcida: o torcedor de futebol e sua tradição musical nos estádios do Rio de Janeiro

Uma das polêmicas que marcou a Copa das Confederações, entre tantas, foi a permissão para a entrada de determinados instrumentos e objetos nos estádios, por parte do torcedor. A preocupação com a segurança foi tamanha que até bandeiras de pequeno porte, levadas por crianças, foram vetadas, por precaução das autoridades.

O uso da caxirola, espécie assemelhada ao chocalho, feita de plástico e concebida por Carlinhos Brown para ser um produto oficial na Copa de 2014, acabou sendo proibida, em seu teste durante o torneio da FIFA este ano, no Brasil. Também chamada de “vuvuzela brasileira”, após uma partida em Salvador, centenas de caxirolas foram arremessadas em campo pelos torcedores do Bahia, em forma de protesto, depois da derrota do time.

O músico Carlinhos Brown posa para fotos no Palácio do Planalto em meio à instalação composta de caxirolas, um instrumento musical inventado por ele para a Copa das Confederações e que seria utilizada na Copa do Mundo de 2014. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom – Agência Brasil.

Assim, a tendência nas novas arenas parece ser o banimento de tudo que represente potencial ameaça para a realização do espetáculo futebolístico. Se, por um lado, temos asseguradas as normas de prevenção à violência no interior das praças de esporte, por outro se perde em espontaneidade e em criatividade, uma das marcas das torcidas de futebol.

Nesse artigo, vamos fazer uma breve incursão no tempo e apresentar como surgiu uma maneira sui generis de torcer nos estádios brasileiros. O propósito é contar um caso que mostra como, nos anos de 1940, a introdução de orquestras musicais para animar as partidas foi igualmente alvo de controvérsias.

A resistência partiu de jogadores, incomodados com o barulho ensurdecedor que impedia a concentração, sobretudo a dos goleiros, mais próximos do alambrado e do contato com a torcida. O incidente foi às vias judiciais e levou a decisão para a responsabilidade de dirigentes esportivos, que ponderaram os aspectos positivos e negativos daquele novo fenômeno sonoro nas arquibancadas. Por fim, acabou-se por reconhecer a importância de fazer da música coletiva um elemento agregador e promotor de uma ambiência festiva nos campos de futebol do país.

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Foi no Rio de Janeiro que surgiu a ideia de levar um grupo musical para dentro de um estádio. Ela ocorreu na véspera de uma partida decisiva do Campeonato Carioca de 1942, a ser disputada entre Flamengo e Fluminense. Naquele domingo de decisão, um torcedor do Flamengo, chamado Jaime de Carvalho – migrante nordestino radicado no Rio, onde trabalhava como agente de portaria do Ministério da Justiça desde 1932 –, chegou cedo às Laranjeiras, para a assistir à final contra o tricolor carioca.

Graças à sua ideia, cerca de quinze músicos adentraram o estádio a fim de apoiar o Flamengo. Para tanto, portavam um trombone, dois clarins e mais dez instrumentos rítmico-percussivos. A presença daquela turma ruidosa instalada nas arquibancadas causou espanto, pois até aquele momento a música só fazia parte das comemorações fora do estádio, nos cafés, nos bondes e nas ruas, ou nos desfiles de carro a imitar os corsos do carnaval.

A estreia do grupo foi considerada um sucesso, com a obtenção do almejado título pelo clube rubro-negro. Jaime levou adiante a iniciativa inédita e a banda passou a acompanhar o time com regularidade aonde quer que o time fosse jogar. De início, a presença do grupo pareceu bizarra, a ponto de fazer o famoso radialista e compositor popular Ari Barroso declarar em seu programa de rádio: “– Me desculpem, mas isso não é banda nem aqui nem no caixa-prego”.

Estátua de Ari Barroso em Copacabana, no Rio de Janeiro. Foto: marcusrg.

A duvidosa qualidade sonora do grupo deu origem ao apelido gaiato de charanga, – junção de músicos desafinados e sem ritmo – cunhado pelo excêntrico compositor e locutor esportivo. Apesar da crítica jocosa, a declaração de Ari Barroso divulgou a existência da orquestra, que se tornou conhecida na cidade e fez o epíteto pejorativo ser adotado como oficial pelos próprios integrantes.

Em 1943, no entanto, a Charanga veio a enfrentar uma crise, desencadeada por questionamentosà sua legitimidade, por parte de setores do meio esportivo. Isto porque a tal desafinação revelou-se afinal um recurso estratégico não só para prestar apoio ao Flamengo como, sobretudo, para atrapalhar a concentração dos adversários. À exceção de São Januário e do Pacaembu, a maioria dos estádios do Brasil naquela época era de pequeno porte, sem ultrapassar a capacidade de dez mil espectadores.

Na maioria deles, havia uma área destinada ao público que ficava muito próxima do gramado, a chamada Geral, a permitir a comunicação direta entre torcedores e jogadores, sendo constantes até as invasões de campo. Por isto a Charanga colocou-se de forma intencional atrás do gol onde atacava o clube e as marchinhas executadas, mais do que distrair, irritavam o goleiro rival.

Sucedeu certa feita que, em um jogo contra o modesto São Cristóvão, no momento em que o Flamengo meteu o seu quarto gol, o arqueiro do time da zona norte perdeu a paciência. Saiu da sua área e foi ao centro do campo reclamar com o juiz acerca da presença inoportuna da torcida naquele lugar. O árbitro ordenou a retirada imediata do local e o caso terminou na justiça desportiva, gerando uma calorosa polêmica.

Além de impugnar a partida, alguns dirigentes queriam banir a orquestra em definitivo. Para os adversários, aquela bossa de grupos musicais nos estádios do Rio “era a maior chatice descoberta pelo homem”. Depois de muitas idas e vindas, de crônicas a favor e contra nos jornais, a interdição requerida por cartolas, juízes e jogadores não foi atendida pelo presidente da Federação Metropolitana de Futebol.

Integrante da Charanga Rubro-Negra no Maracanã. Foto: Edmar Moreira.

Por quê? Vargas Neto, sobrinho do presidente e então todo-poderoso Getúlio Vargas, considerou a música uma novidade surgida de maneira espontânea nas praças de esporte. Ela devia ser vista em seus aspectos benéficos aos desportos. A seu juízo, a charanga contribuía para atenuar as brigas entre os torcedores e inibia as palavras de baixo-calão, ouvidas com cada vez mais constância durante as partidas.

Rechaçada por uns, apreciada por outros, a música deixou aos poucos de ser um fato pitoresco e incorporou-se ao cotidiano dos estádios. A difusa excitação de uma partida de futebol – dos aplausos, apupos e assovios até o primeiro coro de hip-hip-hurrah! – era agora coordenada por uma sonoridade mais forte e intensa, que mobilizava a todos.

Marchinhas carnavalescas mesclavam-se aos solenes hinos dos clubes, cujas versões recriadas pelos compositores Lamartine Babo e Lupicínio Rodrigues seriam popularizadas pelas rádios em todo o país. A Charanga assimilava também o ritual de corporações centenárias como a banda da Polícia Militar, a banda dos Fuzileiros Navais e a banda do Corpo de Bombeiros, de onde sairiam inúmeros músicos populares, muitos deles de origem negra.

Pouco a pouco, assim, o meio esportivo passou a aceitar e a naturalizar a existência desses grupos musicais animados, dispostos a incentivar o seu clube e a provocar a equipe rival. Dava-se início, a partir daí, à invenção das torcidas, capazes de reunir duas paixões do brasileiro no século XX: a música e o futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. A invenção da torcida: o torcedor de futebol e sua tradição musical nos estádios do Rio de Janeiro. Ludopédio, São Paulo, v. 52, n. 8, 2013.
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