172.4

A ousadia de ter a bola nos pés

Maurício Rodrigues Pinto 4 de outubro de 2023

Todos os domingos de manhã diversos grupos de pessoas se reúnem para jogar bola. Até a minha adolescência, início da minha fase adulta, achava que somente homens, de variadas faixas etárias, fizessem isso. Futebol, o jogar bola era coisa de homem, coisa de macho. Naqueles tempos, eu não me ligava em papos de gênero e sexualidade (não chegavam ainda nos espaços onde vivia e circulava), era muito imaturo para falar de classe, raça, racismo, ainda que conhecesse bem a realidade de pouca grana, de viver em um bairro distante do centro e da marca “parda” que trazia estampada. Foi preciso adotar algumas táticas para chamar o menos possível a atenção, como evitar olhar, encarar pessoas que não conhecia na rua, sempre carregar os meus documentos na carteira e manter o meu cabelo, tido como duro, ruim, sempre curto.

Futebol era uma coisa de homens e me parecia normal que fosse algo meio que inerente ao jogar bola as demonstrações de valentia ou de intimidação de adversário por meio da força. Que a galera que curtisse bater uma bola necessariamente se reunisse para falar sobre as minas “pegas” ou que eram vistas como fáceis ou muito zoadas apenas pelo fato de demonstrarem expressar maior autonomia sobre seus próprios corpos e desejos. Que as “brincadeiras” tidas como “legais” ou pra descontrair o ambiente, precisassem envolver comentários depreciativos a mulheres, gays, travestis, que, na real, nem eram pensadas como pessoas pertencentes daquele clubinho masculino. Isso quando não rolava (e sempre rolava…) a piadinha xenofóbica ou racista, mas que “baianos”,  “negões”, “neguins” e até quem não conseguia se ver nesses lugares, mas já sabia ser não branco e/ou carregar traços de nordestinidade tinham que também rir – ou engolir seco – para não ficar mal visto no grupo.

Por muito tempo esse era o universo do futebol que eu conhecia e entendia. Perceber que eu não curtia tanto assim esses momentos, me fez me distanciar da prática do jogo que tanto prazer me proporcionava. Até então, parecia ser uma questão de tentar caber nos lugares tidos para homens e se não me enquadrava, não me sentia parte dele, o problema era somente meu.

Futebol callejero rua
Registro do futebol callejero, na praça Charles Miller, durante o Ocupa Pacaembu, evento que compôs a programação do festival Estéticas da Periferia. Na ocasião, foi celebrado o primeiro aniversário do Meninos Bons de Bola. Foto: Mauricio Rodrigues, 26/08/2017

Demorou ainda pra que eu fizesse a pergunta: “Futebol é um jogo pra homem, jogo pra machos?” E quando elaborei essa pergunta, ela já veio acompanhada de outra, ainda mais cortante: “Por que?” Ao mesmo tempo que fui formulando essas perguntas, fui também percebendo um mundo ao meu redor que ia muito além de pares como “homem-mulher”, “homem-viado”. Fui me dando conta que a própria noção de ser homem ia muito além de ser macho, heterossexual, pegador de minas, de precisar ostentar ou fazer piadas com o próprio pinto ou com o pinto dos outros. Aliás, desde quando todo homem tem pau?

Ao me voltar para futebóis que não são televisionados todo domingão, às 16:00, me dou conta e aprendo com o futebol de mulheres, muitas vezes reduzido a um olhar de precariedade, limitação, mas com um longo percurso de lutas, muitas trajetórias de resistência e desafios a barreiras legais e culturais pelo desejo de seguir jogando bola. É onde, muitas vezes, acontecem as partidas mais vistosas e solidárias, ambientes mais plurais, que reúne de atletas dedicadas a autênticas craques, mas sobretudo feito por pessoas que ainda conseguem se ver como trabalhadoras da bola, com quem grande parte do público consegue se reconhecer e se emocionar.

Não mais jogando, mas já começando a bancar o curioso científico, tendo o atrevimento de botar algumas ideias em papeis e telas, foi quando tive a possibilidade de conhecer histórias daqueles que eram alvos de chacota ou vistos como incapazes de jogar bola, assumindo o ser bicha, viado em arquibancadas e campos de jogo. A ousadia de ter a bola nos pés é quase que uma síntese da história do futebol no Brasil. Do jogo introduzido e praticado por imigrantes estrangeiros, que representavam uma elite branca que vivia no país, a bola foi sendo disputada e tomada por pessoas provenientes de classes sociais mais baixas, pessoas negras e mestiças pobres, trabalhadoras, que fizeram o futebol sair dos redutos aristocratas, virando o jogo preferido do povão, que o adaptou e segue adaptando para os espaços mais diversos e improváveis.

Futebol Trans
Desenho pintado do símbolo da identidade transgênera na praça Charles Miller, em frente ao estádio Pacaembu. O símbolo demarcava o meio do campo onde aconteceram os jogos do Ocupa Pacaembu, em 2017. Foto: Mauricio Rodrigues, 09/09/2023

Nem todo mundo foi reconhecido no povão que fez do futebol esporte nacional, logo quer ousadia maior do que, hoje, ver grupos de pessoas transmasculinas (homens trans, transmasculinos, boycetas…), não binárias, mulheres trans e travestis ocupando quadras e praças públicas para jogar futebol nos domingos (e em outros dias da semana), se organizando coletiva e autonomamente sobre como querem jogar bola? Corpos considerados dissidentes e tão plurais, fazendo um clássico contra entre time com camisa versus time sem camisa, reunindo pessoas usando binder, tops ou esparadrapos para prender e cobrir as mamas ou vestindo nada e estando à vontade para exporem seus peitos cirurgiados ou não.

São pessoas, cujas histórias de vida e de ressignificação da relação com um jogo que tantas vezes se revela hostil e violento, que fazem lembrar do caráter prazeroso e até curativo do jogar bola, de testar os próprios limites, do fazer ou evitar um gol, do se sentir parte de um coletivo. É nesse breve espaço-momento em que se ritualiza o encontro na forma de jogo de futebol, que a ousadia de fazer o que gosta – desafiando normas e violências cistêmicas e cotidianas – encontra a paz de poder viver esse momento de prazer, podendo ser quem se é e estando entre os seus.[1]

Notas

[1] Texto sem pretensões científicas, acadêmicas, que mistura vivências pessoais com olhares, percepções durante pesquisas e trabalhos de campo. Exercício de escrita feito durante o curso “Literatura periférica: trilhas, caminhos e rumos para escritas e publicações” (SESC Pompeia). Registro o agradecimento a professora, escritora e encorajadora de escritas, Helena Silvestre, e ao grupo de colegas de curso, “Queda livre nas palavras”, que foi tão acolhedor e receptivo com a primeira leitura desse texto.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. A ousadia de ter a bola nos pés. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 4, 2023.
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