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A pandemia e o controle da paisagem olímpica

Michel Nicolau Netto 2 de agosto de 2021

Aparentemente o único momento feliz das últimas sedes olímpicas foi o dia do anúncio de sua escolha. Até mesmo a “sorte” que esses eventos davam aos políticos parece se dissipar, e aqueles que celebram o anúncio não costumam mais acenar das tribunas na abertura. Tony Blair, Lula e Shinzo Abe viram seus opositores ou traidores representarem seus países quando de fato a festa começou. Mas talvez nem o Rio viu tamanha diferença de humor entre o anúncio e a realização dos Jogos como Tóquio. Pouco antes do início do evento, 80% da população queriam seu cancelamento[1], enquanto a popularidade do primeiro-ministro Yoshihide Suga, que logo após sua eleição em setembro de 2020 era de 74%, chegou a 33% às portas dos Jogos[2].

Também, pudera: como de costume, os custos dos Jogos saíram do controle: de uma previsão de US$7,4 bilhões foram gastos US$20 bilhões[3]. E aquilo que já não seria bom se tornou muito pior com a pandemia. Os ganhos econômicos diretos do país foram a quase zero: o comitê olímpico japonês não pôde contar com a venda de ingressos, único recurso que não é totalmente comido pelo Comitê Olímpico Internacional – COI, e os turistas não puderam ir gastar dinheiro no Japão. Mas mais importante, ao contrário do que pensam os negacionistas de lá, a doença ganhou nova força com o evento. Em 28/07, o índice de contágio diário chegou a 45,52 por milhão de habitantes, um dos maiores de toda a pandemia. Em 21/06, último dia de tendência decrescente da curva, o índice era 11,30[4]. Os organizadores dizem que nada disso tem a ver com os Jogos. Sendo verdade ou não é óbvio que diriam isso. De toda forma, a coincidência é no mínimo impactante e no momento em que as autoridades de saúde japonesas pedem recursos e alertam para a lotação do sistema de saúde, enquanto o ritmo de vacinação é tão lento quanto o brasileiro, o governo japonês gasta bilhões em um evento que poucos querem. A insatisfação da população japonesa é tamanha que a montadora Toyota anunciou em 20/07/2021 que não fará menções às Olimpíadas em suas propagandas no Japão. Isso não é pouco para quem gastou certamente centenas de milhões de dólares para ser parceiro olímpico e, justamente, poder anunciar sua marca fazendo referência às Olimpíadas.

Tóquio 2020
Cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Foto: Breno Barros/rededoesporte.gov.br.

Ainda assim os Jogos estão aí. Isso não é tão surpreendente, uma vez que eles costumam acontecer nas condições mais adversas e não tem maior piedade com seus descontentes. Usando de um aparato militar local, os Jogos Olímpicos passam por cima de quem está na frente, e não é de hoje, como talvez ainda não soubessem os mais de 100 mexicanos assassinados pelas forças militares do país em 1968 quando gritavam ¡No queremos olimpiadas, queremos revolución!. De fato, tão típicos dos Jogos Olímpicos quanto nadar, pular e correr são os protestos e a repressão. Quem viveu no Brasil entre 2013 e 2016 não duvida.

Mas, talvez, nenhuma edição dos Jogos tenha dado tantos motivos para protestos quanto a de 2021 – que o marketing dos Jogos exige que se chame de 2020. Mas onde estão os protestos japoneses? Assistimos aos Jogos na TV, lemos notícias nos jornais e pouco ouvimos falar deles. Aqui e ali sabemos que eles existem, que são fortes, constantes e bastante reprimidos[5]. Mas temos poucas imagens, ouvimos pouco a voz de seus participantes. Meu interesse é pensar aqui como isso é possível e como a pandemia é usada também para reprimir a voz dos descontentes com os Jogos .

Quando eu escrevi sobre a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 propus pensar a produção de uma paisagem dos megaeventos. A paisagem, no sentido de Sharon Zukin, é a interação entre o meio físico e suas representações simbólicas controlada por determinados agentes para ordenar uma forma de disciplina e dominação, ou seja, um exercício de poder. Nas Olimpíadas, o Comitê Olímpico Internacional – COI e seus parceiros expandem cada vez mais pela cidade seu controle sobre os meios físicos e suas representações criando uma paisagem que é preenchida com suas marcas. Dentro dessa paisagem – que envolve instalações esportivas, vila olímpica, áreas especiais (como o Bulevar Olímpico no Rio) e mesmo outdoores e pôsteres em relógios públicos e pontos de ônibus – todos os signos presentes devem ser controlados pelo COI.

 A produção da paisagem dos megaeventos tem por objetivo a valorização de uma economia simbólica que é aquilo que garante os principais lucros do COI. Essa história é longa, mas a encurto aqui. Logo após as Olimpíadas de 1984, quando poucos países demonstravam interesse em sediar os Jogos, o COI lançou o programa TOP – The Olympic Partner, programa esse que até hoje organiza patrocínios e licenciamentos relacionados aos Jogos. As diferenças do TOP e de outros contratos anteriores são centralmente: 1) os patrocínios principais deixam de ser relacionados à edição específica dos Jogos Olímpicos e agora se referem aos ciclos olímpicos. Ou seja, o parceiro do COI pode explorar as marcas olímpicas não apenas por quinze dias, mas por um ou mais ciclos olímpicos de quatro anos, dependendo do contrato. 2) Os parceiros, que antes eram muitos, mas que pagavam valores pequenos aos comitês locais, agora são poucos, mas pagam muito dinheiro ao COI. Apenas como exemplo, em 1972 o Comitê Olímpico alemão fechou acordo com 628 empresas que pagaram em conjunto 31,5 milhões de dólares para serem parceiras dos Jogos de Munique. Em 2016, 11 patrocinadores desembolsaram mais de um bilhão de dólares.

Ginástica Artística em Tóquio
Ginástica Artística em Tóquio. Foto: Manoela Penna/COB/Fotos Públicas

A produção da paisagem é central justamente para garantir que apenas os símbolos que interessam ao COI, em especial os de seus parceiros, sejam representados. Cabe ao Estado nacional garantir a produção dessa paisagem e usar a força militar quando ela é ameaçada. Não a toa, nada foi mais detalhado na Lei da Copa e das Olimpíadas no Brasil do que o combate ao marketing de emboscada, ou seja, a inserção na paisagem olímpica de uma marca de um não-parceiro. Mas o interesse dessa paisagem não está apenas naquilo em que ela é vivenciada, mas em sua mediatização. É também apenas a paisagem controlada pelo COI que deve circular pelo mundo, pelas TVs, computadores e celulares. Desde as Olimpíadas de 2004, a empresa de mídia do COI, OBS – Olympic Broadcasting Service, é a única responsável pela produção de praticamente todas as imagens das Olimpíadas, controlando assim a mediatização da paisagem olímpica. Mesmo aqueles takes exclusivos da retransmissora local – como os atletas brasileiros entrevistados pela Globo – são controlados e autorizados pela OBS, buscando-se assim que apenas a paisagem controlada circule globalmente.

Contudo, até Tóquio por mais que o COI expandisse sua paisagem pela cidade ainda assim havia paisagens dissidentes, que circulavam em especial pelas mídias que não tinham direitos de transmissão dos jogos e, portanto, apontavam suas câmeras para fora da paisagem olímpica do COI. Os descontentes com os Jogos encontravam – em meio a ferros e chumbos, é evidente –  condições de representar um outro espaço. Isso muda com a pandemia.

É evidente que em quase nada a pandemia é positiva ao COI, seja por razões humanitárias ou econômicas. Mas ela permite o controle quase total sobre a paisagem olímpica, de uma maneira talvez apenas sonhada por seus dirigentes. Ao se credenciarem para irem às Olimpíadas deste ano – e se não se credenciarem, não podem ir a Tóquio – jornalistas recebem um guia chamado “playbook press[6].” Sob o argumento do controle do contágio, uma série de regras são estabelecidas, entre as quais as mais conhecidas, como usar máscaras, práticas de higiene, etc. Mas outras regras nos interessam aqui. Todos os jornalistas devem indicar um CLO (Covid-19 Liaison Officer for Press)[7], que nada mais é do que uma pessoa responsável pelo cumprimento do playbook. Com esse CLO, os jornalistas devem indicar seu plano de atividades onde consta todos “os destinos possíveis e planejados – restritos aos locais oficiais dos jogos (de acordo com seu tipo de credencial) – e destinos adicionais limitados, como é definido pela lista de destinações permitas”. O plano deve, então, ser submetido ao comitê local “para aprovação das autoridades japonesas”. E o playbook avisa que “será muito difícil requerer mudanças uma vez aprovadas.” A essas regras são acrescidas a proibição de que os jornalistas circulem pela cidade fora dos veículos oficiais do COI pelos primeiros 14 dias após suas chegadas e a ordem de que devem manter o mínimo de contato possível com qualquer pessoa não envolvida nos jogos.

Tóquio 2020
Presidente do COI, Thomas Bach, durante os Jogos Olímpicos 2020. Foto: IOC / Greg Martin/Fotos Públicas

No começo de julho, editores de esporte de importantes veículos dos EUA denunciaram essas regras como restritivas à liberdade de imprensa[8]. Em 20/07 a Reuters noticiou que jornalistas estavam surpresos com o fato de que eles não podiam escolher os lugares que queriam visitar, de que estavam o tempo todo rastreados por GPS e que eram proibidos de entrevistar “pessoas ordinárias” pelas ruas[9].

Tudo isso é tratado como estado de exceção, como medidas emergenciais, mas na verdade não se trata disso. Se é evidente que o COI e os países querem a presença de público, de turistas, ao mesmo tempo toda a tecnologia das Olimpíadas é voltada para doutrinar corpos e olhares, sejam daqueles que vivenciam o espaço, sejam daqueles o assistem. Não basta criar uma paisagem, é preciso expandi-la e reduzir as outras paisagens ao ponto de serem imperceptíveis, como os protestos dos japoneses em 2021. A pandemia é a oportunidade para a perfeição da paisagem olímpica aos interesses de COI e seus parceiros. A pandemia vai passar, mas essa paisagem poderá se repetir a cada quatro anos.

Notas

[1] https://www.theguardian.com/world/2021/may/17/tokyo-olympics-more-than-80-of-japanese-oppose-hosting-games-poll

[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Yoshihide_Suga#cite_note-55

[3] https://www.wsj.com/articles/the-tokyo-olympics-staggering-price-tag-and-where-it-stands-in-history-11627049612

[4] https://ourworldindata.org/covid-cases

[5] Ver: https://www.npr.org/2021/07/23/1019892603/protests-have-persisted-outside-of-the-tokyo-olympics;

https://www.thenation.com/article/world/tokyo-olympics-protest/;

https://www.thenation.com/article/world/tokyo-olympics-protest/;

https://www.theguardian.com/sport/video/2021/jul/23/stop-the-olympics-hundreds-protest-outside-tokyo-2020-opening-ceremony-video.

[6] https://gtimg.tokyo2020.org/image/upload/production/lf5wzxvwry40r1kaauny.pdf

[7] Ver as regras do CLO aqui: https://gtimg.tokyo2020.org/image/upload/production/tcx94ookrdtgtnvcjdeh.pdf.

[8] https://english.kyodonews.net/news/2021/07/8709162651dd-us-media-say-anti-covid-19-steps-at-olympics-go-against-press-freedoms.html

[9] https://www.reuters.com/world/asia-pacific/out-bubble-foreign-journalists-grumble-no-reporting-tour-2021-07-20/

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Michel Nicolau Netto

Professor do Departamento de Sociologia e diretor-associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. É diretor do Centro de Sociologia Contemporânea e líder do Grupo de Estudos em Pierre Bourdieu. É autor do livro "Do Brasil e Outras Marcas: a nação e economia simbólica nos megaeventos esportivos" (Intermeios, 2019).

Como citar

NETTO, Michel Nicolau. A pandemia e o controle da paisagem olímpica. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 3, 2021.
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