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A relação entre política e futebol: uma história de rivalidade entre a Dama de Ferro e a cidade de Liverpool

Amanda Trovó 15 de abril de 2024

O futebol sempre foi uma expressão social e mesmo com o senso comum criando e perpetuando a famosa máxima popular que diz “futebol e política não se misturam”, ambos são indissociáveis.

Assim como no Brasil, com a famosa “Democracia Corinthiana” ou a Seleção Brasileira de 1970 ser utilizada como “bode expiatório” para esconder os desdobramentos da ditadura, as equipes estrangeiras também são reconhecidas por suas origens ou desenvolvimentos ligados à política, independente da ideologia.

No futebol inglês, a maior história da influência política no futebol é do Liverpool. Historicamente, as equipes da cidade dos Beatles têm uma relação um tanto quanto problemática com as principais figuras da política britânica: a monarquia. Enquanto os associados a coroa, principalmente os londrinos, são conservadores e tradicionais, a cidade de Liverpool é reconhecida pela associação sindicalista e a predisposição para movimentos da esquerda.

Liverpool
Foto: LFC on X

A morte da Rainha Elizabeth, ocorrida em 2022, foi um dos momentos em que a problemática relação entre os torcedores de Liverpool e as autoridades britânicas ficou nítida ao mundo. Enquanto as outras torcidas aplaudiam e demonstravam respeito pela ex-líder da monarquia, torcedores de Liverpool e Everton fizeram pouco caso do fato e comemoram o fim de um dos reinados mais emblemáticos e longos da história recente.

Porém, a relação dos torcedores de Liverpool e Everton tem seus estranhamentos com o governo inglês desde sempre. E apesar da rivalidade entre azuis e vermelhos, a união entre adversários aconteceu principalmente por conta de uma mulher na política: Margaret Thatcher.

Thatcher e Liverpool: uma relação fadada ao fracasso

Margaret Thatcher nasceu em 1925 e liderou o partido conservador britânico logo nos seus primeiros anos de política. A “Dama de Ferro” foi primeira ministra britânica entre 1979 e 1990 e a primeira mulher na história da Europa a comandar um país. Margaret era conhecida como a “Dama de Ferro” por sua postura impassível a alterações, as decisões lideradas por ela por muitas vezes foram questionadas entre os habitantes de Liverpool e muitas vezes, esses questionamentos geraram repressão policial para defender o governo local.

Nos anos 1980, Thatcher e outros conservadores decretaram à caça aos hooligans.1 Deixando a cidade e a liderança política britânica cada vez mais distantes. Afinal, a cidade de Liverpool era conhecida como “trabalhista, sindical e esquerdista” (Premier League Brasil, 2019).

Entre os motivos para esse distanciamento, estavam as frequentes reclamações de que a cidade era esquecida pelo governo, provocando consequências socioeconômicas duradouras para os moradores de Liverpool, sejam eles, azuis ou vermelhos.

A revolta com o governo foi geral e fatores socioeconômicos como o aumento do desemprego e fechamento das indústrias locais levaram ao aumento da fome e pobreza dos moradores de Liverpool. No período, foi recomendado à Dama de Ferro que a cidade entrasse em declínio popular, econômico e social.

Após a Segunda Grande Guerra, o distrito portuário de Liverpool conhecido como Toxteth, que em anos anteriores dominou o comércio marítimo inglês jamais conseguiu se recuperar. O próspero distrito, que tinha papel fundamental na parte comercial e econômica da cidade e de certa forma no país, principalmente por conta da Revolução Industrial, caiu no ostracismo, seja para o comércio ou seja para a população, que entre 1971 e 1981, segundo o jornal The Guardian, caiu mais de um terço.

Portanto, com deslocamento do comércio naval local para a costa leste do Reino Unido e a indústria local de Liverpool enfrentando problemas, Merseyside passou a se rebelar.

O episódio que marca o início de uma série de protestos de locais contra o governo liderado por Margaret Thatcher acontece no dia 3 de julho de 1981, quando um jovem negro foi perseguido pela polícia por conta de os policiais acharem que a motocicleta do rapaz ser produto de roubo. O rapaz caiu por conta da perseguição e um grupo de populares aglomerou-se no local para o defender dos policiais, afinal, a história recente do local mostrava que era mais um caso de “assédio policial” (The Guardian).

O jovem rapaz fugiu e nunca foi identificado, porém, um dos policiais arremessou um cassetete contra os populares, que revidaram lançando tijolos contra as autoridades. Toxteth virou cenário de protestos constantes e a relação entre Liverpool e Thatcher colapsou de vez.

As tragédias de Heysel e Hillsborough

Apesar de Thatcher dispor de uma relação já conturbada com a cidade de Liverpool, a relação com o futebol seguia sem grandes problemas até 1985. A final da Champions League entre Juventus e Liverpool, ocorrida na cidade Belga de Heysel, terminou com 39 mortos, mais de 500 feridos, além de cerca de 25 pessoas presas – além de uma punição pesada para os clubes que ficaram cinco anos sem poder participar das competições continentais europeias, enquanto o Liverpool ficou seis temporadas punido, tendo Margaret Thatcher como uma das apoiadoras da punição aos clubes e a equipe de Merseyside.

Quatro anos mais tarde, no ano de 1989, uma outra tragédia abalou ainda mais a delicada relação entre Thatcher e o futebol. A FA Cup2 chegava a sua fase semifinal em um confronto entre os tradicionais Nottingham Forest e Liverpool, no estádio de Hillsborough, a antiga casa do Sheffield Wednesday. Um pouco antes da entrada dos jogadores para o início de jogo, torcedores do Liverpool enfrentavam problemas para entrar em Hillsborough, afinal, as autoridades policiais que trabalhavam na segurança da partida abriram apenas um dos portões para que os torcedores da equipe vermelha de Merseyside pudessem entrar no local. Sem contar que o público de torcedores do Liverpool foi direcionado para a Leppings Lane, arquibancada atrás de um dos gols de Hillsborough, sendo a menor arquibancada do estádio, prejudicando ainda mais a infraestrutura do estádio.

Naquele momento, o mundo estava prestes a testemunhar a grande tragédia futebolística inglesa. Os jogadores foram retirados do campo e o que se constatou foi que a Leppings Lane (arquibancada destinada à torcida do Liverpool) não suportaria o peso. A situação era crítica ao ponto de torcedores tentarem invadir o campo para salvar suas próprias vidas. Entre as consequências da tragédia, 97 mortos (entre mortos no local e anos depois da tragédia) e centenas de feridos, encaminhados para hospitais de Burnley e Sheffield, as cidades mais próximas do estádio.

No período pós tragédia, o The Sun promoveu um movimento de culpabilizar a “selvageria” dos torcedores, em consonância com as divulgações realizadas pelo relatório policial da época, conforme se observa na imagem abaixo.

Cobertura do jornal – The Sun sobre a tragédia de Hillsborough

Imagem da capa do The Sun após a tragédia de Hillsbourough. Fonte: Business Insider

Anos depois, locais voltaram a investigar o caso e criaram um relatório independente chamado Hillsborough Independent Panel e a constatação de uma relação já destruída foi imediatamente reconhecida: o plano de contingência de segurança da partida era insuficiente para aquela partida e a coordenação de segurança designada para a disputa entre Liverpool e Wednesday deixou de salvar 41 vidas.

O The Sun reconheceu os erros divulgados na época da tragédia, principalmente através do editor chefe da época que relatou que as matérias só saíram por conta das informações erradas repassadas pela polícia. O jornal foi banido das dependências do Liverpool Football Club em 2017.

A relação com Thatcher chegou ao seu estopim. Visitas à cidade não eram mais divulgadas na mídia local se por acaso, os moradores soubessem que a Dama de Ferro estava em Liverpool, a mobilização contrária à figura política era imediata. E a marginalização da cidade de Liverpool só ficou mais evidente, a cidade que já enfrentava problemas de desemprego, fome e pobreza só viu a situação agravar.

E apesar da rivalidade entre Everton e Liverpool, as torcidas se uniram com um só propósito: o amor pela cidade.

Anos depois, com o Hillsborough Independent Panel publicado, o ex-primeiro ministro inglês Tony Blair, pediu publicamente desculpas pela tragédia.

Em 2013, Thatcher faleceu por conta de um derrame cerebral. Torcedores de Liverpool, Everton e Tranmere Rovers (atualmente na quarta divisão inglesa, a EFL League Two) expressaram seu contentamento pela morte da ex-primeira ministra. Esqueceram a rivalidade entre os clubes e comemoraram juntos. Em jogos da época, faixas com registros foram exibidos em partidas das equipes locais. Entre os torcedores do Liverpool, faixas como “A bruxa está morta” ou “Você não ligou quando mentiu, nós não ligamos se você morreu” e na torcida do Everton “Você tirou nossa comida, mas nunca poderá tirar nosso orgulho”.

Atualmente, uma página chamada “Is Margaret Thatcher Yet?” é atualizada diariamente sobre a morte de Margaret Thatcher. Você pode acessar aqui – https://www.isthatcherdeadyet.co.uk/.

Notas

1 O termo hooligan poderia ser atribuído a qualquer torcedor. “Após a Copa do Mundo de 1966, o hooliganismo passou a ser reconhecido como um problema social de alcance nacional e de certa gravidade entre às autoridades britânicas”. (BUARQUE DE HOLLANDA, 2021)

2 FA Cup – conhecida como Copa da Inglaterra.

Bibliografia

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Amanda Trovó

Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, como bacharel. Desde 2020, participa do grupo de estudos Mundo Dentro e Fora das 4 linhas. Com interesse na área de ciência política, nas questões econômicas relacionadas ao esporte e ao soft power esportivo no sistema internacional.

Como citar

TROVó, Amanda. A relação entre política e futebol: uma história de rivalidade entre a Dama de Ferro e a cidade de Liverpool. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 16, 2024.
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