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A Copa de 1982 entre o jornalismo, o memorialismo e a produção acadêmica

Este breve artigo procura passar em revista, de modo sumário, a produção jornalística e universitária consagrada à Copa da Espanha, de modo a prover um balanço do estado da arte do Mundial de 1982 em livros, artigos e monografias. A motivação, por suposto, foi a efeméride das quatro décadas do evento comemorado em 2022, quando a edição foi lembrada pelos meios de comunicação e objeto de reportagens e publicações decorrentes de tal visibilidade midiática.   

No que toca ao jornalismo literário, a produção se reflete no próprio boom de publicações saídas em intervalos decenais não só em 2022, por ocasião dos quarenta anos do Mundial da Espanha, como nos decênios anteriores, para ficarmos apenas com esta edição temática. Sendo assim, observam-se publicações em 2002 e em 2012: vinte anos e trinta anos depois, respectivamente.

Arrolem-se de início livros em que o vezo ficcional sobressai ao próprio timbre verídico-jornalístico. Em 2013, um ano antes do Mundial no Brasil, uma coletânea intitulada “82: quinze histórias” reúne contos de escritores em torno do evento considerado “fatídico”, com direito a prefácio de Tostão, jogador da Copa de 1970 e cronista conhecido por seu cultivo das letras e da literatura. A expressão “fatídico” trata, por suposto, de alusão à “tragédia do Sarriá”, quando da derrota e eliminação brasileira para a Itália na segunda fase de grupos daquele torneio.

Como é de domínio geral, este assistia pela primeira vez a vinte quatro seleções nacionais em disputa, ampliação efetivada por João Havelange a fim de contemplar regiões e continentes em busca de visibilidade para seus selecionados nacionais. Para muitos, tratava-se de contrapartida aos votos angariados em sua eleição à testa da FIFA em 1974. Nas regras daquela edição, uma primeira fase dividia-se em seis grupos com quatro equipes – dois classificados por grupo –, e uma segunda fase estava disposta em quatro grupos com três selecionados em cada – um a ser classificado por grupo – seguidos de semifinal e final.

João Havelange
João Havelange como presidente da FIFA em 1982. Foto: Wikipédia

Em linha similar à publicação acima, encontra-se o livro do jornalista Rodrigo Cascino, “1982: o ano do tetra” (2018), saído quatro antes da efeméride “comemorativa” dos quarenta anos, no contexto da Copa da Rússia, quando, via de regra, o mercado editorial se interessa pelo assunto. O trabalho chama a atenção pelo recurso literário mobilizado pelo autor, tal qual o anterior. Aqui também este imiscui realidade e ficção, e se vale do estratagema de alteração imaginária do destino, à maneira de Paulo Perdigão, no conto que originou o notável relato de “Anatomia de uma derrota” (2000) – “O dia em que o Brasil esteve aqui” –, sobre a “tragédia” matriz das derrotas do Brasil em Copas, isto é, o Maracanazo, em 1950. Como em Perdigão, a licença poética de Cascino altera o enredo verídico do Sarriazo 82 e intervém no destino para converter em conquista a desclassificação brasileira após a partida contra a Itália.

O acompanhamento da rememoração decenal convertida em livros mostra o efeito de distanciamento temporal nos processos de evocação do evento. Em 2002, quando a Copa completava vinte anos, a luxuosa editora Cosac Naify, com coordenação editorial de Augusto Massi, mantinha a coleção denominada Zona do Agrião e, por meio dela, lançava “O trauma da bola: a Copa de 82”, uma reunião de crônicas do controvertido jornalista João Saldanha, apresentadas por Ruy Castro.

Dez anos depois, em 2012, mais livros vêm a lume. Trata-se da investigação jornalística Gustavo Roman e Renato Zanata, autores que assistiram in loco ao Mundial da Espanha e publicam “Sarriá 82: o que faltou ao futebol-arte”. O trabalho é prefaciado pelo jornalista Mauro Beting, e tem apresentações dos comentaristas televisivos Lédio Carmona e Mauro Cezar. Ainda quanto à data comemorativa dos trinta anos do Mundial, o ex-jogador e treinador Paulo Roberto Falcão volta ao tema em “Brasil 82: o time que perdeu a Copa e conquistou o mundo”, relato em primeira pessoa de suas lembranças da participação no torneio.

Passada mais uma década, um dos principais marcos de 2022 no jornalismo esportivo é o lançamento de “1982, uma Copa para sempre”, assinado por Celso Unzelte e Gustavo Longhi de Carvalho, pesquisadores vinculados ao Memofut – Grupo de Literatura e Memória do Futebol – que se reúne mensalmente há quinze anos no Museu do Futebol. Com quase quatrocentas páginas, a obra inventaria as estatísticas e um amplo leque de informações do torneio, tendo as seleções do Brasil e da Itália por base.

No bojo da passagem das quatro décadas (1982-2022), o mercado livreiro é abastecido pela tradução do livro “Anatomia do Sarriá”, de autoria do jornalista italiano Piero Trellini, uma iniciativa do selo Grande Área, editora que vem se esmerando em traduzir referências bibliográficas de qualidade sobre futebol publicadas fora do país. No mesmo diapasão, o jornalista Marcelo Mora revisita o Mundial em “Telê e a seleção de 82: da arte à tragédia’, com a mobilização das categorias “decepção” e “saudosismo”, reconstruídas sob a égide da “injustiça” e do “inconformismo” na opinião pública e na sociedade quatro décadas depois, conforme repisa também, com acurácia habitual, o antropólogo José Paulo Florenzano, em artigo saído no sítio do portal Ludopédio (2022).

1982
Fonte: reprodução

Do ponto de vista acadêmico, interessa pontuar como os textos jornalísticos precedentes constituem um objeto em si, ou seja, formam uma base reflexiva de conjunto, conforme demonstra Diano Massarani no artigo “Arte e tragédia: representações sobre a seleção brasileira de 1982 em livros do século XXI” (2018).

Ao apontar para a miríade de justificativas dos jornalistas e jogadores – regulamento, erros técnicos individuais, escolhas táticas equivocadas, imprevisibilidades características do futebol, falta de humildade –, Massarani se debruça sobre a construção do “estilo de jogo” de 1982, derrotado e ao mesmo tempo celebrado, examina os discursos sobre os adjetivos associados a um futebol “vistoso”, “bonito”, “ofensivo”, e contrasta a produção/circulação de símbolos e identidades nacionais às “representações sociais” de seu antípoda, isto é, a vitoriosa tetracampeã de 1994.

Um ano antes de Massarani, um grupo de pesquisadores paranaenses da área da Educação Física, coordenados por André Capraro, publica o artigo “A Copa do Mundo de 1982 e o ‘turbilhão de emoções’ nas crônicas de Nelson Motta” (Lise, 2017). Nele, o enfoque incide nos escritos de época de Nelson Motta, repórter da equipe do jornal O Globo durante aquela Copa. Estes mesmos escritos serão retomados pelo jornalista no final dos anos 1990, sob a forma de livro, por ocasião do Mundial de 1998 na França.

É com base no livro que os autores examinam a condição de Motta como uma espécie de intérprete da seleção brasileira de 1982. O autor reitera o consenso segundo o qual tal equipe foi representativa de “uma retomada da identidade brasileira, baseada no jogo bonito, criativo, de gingado típico dos trópicos” (2017, p. 15). Isso porque os selecionados das Copas do Mundo de 1974 e 1978 haviam praticado “um futebol parecido com o estilo europeu de jogar, menos ofensivo, menos criativo, pautado principalmente pela marcação e pouca ofensividade” (2017, p. 14).

Uma das produções acadêmicas mais consistentes e originais nesse sentido é assinada por Leda Costa, pesquisadora da área de Letras e Comunicação Social, que desde seu doutoramento investe na análise dos discursos da imprensa em meio às interpolações entre resultados e performances da Seleção Brasileira em Mundiais. O operador simbólico dos êxitos são os heróis, ao passo que os fracassos mobilizam a categoria da vilania, sob o signo e o arquétipo romanesco da “culpa”, conforme desenvolve em chave diacrônica a autora no livro “Os vilões do futebol: jornalismo esportivo e imaginação melodramática” (2020). A obra, por seu turno, é um corolário de suas contribuições ao tema da “hermenêutica da derrota” e à análise do papel dos “detetives-jornalistas”.

Antes disso, Costa deteve-se na problemática particular da Copa da Espanha, em instigante capítulo intitulado “1982: as lágrimas de uma geração de ouro” (2014). Nele coteja as versões, os significados nativos e os sentidos ocultos na genealogia de uma pergunta capital: “por que perdemos?”.

Ainda em relação à Academia, a díade arte/força do futebol nacional é tematizada por Max Filipe Nigro Rocha, na dissertação intitulada “Em busca do feitiço perdido: a revista Placar entre a Seleção Brasileira de 1982, a Revolução São-Paulina e a Democracia Corinthiana (1979-1984)”, defendida na USP em 2013. Sob as lentes do periódico esportivo da poderosa Editora Abril, então dirigida pelo jornalista-sociólogo Juca Kfouri (2017), o cenário político-social do início dos anos 1980 é contextualizado. A edição da Copa adquire peso no ambiente de redemocratização e ao mesmo tempo de certo otimismo com o país, de modernização das estruturas do futebol e de favoritismo com a “Seleção da Abertura”, em especial seu “feitiço verde-amarelo”, personificado em figuras como o treinador Telê e o “quadrado mágico” composto por Falcão, Sócrates, Zico e Toninho Cerezo.  

1982
Fonte: reprodução/Acervo CBF

Contribuição acadêmica decisiva tem sido feita pelo historiador Álvaro Cabo em suas análises comparativas e descentralizadoras do olhar das Copas do ponto de vista “naciocêntrico”. Da mesma maneira que o fizera para o Mundial de 1950, sob o prisma da imprensa uruguaia, Cabo (2019) investiga a Copa de 1982 à luz da perspectiva sócio-histórica e histórico-política dos veículos de comunicação (Clarín e El Gráfico) e da sociedade argentina, em meio às questões intestinas da guerra das Malvinas e dos estertores da ditadura de Videla. Ao eleger o país vizinho como foco, o artigo contorna, pois, o debate autocentrado à exaustão na explicação da performance malograda da Seleção brasileira.

O mesmo descentramento da retórica nacionalista endógena, que se ampara em fonte impressa local (Braga, 2015), vale para a contextualização feita por Cabo acerca da sociedade espanhola de fins dos anos 1970 e início da década de 1980. Na esteira do ocaso do franquismo e no bojo da transição rumo à democracia, a Copa se mostra um proscênio adequado e oportuno à apresentação de uma espécie de nova Espanha, aberta e democrática, ao mundo.

Ainda que não exaustivo, eis pois a exposição deste breve em balanço com a publicação jornalística e acadêmica tematizadora do Mundial de 1982. Até 2032, para uma nova atualização…

Referências

BARBOSA, Carlos (et al.). 82. Uma Copa, Quinze histórias. São Paulo: Casarão do Verbo, 2013.

BRAGA, Harian Pires. Nem só de arte vive a bola: a Copa de 1982 pelo jornal Folha de São Paulo. Campinas: Monografia de Graduação em Educação Física/Unicamp, 2015.

CABO, Álvaro. “A Copa do Mundo da Espanha: conjuntura histórica e expectativas em veículos da imprensa argentina”. In: Revista Recorde. Rio de Janeiro: vol. 2, n. 1, janeiro-junho, 2019, p. 1-23.

CASCINO, Rodrigo. 1982: o ano do tetra. São Paulo: Editora Primeiro Lugar, 2018.

COSTA, Leda. “82: lágrimas de uma geração de ouro”. In: HELAL, Ronaldo; CABO, Álvaro (Orgs.). Copas do Mundo: comunicação e identidade cultural no país do futebol. Rio de Janeiro: Ed.UERJ, 2014, p. 165-193.

DAMATTA, Roberto (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheque, 1982.

FALCÃO, Paulo Roberto. Brasil 82: o time que perdeu a Copa e conquistou o mundo. São Paulo: AGE, 2012.

FLORENZANO, José Paulo. “O feitiço do tempo”. In: Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 13, 2022, p. 1-7.

KFOURI, Juca. “Que pena, Brasil: o basquete, a ditadura, o Corinthians e a seleção de 82”. In: Revista Piauí. São Paulo: edição 132, 2017, p. 1-15.

LISE, Riqueldi; CAPRARO, André; CAVICHIOLLI, Fernando. A Copa do Mundo de 1982 e o ‘‘turbilhão de emoções’’ nas crônicas de Nelson Motta. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 39, n. 1, 2017, p. 10-16.

MASSARANI, Diano. “Arte e tragédia: representações sobre a seleção brasileira de 1982 em livros do século XXI”. In: Revista FuLiA. Belo Horizonte: UFMG, v. 3, n. 2, 2018, p. 1-25.

MORA, Marcelo. Telê e a seleção de 82: da arte à tragédia. Rio de Janeiro: Publisher, 2012.

PERDIGÃO, Paulo. Anatomia de uma derrota. Porto Alegre: L&PM Edições, 2000.

REIS, Rodrigo Nascimento. O futebol brasileiro como soft power: um estudo de narrativas jornalísticas e cinematográficas internacionais. Niterói: Tese de Doutorado em Comunicação Social/UFF, 2022.

ROCHA, Max Filipe Nigro. Em busca do feitiço perdido: a revista Placar entre a Seleção Brasileira de 1982, a Revolução São-Paulina e a Democracia Corintiana (1979-1984). São Paulo: Dissertação de Mestrado em História Social, 2013.

ROMAN, Gustavo; ZANATA, Renato. Sarriá 82: o que faltou ao futebol-arte? Rio de Janeiro: Maquinária Editora, 2012.

SALDANHA, João. O trauma da bola: a Copa de 82. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

SOTER, Ivan. Enciclopédia da seleção: as seleções brasileiras de futebol (1914-2002). Rio de Janeiro: Folha Seca, 2002.

TOLEDO, Luiz Henrique de. “Futebol e teoria social: aspectos da produção científica brasileira (1982-2002)”. In: BIB – Boletim de Informação Bibliográfico. São Paulo: n. 52, 2001, p. 133-165.

TRELLINI, Piero. Anatomia do Sarriá. São Paulo: Editora Grande Área, 2022.

UNZELTE, Celso; CARVALHO, Gustavo Longhi de. 82, Copa para sempre. São Paulo: Letras do Brasil, 2022.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. A Copa de 1982 entre o jornalismo, o memorialismo e a produção acadêmica. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 13, 2023.
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