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A mulher como “estrangeira” no futebol brasileiro

A história do futebol no Brasil começa e se reproduz de forma excludente. No final do século XIX – momento em que esse esporte chega ao país – o futebol era praticado por uma classe social mais alta, filhos de aristocratas, brancos, que estavam em constantes viagens para Europa. Muitos estudos atribuem a Charles Miller o grande feito de trazer a bola no pé para o Brasil, após uma viagem para a Inglaterra, em 1894, juntamente com o manual contendo as regras sobre o esporte. No fim do século, o futebol era um esporte burguês e elitista (ECOTEN, 2013).

Conforme explica Ecoten (2013), foram os imigrantes os responsáveis por furarem o bloqueio da classe mais alta. Italianos, portugueses e alemães formaram seus times para disputarem com os da aristocracia. É com a industrialização que o futebol se populariza, porque as fábricas começam a incentivar os operários ao esporte e ao futebol. Com isso, brasileiros e imigrantes, estudantes e operários, passam a fazer parte das equipes. A partir de então, começaram a surgir os times de futebol.

Embora muitos estudos que narram sobre futebol e gênero passem largamente na memória sobre o futebol masculino no país para, em seguida, chegar na rasa história das mulheres nesse esporte, não irei entrar em detalhes sobre a criação dos clubes e como o futebol de oficializou entre os homens. É importante, no entanto, saber que nos primeiros anos de 1900 os clubes formados por homens começaram a se proliferar no país.

Como o futebol não é um espaço apenas esportivo, mas também social, os valores de uma sociedade refletiram diretamente na noção de que futebol não era um espaço feminino, principalmente por ser marcado por uma presença maciça dos homens. Os preconceitos vividos em sociedade são naturalmente doados ao futebol.

 A história das mulheres com o futebol tem sua passagem bem cedo pelas arquibancadas. Gradativamente, elas passaram das bancadas para os gramados. A evolução das mulheres, nesse sentido, acompanhou um pouco a saída da elite e do “sobrenome”, dando lugar ao talento dentro de campo.

As primeiras notícias sobre mulheres disputando partidas de futebol datam o ano de 1940, um momento de autoritarismo político no Brasil e de corpos cada vez mais educados para procriação. No entanto, a história conta que a primeira partida que se tem notícia é do ano de 1913.

Várias barreiras foram quebradas pelo e no futebol brasileiro. Uma delas diz respeito a discussão de gênero e a inserção das mulheres nesse esporte. No entanto, ainda existem pedaços desse muro, quebrado pouco a pouco. Embora as mulheres estejam ocupando os espaços do futebol no Brasil, como o campo e a arquibancada, os ambientes sociais ainda demonstram certa rigidez em incorporar a mulher nos assuntos sobre futebol. Essa barreira pode ser facilmente percebida nos detalhes do cotidiano, nas conversas casuais, nos debates sobre os jogos do domingo.

Estou no estádio, na frente da TV, nos debates que envolvem mulheres e futebol e sempre pronta para o confronto de gênero. Por inúmeras vezes me vi vestida em uma capa de invisibilidade quando, em uma mesma sala, homens discutiam o jogo do dia anterior. Eu, que havia ido ao estádio e pude acompanhar de perto a partida, não tinha a credibilidade suficiente, para eles, de opinar na qualidade dos jogadores em campo. Os homens ainda não conseguem entender que além de existir mulheres que estão inseridas no mundo do futebol e amam esse esporte, essas mesmas mulheres também são tão capazes quanto eles de entenderem o jogo dentro das quatro linhas.

O que existe nessa discussão de gênero dentro do futebol é a cotidiana ação de naturalizar os eventos. Naturaliza-se o fato de que as mulheres não gostam e não entendem de futebol, porque historicamente elas foram ensinadas que aquele esporte era apenas para homens. Pensando na questão de gênero como uma construção social, Scott (1995, p. 7), afirma que

“o gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais”: a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado”.

A mulher, então, passou a ser tratada no esporte de forma hiper sexualizada. A mídia, inclusive, foi uma das grandes responsáveis por isso. Foi a mídia que trouxe a imagem de “musa” para o futebol brasileiro, estigmatizando não apenas as jogadoras, mas também torcedoras, jornalistas e qualquer mulher envolvida no esporte. Tudo isso levou a uma banalização e objetificação da mulher no futebol.

Isso tudo, claro, devido a um passado patriarcal de uma sociedade que colocava duas principais funções para a mulher: os serviços domésticos e a maternidade. Para os autores Terossi, D’angelo e Stilli (2009, p. 136), “às mulheres os exercícios objetivavam a preservação e constituição de uma boa maternidade, que era considerada até aquele momento a mais nobre missão da mulher, pois dela dependia a regeneração da sociedade”.

Foi na década de 1980 que o futebol feminino passou a ser tratado no Brasil como algo mais natural. Ou melhor, foi quando o futebol feminino passou a ser aceito, mesmo a contra gosto. Em 1983 houve a regulamentação do esporte no país, mas em 1981 a primeira liga de futebol feminino já tinha seu início (SILVA, 2012).

A CBF só buscou jogadoras para formar uma seleção feminina em 1991, para disputar o mundial na China (DARIDO, 2002). Mesmo assim, a mídia só deu o devido destaque à seleção feminina, ainda assim pequeno, em 1996, quando a equipe ficou em quarto lugar nas Olimpíadas de Atlanta, e em 2004, quando conquistou o bronze em Atenas. “Quase sempre a cobertura da mídia sobre o esporte praticado por mulheres é acompanhada por uma trivialização e sexualização, constituindo uma negação do poder esportivo dessas mulheres” (KNIJNIK e SOUSA, 2004, p. 18).

A Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019, na França, trouxe para o Brasil, ainda mais popularização. As transmissões em TV aberta tiveram recorde de audiência. As mulheres do país inteiro se mobilizaram para assistirem aos jogos onde quer que estivessem. A jogadora Marta, seis vezes eleita a melhor do mundo pela FIFA, fez um manifesto em campo, pedindo igualdade entre os gêneros no futebol. O que se espera, daqui em diante, é mais representatividade, apoio e respeito.

Estrangeira em espaço masculino

A mulher chegou ao futebol ainda no século passado, é verdade. Mas não para todos. Inseriu-se nesse contexto para satisfazer a si mesma e para quebrar barreiras. Quebrou. Mas demorou para que o reconhecimento viesse à tona. Como detalhado acima, a mídia só deu o devido destaque a essas mulheres jogadoras de futebol em 1996. Na arquibancada, no entanto, continuavam a ser exibidas pela beleza do corpo e não pelo gosto e saber em relação ao futebol.

Quando o espaço foi conquistado, principalmente nos anos das primeiras ligas de futebol, a mulher pisava em um novo gramado. Um campo novo. Um espaço em que parecia precisar pedir licença para entrar. Estava entrando em um mundo que até então só recebia homens. A mulher era, então, uma estrangeira (SIMMEL, 2005). Um corpo estranho em um ambiente já demarcado.

Para Simmel (2005, p. 268), “o estrangeiro parece próximo, na medida em que a ele o outro da relação se iguala em termos de cidadania, ou em termos mais social, em função da profissão, criando laços internos entre as partes inter-relacionadas”. Foi como a mulher ganhou o seu espaço no futebol: tentando igualar entre os homens a sua cidadania. Para que isso fosse possível, no entanto, a mulher seguiu a mesma lógica explicada por Simmel em relação ao estrangeiro, fazendo relação com o desconhecimento a partir do parâmetro do distanciamento. A diferença que podemos destacar é que, para as mulheres, não houve escolha. Elas estavam distanciadas inclusive por lei.

O próprio conceito de lugar proposto por Agier (2011, p. 108), nos permite repensar a noção de estrangeiro para o entendimento do futebol. Conforme Agier, lugar “é um espaço de relações, de memória e de identificação relativamente estabilizadas”. Isto é, é algo que está posto e, por isso, tendo suas relações já estabilizadas, quem chega como desconhecido é, de certa forma, um estrangeiro. A mulher entra no futebol não como alguém sem precedentes, mas como alguém que não poderia estar naquele espaço. Não era algo que lhes cabia como mulher. Ela refaz as relações, a memória e mostra que a identificação com aquele espaço também está bem estabilizada na sua vida pessoal.

Esse sentimento de identidade, por sua vez, também é muito importante para identificar essa busca da mulher por sua estabilidade no futebol. Identidade essa já desenvolvida desde criança pelos homens, mas nunca apresentada às mulheres. No entanto, conforme Manuel Castells, “toda e qualquer identidade é construída” (1999, p. 23). Portanto, tendo em vista que a mulher constrói a sua identidade social em meio a relações de poder e dominação masculina, a identidade construída por ela, segundo Castells, é de resistência, “criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência”.

É quando, mesmo como estrangeira, a mulher se insere nesse espaço em forma de resistência e novas relações são criadas. Aquelas, já estabilizadas, passam a se abrir para novas formas de sociabilidade. Quando se juntam em prol de um mesmo objeto, o futebol, seja em uma arquibancada de estádio, seja em uma mesa de bar para assistir ao jogo, as torcedoras e torcedores, estão em sociação, isto é, como explica Simmel (1983, p. 166): “a forma (realizada de incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses”.

A sociabilidade seria justamente essa interação que existe para que a sociedade seja capaz de existir. É esse estar com um outro, para um outro, contra um outro. Na sociabilidade, para que não haja conflito, é importante se reconhecer no outro. No futebol, os torcedores se unem e se identificam com um mesmo clube. Reconhecem-se um no outro como parte constituinte daquele cenário. E agora, com as mulheres também fazendo parte desse ambiente. É quando há essa identificação apresentada por Simmel (1983), que o espaço conquistado pelas mulheres ganha mais representatividade. Para Simmel, a sociabilidade é a forma lúdica da sociação. ­

Apesar das conquistas, a busca pela igualdade continua, porque as mulheres continuam sendo humilhadas em debates que envolvem futebol, sendo assediadas em campo e tendo a sua capacidade intelectual diminuída dentro da discussão. E, se não há conversa, não há sociabilidade. “Conversar pressupõe duas partes: é um caminho de ida e volta […] A conversa é a forma mais pura e elevada da reciprocidade” (SIMMEL, 1983, p. 177). Por isso é tão importante o diálogo e a troca, o entendimento de que os espaços são coletivos e as conquistas também. É preciso explicitar que a mulher conquistou um espaço que também é seu por direito, mas que foram privadas de ocupar por uma sociedade patriarcal e machista que ditava – e de certa maneira ainda dita – valores a serem seguidos. Em um primeiro momento, pode haver uma hierarquia nessa relação, mas, conforme Simmel (1983), quando a sociabilidade se estabelece e há uma troca, a hierarquia se quebra.

Referências

AGIER, Michel. Antropologia da Cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade: Volume II. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

DARIDO, S. C. Futebol feminino no Brasil: do seu início à prática pedagógica. Motriz, Rio Claro, v. 8, n. 2, p. 43-49, 2002.

ECOTEN, Márcia Cristina Furtado. A mulher no espaço do futebol: um estudo a partir de memórias de torcedoras coloradas. XXVII Simpósio Nacional de História. Natal, 2013.

KNIJNIK, J. D.; SOUZA, J. S. S. Diferentes e desiguais: relações de gênero na mídia esportiva brasileira. In.: SIMÕES, A. C.; KNIJNIK, J. D. (Orgs.). O mundo psicossocial da mulher no esporte: comportamento, gênero, desempenho. São Paulo: Aleph, 2004. p. 191-212.

SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica“. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.

SIMMEL, Georg. “O Estrangeiro”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 4, n. 12, p. 265-271, 2005.

SIMMEL, Georg. “Sociabilidade: um exemplo da sociologia pura ou formal”. In: FILHO, Evaristo de Moraes (Org.). Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática. pp. 165-181, 1983.

SILVA, J. H. R. Gênero e futebol: os desafios da mulher na luta por reconhecimento social. 2012.

TEROSSI, M. B.; D´ANGELO, A. P.; STILLI, D. A. B. “Futebol e gênero: a visão nacional sobre a prática do futebol entre as mulheres“. Anuário da Produção Acadêmica Docente, São Paulo, v. 3, n. 4, mar. 2010.


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Ana Daniella Fechine

Paraíba, feminista e peladeira. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e mestrando em Antropologia pela mesma instituição. Atualmente, pesquisadora de futebol e gênero, integrante do grupo de pesquisa ReNEme e do Guetu (UFPB).

Como citar

FECHINE, Ana Daniella. A mulher como “estrangeira” no futebol brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 45, 2020.
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