170.24

A pele preta do “sereio” Jayme de Almeida Filho

Perolina Souza, Fabio Zoboli 24 de agosto de 2023

“É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse R no lugar do L nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o L inexiste. Afinal, quem que é o ignorante?”

(Lélia Gonzalez)

Olhares vigiam a referência da pronúncia “errada” de uma torcida que tem cor, classe e ídolos que são capazes de contar a história do seu time, causando fascínio com seus gestos suaves e palavras contundentes. A defesa do falar ancestral, que para muitos seria motivo de desprezo e preconceito, na citação de Lélia e nas posturas de Jayme de Almeida Filho era motivo de orgulho.

Nossos ancestrais negros aqui chegaram via embarcações que transportavam escravos. Da África foram roubadas um sem-fim de vidas que cruzaram os mares, para serem personagens de uma das mais tristes histórias que a humanidade encenou: a escravidão. Bem que Mami Wata, a sereia criada por Iemanjá, poderia ter entoado seu canto para que os comandantes dos navios perdessem a rota e retornassem ao continente mãe.

Jayme de Almeida
Foto: Gilvan de Souza/CR Flamengo/Divulgação

Jayme de Almeida Filho é trazido a esta crônica não somente como um negro, descendente dos porões dos navios negreiros, mas como um personagem que luta contra o preconceito racial. Por ser um figura mítica da história do Flamengo, ele se concretiza aqui nesta fábula como uma imagem heterogênea, na condição de “sereio”: um negro híbrido, metade homem e metade ave – uma entidade com poderes de encantamento.  Quase sempre ambos, históricos e míticos, rendem boas estórias. A crônica de hoje tenta encenar alegorias entre o “sereio” Jayme Filho e as sereias, com um misto da beleza do imaginário e do indecoroso do real. 

Dizer que Jayme Filho é filho de Jaime é um tanto quanto redundante e pode soar trivial, mesmo que um se escreva com “y” e o outro com “i”. No entanto, pai e filho jogaram e fizeram história pelo Flamengo. Não tão banal é confundir as sereias, metade humanas e metade aves, com as sereias metade peixes e metade humanas. Entretanto, as duas são personificações míticas em diferentes culturas.

Jaime pai jogou pelo Flamengo de 1941 até 1950. O médio-esquerdo foi capitão da escrete que ficou marcada no clube por trazer o primeiro tricampeonato carioca para a Gávea (1942-1943-1944). Como supervisor técnico fez parte do segundo tri carioca (1953-1954-1955). Por sua vez, e a exemplo do pai, Jayme Filho jogou pelo Flamengo vestindo a rubro-negra de 1972 a 1977, logrando o título estadual de 1974. Além de jogador, atuando pela zaga central, Jayme Filho também teve algumas passagens como treinador. Comandando da beira do gramado, venceu a Copa do Brasil de 2013 e o campeonato carioca de 2014 pelo Fla.

Jaime de Almeida
Jaime de Almeida. Foto: Reprodução

A analogia que fizemos com Jayme Filho e as sereias tem o referente na mitologia grega, já que as sereias[1] gregas eram mulheres-pássaros. A configuração mulher-peixe é mais atual e não há referências desses seres na cultura grega. No entanto, para além da civilização helênica, elas também se exibem em várias outras culturas. Sob esta mirada, é importante mencionar que na Grécia havia Tritão, deus marinho que era um ser metade peixe e metade homem. Tritão seria o masculino do que conhecemos hoje como sereias mulheres metade peixes. Complicou? Então, antes de seguir, pedimos licença aos que nos leem para desvendar essa questão. 

As sereias, na configuração mulher-peixe, apareceram a posteriori da mitologia grega. As primeiras sereias que se tem registro na literatura, eram as gregas, seres metade mulheres e metade aves[2]. Eram híbridos que viviam em rochedos próximos ao mar, seres que, com seu “en-canto”, atraiam os homens para depois matá-los. Por sua vez, e de igual modo, as sereias peixes atraiam os homens para dentro das águas (doces ou salgadas), os beijavam e arrastavam para as profundezas, afogando-os.

A língua inglesa, de certa forma, fez uma distinção entre esses dois seres, contribuindo assim para distingui-los. No inglês há a palavra Mermaid, para se referir à mulher-peixe, e o termo Siren, para fazer alusão à mulher-pássaro. O português tem duas palavras derivadas do latim syreni: a primeira delas é o termo sereia que designa exatamente isso, um híbrido mulher-ave ou mulher-peixe. A segunda é o termo sirene, um aparelho agudo e estridente utilizado para fazer alarme sonoro. O canto da sereia e o “canto das sirenes” podem se assemelhar no sentido político de gestar comportamentos.

Essa sirene pode ser vista como símbolo de ambulância, de polícia e de muitos outros alarmes de alerta. A imagem da ambulância aqui demarca feridas históricas, que matou uma população inteira, pautando-se em míticas de inferioridade. O símbolo de polícia, representa todas as vezes que a vigília policial maltratou e categorizou o negro como bandido. Mas também e, principalmente, pela invisibilidade que estes tiveram na história, quando se trata de conquista de direitos. Mas aqui também a colocamos como sinal de alerta, para que as políticas de igualdade e respeito às diferenças continuem avançando na direção de um “com-viver”.

A luta antirracista nos convoca a agir como Jayme Filho, enquanto zagueiros que não se deixem driblar pelos preconceitos de cor da pele. Com sua técnica empurrava os atacantes que se aproximavam da meta do Fla para os rochedos da beira do campo, era encantador com a bola. Como técnico, seu canto levava seus comandados ao caminho das vitórias. Um canto afinado com sua alma e plumagem rubro-negra. Mas, para além das quatro linhas, Jayme era também afinado com a luta democrática e sabia que o esporte também cumpre uma função política no nosso país. Para ele, futebol “Não é só jogar, fazer gol, dar flechada” (ALMEIDA FILHO, 2022, p. 75).

De maneira semelhante, lutou sempre contra o racismo no futebol. Jayme identificava no novo Maracanã, um retrato da exclusão social brasileira. Ele sabia que ingressos caros afastaria o povo do estádio, fato que o deixava ressentido. Jayme afirma que “O povo é Flamengo. Com todo respeito, é time de preto. É de quem tem menos dinheiro, não teve oportunidade na vida” (ALMEIDA FILHO, 2022, p. 75). Com essa passagem, Jayme demonstra sua total consciência em relação à existência de um racismo estrutural no Brasil, que se reflete diretamente nos acontecimentos dentro e fora de campo.

Dizem que “Quem sai aos seus, não furta, herda”, por isso que se faz necessário ser mencionado um parentesco ilustre de Jaime pai e Jayme Filho, irmão e sobrinho, respectivamente, da filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez. A personagem, que aqui citamos em epígrafe, desde muito cedo percebeu a existência de um mito de democracia racial, que intenciona ocultar o racismo no Brasil, e a questão de classe, que está permeada nas discussões identitárias de raça e gênero. Como tantas outras mulheres pretas, vindas de famílias pobres, viu-se muito cedo destinada ao ofício de babá e empregada doméstica. Lélia poderia ter sido “só mais uma”, no entanto, sua trajetória acadêmica lhe concedeu a possibilidade de fazer da sua trilha pessoal uma tática para entoar a sua ancestralidade e compreender a desigualdade social brasileira, pela via do feminismo negro.

Lélia Gonzales
Lélia Gonzales. Foto: Wikipédia

Lélia Gonzalez é uma pensadora que joga com as palavras, criando verbetes como “Amefricanidade”[3] e “Pretuguês”[4]. Dedicou sua a vida à criação de redes coletivas[5], capazes de produzir enfrentamento à ofensiva racista que segue produzindo vítimas e algozes todos os dias, dentro e fora dos gramados. Se estivesse inserida no mesmo campo de trabalho do seu irmão e sobrinho, Lélia certamente seria técnica de um time de pretos, conhecida por ser extremamente estrategista e capaz de desarmar qualquer sistema defensivo com o peso do seu discurso e da sua caneta. Por outro lado, se estivesse envolta à nossa referência mítica, Lélia seria aqui a nossa “mãe d’água”, uma senhora Iara brasileira – metade mulher, metade peixe – que transita nas águas mais revoltas com elegância proporcional ao seu poder de sedução e destruição, capaz de desatinar o fascismo racista com seu “en-cantado” saber político e de luta.

Nosso desejo com esta crônica é que toda a mítica das sereias – desde Mami Wata, Iara, Melusina, Kanji ou Kianda – que esses seres levem para as profundezas das águas toda forma de racismo, e que ali ele seja afogado e dizimado. Que as sereias, metade humanas e metade aves, ecoem seu canto de fúria fazendo estilhaçar contra as rochas toda manifestação de violência racial. E que assim, o racismo passe a ser visto somente pelo que ele é “um mito: uma predestinação sempre trágica”.

Notas

[1] Sobre a origem desses encantados seres, existem três versões: 1) eram filhas do Rio Acheloo com Gaia, 2) eram fruto do castigo de Deméter às suas ajudantes pelo rapto de sua filha Perséfone, feito por Hades; 3) as sereias surgiram da punição de Afrodite às mulheres que queriam se manter virgens, pois a deusa do amor não concebia tal opção.

[2] A primeira menção que a mitologia grega faz a esses seres híbridos é no mito dos tripulantes da nau de Argos (Argonautas) que saem em busca do velo de ouro. Outro mito importante que faz alusão a elas está na Odisseia, quando Ulisses, no seu retorno à Ítaca, precisa passar pela ilha das sereias. Aqui é importante mencionar que nas duas vezes em que as sereias entram em contato com os humanos, pai e filho são alternadamente personagens presentes na narrativa. Na nau de Argos, Peleu, pai de Aquiles, estava presente – Aquiles, este que teve papel importante na vitória da guerra de Tróia em parceria com Ulisses. Ulisses se encontraria com as sereias voltando de Tróia à Ítaca – onde sua esposa Penélope o aguardava.  

[3] Para Lélia Gonzalez (2020), a amefricanidade, como uma categoria político-cultural, está relacionada com uma dinâmica de adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas de ler a nossa história, sob o pano de fundo da perspectiva de gênero. “[…] ultrapassa as barreiras territoriais, linguísticas e ideológicas, permite construir um entendimento mais profundo de toda a América, contestando a apropriação do termo para definir apenas os estadunidenses. […] há um processo histórico altamente dinâmico presente na amefricanidade que nos aproxima de outras categorias político-culturais e processos políticos internacionais” (GONZALEZ, 2020, p. 17).

[4] De acordo com Lélia Gonzalez (2020), apesar do racismo estrutural vigente, os brasileiros falam “pretuguês”, uma espécie de português africanizado. Essa expressão exalta a presença da “mãe preta”, pois é essa figura ancestral que passa ao povo brasileiro “[…] esse tipo de pronúncia, um modo de ser, de sentir e de pensar” (GONZALEZ, 2020, p. 269).

[5] Participou da criação do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN-RJ), do Movimento Negro Unificado (MNU), do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras-RJ e do Bloco Afro Olodum-BA.

Referências

ALMEIDA FILHO, Jayme de. O povo é Flamengo. Com todo respeito, é time de preto. É de quem tem menos dinheiro. In: NETO, Helcio Herbert. Conte comigo: Flamengo e Democracia. São Paulo: Editora Ludopédio, p. 65-78, 2022.

GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Perolina Souza Teles

É professora da rede pública de ensino do estado de Sergipe. Atualmente é doutoranda em educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e membra do "Grupo de pesquisa Corpo e política/UFS".

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

SOUZA, Perolina; ZOBOLI, Fabio. A pele preta do “sereio” Jayme de Almeida Filho. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 24, 2023.
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